sábado, 29 de dezembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 10


UM OUTRO TEMPO
   A notícia de que, nas escolas, as disciplinas de Português e Filosofia iriam deixar de ter provas nacionais obrigatórias trouxe-me imediatamente à lembrança, por oposição, o reinado de D. Dinis I. Porque aquela notícia representa, de certo modo, o toque final na destruição de um edifício que o sexto rei de Portugal começou a construir — com a sua própria acção como poeta, com a adopção da língua portuguesa para a redacção dos documentos da chancelaria régia e com a criação e protecção da primeira universidade: ou seja, o edifício de uma cultura portuguesa. Aparentemente, esse edifício já não interessa, portanto há que demoli-lo para construir no seu terreno um banco ou um prédio de escritórios.
   Enfim, esses são contos largos. Atentemos, antes, nesse reinado de D. Dinis, porque, embora atravessado por duas guerras civis e outros contratempos, foi um tempo que, pelo menos visto a esta distância, é magnífico.
   Em primeiro lugar, um tempo de construção e consolidação. Os primeiros reis, de Afonso Henriques a Afonso III, cada um à sua maneira, melhor ou pior, da forma que souberam ou puderam, esforçaram-se por lançar os alicerces: alargando o território, cuidando de o povoar, dando-lhe (mérito de Afonso II) uma coerência jurídica, chamando (mérito de Afonso III) os concelhos a participar na acção política.        Quanto a D. Dinis, surge-nos como, passe o termo, uma «síntese» dos reis anteriores, na medida em que um dos traços mais notáveis da sua acção foi ter conseguido fazer executar boa parte das leis que os seus antecessores tinham concebido e assinado, mas que não tinham sido aplicadas, por oposição do clero ou da nobreza, consoante os interesses atingidos. A isto, acrescentou ele uma intervenção decisiva em todos os sectores da vida do reino — apesar de lhe terem posto o cognome de «Lavrador», a agricultura não foi, nem de longe, o único campo que mereceu a sua atenção. Teve ainda a inteligência e a abertura espiritual necessárias para proteger os Templários portugueses e criar para eles a Ordem de Cristo, que veio a desempenhar o papel que todos sabemos.
   Finalmente, como foi bom nós termos conhecido um período histórico, recuado embora, em que o chefe do Estado português gozava de tão grande prestígio internacional! «Os namorados que trovam de amor / todos deviam grão dó fazer / e não tomar em si nenhum prazer / porque perderam tão bom senhor / como el-rei D. Dinis de Portugal», escreveu, à morte do monarca, um poeta leonês. Era uma época em que os trovadores e segréis peninsulares sabiam todos versejar em galego-português, língua que dominava então a poesia ibérica. Mas para quem achar que não conta a opinião dos poetas, considere-se, antes, a opinião dos políticos: no Verão de 1304, D. Dinis passou a fronteira, com a rainha D. Isabel e uma brilhante comitiva, para, a pedido dos reis de Castela e Aragão, servir de juiz numa questão que opunha os dois reinos. E a sua sentença foi imediatamente aceite por ambas as partes.
   Sim, foi um reinado não isento de sobressaltos, mas cheio de vigor, inteligência e prestígio. Um tempo magnífico. Infelizmente, já bastante remoto…
João Aguiar

Inscrição na entrada do castelo de MELGAÇO

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

EXERCÍCIOS - Grafite H


Estrutura reprodutiva do Pinheiro Bravo: pinha de 8-22 x 5-8cm, aproximadamente simétrica na base, com apófises romboidais, carenadas e com umbigo proeminente; semente alada (penisco) de 7-8mm com asa até 30mm. Cor castanho-brilhante em árvores adultas.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 09


O BISPO GUERREIRO

     A ideia não seria nova nem original se a nossa visita histórica deste mês tivesse por destino a Idade Média: nessa época, havia prelados aguerridos — os arcebispos de Braga, por exemplo, eram grandes senhores que tinham a sua mesnada e um deles, D. Lourenço Vicente, foi mesmo ferido na batalha de Aljubarrota.
     Mas isto, sem ser coisa inaudita, já era bem menos vulgar no século XVII. E é na transição do século XVI para o XVII que vamos encontrar D. Marcos Teixeira, que foi cónego da Sé de Évora e bispo da Baía e que, nesta segunda função, e já no final da sua vida, assumiu, com inesperado brilho, um comando militar.
     Hoje, a personalidade de D. Marcos Teixeira surge-nos com a sombra de ter estado ligado à Inquisição, o que não é recomendação para ninguém, mas há que contar com a mentalidade da época e a educação que decerto recebeu… de qualquer forma, o que interessa, para o nosso caso, é que em 1621, já nada — mesmo nada — jovem, foi feito bispo da Baía. Temo-lo, pois, no Brasil, onde, por vias do seu temperamento, entra em conflito com o governador, Diogo de Mendonça Furtado.
     Mas outros acontecimentos vêm sobrepor-se a estes atritos. Em 1624, dá-se a primeira invasão holandesa da Baía, lançada por uma poderosa armada comandada por Jacob Willekens. O governador português tomou as medidas que considerou possíveis, embora tivesse poucos meios; foi, porém, impossível resistir ao ataque, efectuado a 9 de Maio; a cidade rendeu-se e o próprio Mendonça Furtado tornou-se prisioneiro dos holandeses.
     Na véspera, porém, o bispo D. Marcos Teixeira fugira da Baía e fora refugiar-se na aldeia do Espírito Santo, onde se concentraram outros portugueses que viviam na região. Havia instruções seladas contendo o nome do substituto do governador, caso este ficasse incapacitado; abertas essas instruções, viu-se que o sucessor designado era Matias de Albuquerque, governador de Pernambuco (e futuro general da Guerra da Restauração). Porém, Matias de Albuquerque estava longe e a situação na região da Baía era demasiado grave; assim, os moradores do Espírito Santo, reunidos em assembleia, escolheram, por aclamação, o seu bispo como governador provisório.
     Talvez nenhum deles tenha medido todo o alcance desta decisão. Assim que foi nomeado, D. Marcos mostrou bem de que metal era feito: organizou o governo e, sobretudo, organizou, com grande eficiência e entusiasmo, a resistência. Escolheu, acertadamente, a táctica da guerrilha e com ela bloqueou completamente os holandeses. Estes dominavam a Baía, instalavam-se nas casas, profanavam as igrejas; mas não podiam ir além do perímetro urbano, excepto a poder de sortidas que lhes saíam caras: assim, numa dessas sortidas, morreu o seu comandante, o coronel Van Dorth, e, a seguir, o seu substituto, Albert Schouten. Entretanto, o octogenário D. Marcos comandava pessoalmente a resistência e trabalhava nas fortificações. Em breve a situação dos ocupantes da Baía se tornou insustentável. Aliás, viriam a render-se no ano seguinte, quando chegou uma esquadra da Europa, com a missão de os desalojar.
     No entanto, o grande trabalho fora executado por D. Marcos Teixeira, ao longo do segundo semestre de 1624. Por fim, esgotado pelo esforço físico e pelas exigências do seu posto, o velho bispo entregou o governo a Francisco Nunes de Eça e morreu pouco depois. Mas a memória ficou: sem ele, talvez a Baía não falasse português…
João Aguiar

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 08


PECADO ORIGINAL

Numa crónica publicada há alguns meses, referi-me à mãe do nosso primeiro rei e escrevi que «as relações entre Afonso Henriques e D. Teresa foram bastante mais complexas e menos violentas do que diz a lenda». Como o tema da crónica era outro, não desenvolvi tal ideia, antes a deixei ficar neste ponto. Mas para quem, como nós, gosta de viajar pela História, tem certamente interesse explorar um pouco a questão, mesmo porque estamos falando de uma espécie de «pecado original» que teria presidido ao nascimento do nosso país: um filho revoltando-se contra a mãe e defrontando-a no campo de batalha.
Aliás, a lenda veio complementar a história: conta-nos como D. Teresa foi aprisionada após o recontro de São Mamede e depois posta a ferros e encerrada no castelo de Lanhoso, de onde lançou uma soturna maldição contra o filho, a qual veio a cumprir-se muitos anos mais tarde, no cerco de Badajoz, quando D. Afonso, já velho mas ainda combatente, foi ferido e aprisionado. E é curioso ver como a lenda, ao apoderar-se do nosso rei fundador, o fez evoluir, simultaneamente, em sentidos opostos: por um lado, é um filho que trata mal a mãe, (o que não é coisa de todo recomendável), mas, por outro, não só convive com milagres mas merece, até, a santificação — houve, aliás, múltiplas tentativas para o canonizar. Esta dualidade, note-se, é muito típica da figura do herói clássico, quero dizer: do herói grego, que comete grandes feitos mas também, eventualmente, grandes inconveniências, pelas quais vem a pagar. Portanto, a lenda tratou D. Afonso Henriques, de certo modo, «à maneira grega».
Isto quanto à lenda. Mas a História diz-nos algo diferente. Em primeiro lugar, o conflito entre D. Afonso Henriques e D. Teresa, entre filho e mãe, era coisa vulgar naqueles tempos, sobretudo nas famílias reinantes: veja-se, por exemplo, a história da monarquia leonesa. Aliás, tendo em conta os costumes da época, uma «simples batalha» era equivalente, digamos, a uma discussão particularmente acesa.
Em segundo lugar, D. Teresa não foi aprisionada após São Mamede. Não assistiu à batalha, evidentemente; há quem ponha mesmo a séria hipótese de ela, na altura, não se encontrar, sequer, em Portugal e sim na Galiza.
E, finalmente, talvez mais importante ainda: as relações entre mãe e filho não cessaram em São Mamede; pelo menos, as relações políticas. Sabe-se isto, quanto mais não seja, indirectamente. De facto, D. Teresa manteve, até à sua morte, em 1130, a ligação com o conde Fernão Peres de Trava, que, dois anos antes, comandara as suas tropas, vencidas pelo filho. Ora, nesse mesmo ano de 1130, cerca de seis meses antes do seu falecimento — não custa muito supor que ela já estivesse doente e impossibilitada de viajar —, o mesmíssimo conde Fernão Peres estava, calma e pacificamente, em Braga. E a sua presença é atestada por um documento: uma doação feita por D. Afonso Henriques e na qual se encontra a assinatura do conde galego, como confirmante do acto (um acto político) do jovem príncipe que o derrotara em 1128.
Portanto, as relações mantinham-se; não ternas, talvez, porém mantinham-se. Podemos ficar descansados porque, no nosso nascimento, não houve um pecado original especificamente português.

João Aguiar

Tentação - Óleo sobre tela

domingo, 2 de dezembro de 2012

MURMÚRIOS

MURMÚRIOS
INCURSÃO NO ACRÍLICO 

Murmúrio I . 2004 - Acrílico sobre tela 81X65cm


Murmúrio II . 2004 - Acrílico sobre tela 64.5X54.5cm

Murmúrio III . 2004 - Acrílico sobre tela 70X70cm

Murmúrio IIII . 2004 - Acrílico sobre tela 70X60cm

VIAGENS NA HISTÓRIA 07


O MITO CRIADOR
Quem não ouviu falar na batalha de Ourique?
A resposta será: muita gente —mas enfim, também há quem saiba do que se trata. Uns e outros, gostaria de, nesta viagem ao longo da História, os levar até lá — não à batalha verdadeira, pois ninguém sabe ao certo onde ela se feriu; nesse particular, quem quiser poderá ir até Ourique, no Alentejo, ou, prosaicamente, ao Campo de Ourique, em Lisboa, ou aos outros Ouriques que por cá temos. Não importa, para o nosso caso, o local, nem sequer as dimensões da batalha, que foram — se ela, sequer, existiu — muito inferiores ao que diz a tradição. Importa-nos, sim, visitar a lenda de Ourique, porque ela é, de facto, o «mito criador» de Portugal.
(Breve explicação: dou ao termo «mito» o sentido de história sagrada, de história exemplar, de algo que ocorreu num tempo primordial e que narra acontecimentos que se tomam como modelos. Ou seja: não interessa que esses acontecimentos sejam reais ou construídos; interessa, sim, que foram escolhidos como padrão, como modelo histórico a ser seguido pelas gerações seguintes.)
Ora, em muito breve resumo, o que nos conta o mito de Ourique?
Conta-nos que D. Afonso Henriques, então princeps ou dux dos Portugueses, no decorrer de uma investida em terras muçulmanas, travou uma batalha contra «cinco reis mouros»; que, na véspera da batalha, Cristo lhe apareceu e lhe deu as Quinas, para que ele as colocasse no seu estandarte e assim venceria o inimigo; e que, no próprio campo de batalha, os seus vassalos lhe pediram que fosse o seu rei e como tal o aclamaram.
Em traços muito rápidos, eis os elementos essenciais do mito de Ourique, o qual estaria já em formação cerca de cento e cinquenta anos após o recontro, que viria a completar-se nos séculos XIV e XV e cuja autenticidade só viria a ser contestada nos finais do século XIX. Devo dizer que há já largos anos que este mito exerce sobre mim um verdadeiro fascínio, porque ele aponta, para Portugal, um modelo que é confirmado pelos dados históricos.
Assim, o que nos dizem os acontecimentos míticos de Ourique? Dizem-nos que Cristo apareceu a D. Afonso Henriques para anunciar-lhe a vitória sobre o exército muçulmano; ou seja, o mito reconhece que Portugal é um fruto daquilo a que se chama a Reconquista Cristã. Dizem-nos ainda, os acontecimentos, que Cristo impôs as Quinas a Afonso Henriques e que, no campo de batalha, este foi aclamado rei pelos seus vassalos. Ou seja: embora o mito coloque Portugal sob a protecção divina, ele não confere uma origem divina à monarquia portuguesa. Cristo dá um brasão ao dux dos Portugueses, mas não o proclama rex. Quem executa este acto são os vassalos. São eles, portanto, que fundam o reino ao escolher e aclamar um rei. E esta é, a meu ver, a mensagem profunda do mito de Ourique.
Quanto à História, o que nos diz ela?
Que a cerimónia de entronização de um rei de Portugal tem o nome tradicional de aclamação e que essa cerimónia é essencialmente laica; o rei não é ungido e talvez nem sequer fosse coroado solenemente — os actos decisivos eram o juramento, o desfraldar da bandeira e o brado («Real, real, real»…), ou seja, a aclamação propriamente dita.
E a História diz-nos ainda que, quando Afonso II, neto de Afonso Henriques, fez testamento, estabeleceu que, morrendo ele sendo o herdeiro menor, este ficaria entregue à tutela dos vassalos e não da rainha viúva. Ou seja, desde os primórdios, nunca o reino foi propriedade do rei.
O que, ainda hoje, merece reflexão, atrevo-me a pensar.

João Aguiar

Charola do Convento da Ordem de Cristo - TOMAR

terça-feira, 27 de novembro de 2012

PEQUENOS TEXTOS


O TREVO E A ESMERALDA

Não me dou bem com o frio e a chuva é, para mim, uma necessidade, mas não um prazer; apesar disso, tenho uma simpatia muito especial pela Irlanda, uma simpatia que abraça a terra e a gente.
A terra, montanhas, planícies, lagos, enseadas, porque é lindíssima, simultaneamente acolhedora e selvagem, aberta e misteriosa. A gente, porque — ah, que inveja! — ama o seu país e o seu rico património, que sabe proteger e de que sabe desfrutar. Mas também porque, exceptuando as qualidades que referi, encontro nela traços que nos são familiares: por exemplo, um alegre desrespeito pelo «socialmente correcto». Enquanto ali ao lado, na Grã-Bretanha, as famílias da pequena burguesia botam os filhos na cama ao fim da tarde, nesta terra do trevo, nesta ilha a que chamam Esmeralda por ser de um verde tão brilhante (um presente da copiosa chuva), nós vemos os pimpolhos à noitinha, nos restaurantes e nos bares, aos lado dos pais (e das mães), que cervejam pacata e abundantemente ou bebem o seu uísque como nós, antes, bebíamos o bagaço.
E há uma outra qualidade nos Irlandeses (ou, pelo menos, em muitos Irlandeses) que eu prezo particularmente. Ela revelou-se-me na minha primeira visita, em serviço — foi então que me deixei encantar pelo país e me prometi um regresso em férias.
Tinha de percorrer longas distâncias e recusei-me a conduzir naquilo que, para mim, é o lado errado da estrada. Mas um colega, com quem viajava, declarou, com tranquila e superior segurança, que não haveria problemas, estava habituado a essas coisas, conduziria ele... só mais tarde, e tarde de mais, me explicou que a sua experiência se limitava a uma única viagem em estradas inglesas — durante a qual tivera um acidente.
Embalado na ignorância deste sombrio pormenor, aceitei a solução. E o que tinha de acontecer aconteceu: para os lados de Killarney, passámos junto de um castelo medieval. O perito condutor de volante à direita olhou-o e comentou: «Olha que castelo tão giro!»; eu respondi: «Olha o carro que aí vem!»; ele desviou-se — mas para o lado que os seus reflexos lhe ditaram, ou seja, para a direita; e a direita era o meio da estrada.
Choque frontal, felizmente a baixa velocidade. O colega a decretar «explique você, que o seu inglês é melhor». Uma senhora irlandesa em crise, tanto mais que o carro era novo e o que iria o marido dizer. Uma GNR (que lá se chama «Garda») simpática e eficiente. Regresso ao hotel de boleia, oferecida por um cordialíssimo espectador. Dois valentes uísques para recompor as emoções. E, no dia seguinte, saída em seguro táxi, para evitar males maiores.
Solução abençoada: pude, enfim, apreciar a paisagem sem ter o estômago contraído. E a paisagem era magnífica. Em certo ponto, à beira de um lago, passámos por uma casinha encantadora, que, se houvesse justiça neste mundo, seria minha; e o motorista, tanto ou mais conversador que os portugueses, informou: «Essa casa está sempre vazia. Ninguém lá fica muito tempo...». Sorrindo, perguntei se estava assombrada. E, com a maior naturalidade, ele respondeu-me:
— Não. Por acaso, esta não está.
E aqui têm a tal qualidade que tanto me impressionou e agradou.
É bom ver gente que continua a conviver com as suas tradições e com os seus fantasmas, sem se apressar a ligar para a SIC ou para a TVI na esperança de trinta segundos de protagonismo televisivo.

João Aguiar

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 06


OS ATRASADOS
      Não nos cairá bem vermos um senhor de cinquenta ou sessenta anos empoleirado num skate fazendo habilidades; estará no seu direito e não virá mal ao mundo por causa disso, mas enfim, espera-se dele uma outra maturidade. Porém, muito mais chocante ainda, no meu humilde entender, é ver um jovem comportar-se e, sobretudo, pensar como um senhor de cinquenta ou sessenta anos. Ora, é isto, mais ou menos, o que me parece ver quando leio certos trabalhos de certos jovens historiadores  portugueses  que  escrevem  e pensam agarrados a conceitos que estão mais datados do que a própria História.
Esta crónica não pretende ser uma crítica e ainda menos um ataque pessoal, de modo que não citarei nomes — que, de resto, não interessam para o caso; em contrapartida, é forçoso que cite exemplos. Assim, num (aliás, bem documentado) trabalho relativo à batalha de Aljubarrota, encontrei a noção de que as causas do conflito seriam, na sua essência, ligadas à luta de classes — e nada mais; e num outro trabalho, de outro autor igualmente bem documentado, versando as batalhas navais de Chaul (1508) e Diu (1509), deparei com a afirmação definitiva, direi mesmo dogmática, de que, excepto talvez no caso da tomada de Ceuta, as causas da expansão portuguesa se resumiriam, muito simplesmente, à furiosa fome do lucro; não está escrito dessa maneira, mas é esse o claro sentido.
Ora bem. Eu conheço e rejeito a visão histórica que o velho Estado Novo nos impingiu durante meio século. Longe de mim acreditar ingenuamente que Portugal inteiro estava, como nação em armas, no campo de Aljubarrota; ou que partimos para o império imbuídos somente de ideais puros e o sonho de dar novos mundos ao mundo e aumentar a pequena Cristandade (noção que hoje, aliás, seria de validade altamente discutível, sobretudo se o aumento fosse feito pelas armas). Mas também sei que, se é verdade que essa visão está de todo ultrapassada, também o está a visão puramente «classista» e economicista da História, que é manifestamente incompleta. Deixou, há muito, de fazer sentido considerar apenas a luta de classes e a economia como motores do devir histórico. Motores únicos, entenda-se. Porque nem o homem nem o comportamento humano podem ser reduzidos estritamente a tais factores.
Se assim fosse, e para considerar os dois exemplos referidos, não haveria em Aljubarrota, no exército de D. João I, um só membro da alta nobreza; e, entre os portugueses integrados no exército de Castela, só haveria, estritamente, grandes nobres, desprovidos da sua peonagem e outros acompanhantes e auxiliares. Do mesmo modo, no exemplo imperial, a coroa portuguesa teria abandonado, sistemática e rapidamente, as praças que não lhe rendiam sólidos metais, aquelas onde só se consumiam cabedais e vidas, sem proveito. Ora, sabemos que isto não é verdade — e este não ser verdade contribuiu para que, apesar das inegáveis rapinagens, saques e outras tropelias, terminássemos o ciclo imperial praticamente tão pobres como quando o começámos.
Em ambos os exemplos, houve, parece-me, algo mais do que um motivo único. A análise desse «algo mais» é, de resto, uma das matérias mais interessantes da pesquisa histórica. E não entendo como há gente, gente nova, que se mantém agarrada à já velha noção reducionista, que, além de ignorar os factores psicológicos, a mentalidade e os valores das várias épocas, se encerram numa torre feita de inenarrável secura e inenarrável tédio.
João Aguiar
Mosteiro da Batalha

domingo, 18 de novembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 05


PASSAGEIROS QUASE SECRETOS
Talvez seja bom sabermos que, quando viajamos pela História de Portugal, temos muitas vezes em nossa companhia alguns passageiros que raramente se mostram, a ponto de não darmos, sequer, pela sua presença. E, no entanto, essa presença é importante, porque nos ajuda a corrigir muitas noções erradas ou, pelo menos, distorcidas.
Assim, por exemplo, nós e os Mouros. Toda a gente sabe (enfim, mais ou menos) que Portugal é, em substancial parte, um fruto da reconquista cristã da Península, das Cruzadas do Ocidente. Isto é verdade. E também toda a gente sabe (mais ou menos) que, por uma consequência lógica do que atrás referi, o Mouro, islâmico, foi o inimigo hereditário do Português, cristão, que passou toda a sua esforçada vida a «dar neles», para usar uma saborosa frase medieva, sem dó nem piedade nem concessões; os bons éramos nós, os maus eram eles, pronto.
Isto é que já não é tão verdade. Eu poderia citar numerosos passageiros secretos que o segredam, mas vou limitar-me a dois. O primeiro é a lenda medieval portuguesa chamada «de Gaia» ou «do rei Ramiro», que conta como Ramiro II, rei de Leão, matou Alboazer Alboaçam, «senhor de toda a terra de Gaia, até Santarém». Não tenho espaço para contar a lenda em pormenor, porém aqui ficam os elementos essenciais. Primeiro, foi o cristão Ramiro quem iniciou as maldades, fazendo-se amigo de Alboaçam para raptar-lhe a irmã, por quem se apaixonara, sendo ele já casado; o subsequente rapto da sua mulher por Alboaçam foi uma lógica represália. Segundo, a forma como Ramiro recuperou a rainha foi traiçoeira e pouco heróica. Terceiro, a maldade final também lhe pertence, porque a seguir matou-a, com o apoio do próprio filho, depois de ela lhe ter dito que chorava «porque mataste aquele mouro que era melhor que ti». Ou seja: a figura simpática, na lenda, é Alboaçam. Trata-se de uma lenda, claro, mas ela diz muito sobre a mentalidade e o sentir da gente que a produziu e que é... a nossa gente. Não é, aliás, caso único, pois há outras lendas de mouras e mouros em que a simpatia parece ir para o «lado deles».
O segundo passageiro secreto ou quase secreto já não é lendário e sim histórico — foi, aliás, tratado em profundidade por Adalberto Alves no seu belíssimo livro As Sandálias do Mestre: trata-se de uma aliança que existiu entre o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, e o senhor muçulmano de Silves, Ibn Qasi. Essa aliança malogrou-se porque Ibn Qasi foi assassinado, porém aquilo que se sabe e/ou se pode conjecturar é extremamente interessante.
D. Afonso Henriques estava intimamente ligado à ordem dos templários, que desempenhou um papel importante na consolidação de Portugal; por seu turno, Ibn Qasi, poeta e sábio, criou uma ordem de cavalaria islâmica, os muridinos, cuja linha de pensamento estaria próxima dos ismaelitas. Ora, há muito que se fala nas relações, discretas mas cordiais, entre templários e ismaelitas, na Terra Santa. Daí ser possível, pelo menos, especular, à margem de razões políticas e estratégicas, sobre uma possível tentativa de ligação paralela entre templários e muridinos. É um facto registado que Afonso Henriques ofereceu a Ibn Qasi um cavalo, um escudo e uma lança, presentes que tinham uma clara carga simbólica, espiritual.
Como disse, a aliança malogrou-se. Mesmo assim, altera a imagem do nosso rei como um mata-mouros incondicional, tanto mais que protegeu, por exemplo, os mouros de Lisboa, após a tomada da cidade.
Por mim, gosto destes passageiros. Fazem-nos pensar.
João Aguiar 
Mértola e Alcoutim 

sábado, 10 de novembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 04


ESTADOS DE GRAÇA

Uma das utilidades da História é servir-nos de referência para o tempo presente. Assim: se atravessamos um momento de relativa prosperidade ou grande orgulho nacional, convém-nos olhar momentos passados e considerar as asneiras ou as inconveniências cometidas, para ficarmos sóbrios e evitarmos reincidências; e, em tempos deprimidos, quando o nosso moral colectivo está em baixa, é recomendável considerar outros tempos em que o país, entrado numa espécie de «estado de graça» — não sem imperfeições, evidentemente —, se colocou na vanguarda ou reagiu com eficácia a circunstâncias adversas; isto para evitar o enjoativo e destrutivo processo de autoflagelação e de indiferença que nada corrige e só destrói.
Como terão já percebido, é a esta utilização da História que vou referir-me, já que muito raramente atravessámos um período tão degradado como o actual. Precisamos urgentemente de recordar alguns «estados de graça», entre os vários que tivemos — e não incluo, sequer, o tão evocado período das navegações e descobrimentos.
Assim, convido-vos a viajar, antes de mais, até à revolução de 1383 – 1385. Estávamos, na altura, em plena crise: enfraquecidos por três guerras desastrosas, sem Rei, e na iminência de vermos aclamar D. Beatriz, que casara com o rei de Castela, o que significava, obviamente, uma união das duas coroas. Por isso se fez a revolução e ela colocou-nos na vanguarda política da Europa. Pela primeira vez, uma boa parte da população agiu como povo — uma acção política, uma acção que recusou os princípios consagrados da sucessão dinástica e os substituiu por outros, com a eleição, em cortes, de um novo rei (D. João I) que era um filho bastardo. Pela primeira vez, a «arraia miúda» levantou-se por uma causa política e juntou-se a outras classes sociais, quando não as pressionou. Pela primeira vez, uma parte substancial do país actuou como nação. Que me lembre, tal não acontecera ainda, nestes termos, em toda a Europa.
A segunda viagem leva-nos ao período que se seguiu a 1640. Novamente, um Portugal extremamente enfraquecido. Mas, apesar de todas as deficiências, é prodigioso como foi possível manter (e vencer) uma guerra que durou mais de vinte anos e que não se travou somente na frente militar nem somente dentro do rectângulo: éramos atacados em várias frentes, em toda a extensão do já decadente império, tínhamos de obter o reconhecimento diplomático da Europa, refazer o exército, a marinha — e, ao mesmo tempo, a economia. E, apesar de tudo isso, foi-nos possível salvar o principal e vencer essa guerra de mais de dois decénios.
Para a terceira viagem, não precisamos de ir tão longe no tempo: somente aos anos 70 do século XX. Refiro-me à integração do mais de meio milhão de pessoas que entraram no país, vindas de África, no início e no seguimento do processo de descolonização. Evidentemente, houve traumas, problemas, disfunções; mas, numa perspectiva global, é notável que aquela integração fosse tão rápida, tão pacífica e, julgo que podemos dizê-lo, tão eficiente. Note-se que não me refiro apenas às medidas tomadas pelas autoridades. Refiro-me também, quase diria sobretudo, à atitude dos próprios retornados e ao seu esforço; e também à população no seio da qual se instalaram ou reinstalaram. Atritos? Alguns, sim — nada que se compare ao longo trauma do regresso dos pieds-noirs idos da Argélia para França.
Repito: nenhum destes «momentos de graça» foi perfeito. A perfeição, como se sabe, não é deste mundo. Mas, dentro do possível, fizemos o melhor. E, num momento como o actual, não será descabido recordá-lo. Não para meditarmos lamurientamente sobre o passado, mas antes para...
Para acordarmos. O que já não seria nada mau.
João Aguiar
Capela da Memória - Cabo Espichel

sábado, 3 de novembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 03


JUSTA HOMENAGEM

Peço, como grande favor, que não me enviem para a fogueira, pelo menos antes de terem acabado de ler o presente texto — que é uma homenagem a um censor da Inquisição. Uma homenagem, proclamo eu, que é justa e merecida.
Passo a explicar: um belo dia, na década de 70 do século XVI, um frade dominicano, censor do famoso, temido e sinistro Santo Ofício, recebeu a tarefa de dar parecer sobre um livro que fora submetido àquele tribunal, para efeitos de eventual publicação. O livro consistia num longo poema, recheado de episódios eróticos, divindades pagãs, descrições de voluptuosos corpos femininos, contestações à situação político-social, lamentos sobre a decadência das classes dominantes. Continha, pois, matéria mais do que suficiente não só para ver recusada a licença de publicação como ainda para ser queimado, em prólogo ominoso do que poderia vir a acontecer ao seu autor.
E que fez o censor da Inquisição? Pegou beatamente na sua pena, aguçou-lhe a ponta, mergulhou-a no tinteiro e escreveu que, tendo lido aqueles versos, não achey nelles cousa algua escandalosa nem contrária â fe & bõs custumes. Mais ainda: referindo-se à presença constante dos deuses pagãos no tal poema — em que, a dada altura, Júpiter só por pouco não faz um filho a Vénus, em público —, ele comentou que isto he Poesia & fingimento (...) e por isso me pareceo o liuro de se imprimir. Incluía também no parecer um elogio ao grande engenho do escritor.
Os leitores já terão adivinhado do que se trata, mas não resisto a transcrever o início do texto inquisitorial: Vi por mandado da santa & geral inquisição estes dez Cantos dos Lusiadas de Luis de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizerão em Asia & Europa...
Exactamente. O censor do Santo Ofício era Frei Bartolomeu Ferreira, o livro era Os Lusíadas, o autor Luís de Camões. E é preciso conhecer um pouco da mentalidade oficial da época para entender quão anormal, quão escandaloso foi o parecer dado pelo frade dominicano. E escandaloso, atente-se, não só para a época: um Camões do século XX veria certissimamente recusada a sua obra durante o período do Estado Novo.
Evidentemente, houve motivos para que tal acontecesse. António José Saraiva, na sua edição de Os Lusíadas, salienta-os: Camões era amigo e protegido do conde de Vimioso, que, além de ser um grande senhor, tinha valimento; lavrava uma guerra surda mas sem quartel entre os jesuítas, que dominavam a corte, e os dominicanos, que dominavam o Santo Ofício; estes contavam com o apoio da rainha viúva, Catarina de Áustria, já afastada do governo, porém ainda com alguma influência, e note-se que fora ela quem patrocinara a primeira edição das obras completas do também «perigoso» Gil Vicente. Houve, segundo as palavras de Saraiva, uma pequena conspiração visando levar ao prelo o poema épico de Camões — uma conspiração bem sucedida, como sabemos e como folgamos.
E veja-se como as posições, as ideias os valores, estavam baralhados naquele específico momento da nossa História. Os jesuítas tinham uma tradição de cultura e até de certa tolerância, mormente na sua actuação em terras do Oriente e particularmente na China; os dominicanos, nesse domínio, haviam-se mostrado bem mais literalistas e rigorosos — além de terem a Inquisição nas mãos. No entanto, foi graças a eles, em especial a Frei Bartolomeu Ferreira, que o mais genial texto português foi publicado.
Fossem quais fossem os motivos, estou-lhes muito grato.
João Aguiar
Os Lusíadas na calçada portuguesa. Jardim de Camões - MACAU

terça-feira, 30 de outubro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA


A FRAUDE HONESTA

O destino desta viagem é Alcobaça; a sua época, o século XVII. Entremos sub-repticiamente no cartório do mosteiro e observemos aquele monge, além, muito ocupado a escrever. Não sabemos — ninguém sabe — quem ele é, mas, aqui para nós, está a fazer algo de muito importante: em pleno século XVII, escreve a cópia de um original do século XII. E, o que é ainda mais importante: como esse original nunca existiu, o monge está a inventá-lo. Assim, graças a esta esclarecida acção, vão entrar na História as Cortes de Lamego.
Façamos o enquadramento. Em 1632, ou seja, a época final da dominação filipina, Frei António Brandão publicou o terceiro volume da obra Monarquia Lusitana e nele incluiu, com uma advertência sobre a sua duvidosa credibilidade, um documento que seria a cópia tardia das actas de umas cortes que se teriam realizado em Lamego, em data posterior à da batalha de Ourique, para proceder à coroação solene de D. Afonso Henriques e estabelecer uma lei fundamental para o novo reino português. Para aqueles que em 1632 ansiavam pela restauração da independência e sonhavam já fazer da casa ducal de Bragança a nova dinastia real portuguesa, as decisões dessas cortes, sobre as quais, até então, ninguém ouvira ou lera uma só palavra, eram uma bênção caída do Céu: os princípios da sucessão no trono nelas consagrados tornavam virtualmente ilegítima a realeza dos Filipes em Portugal, tanto mais que, entre outros elementos importantes, impunham claramente a noção de que nenhum príncipe estrangeiro poderia reinar sobre os Portugueses; e, para completar o quadro, sustentava-se também um outro princípio: o da legitimidade da revolta popular contra o soberano que não respeitasse as liberdades, garantias e compromissos consignados naquelas actas.
Deste modo, discretamente, por vias de um documento cuja autenticidade não era assegurada mas que, apesar disso, se publicava, ficavam lançadas as bases jurídicas para um levantamento contra a dinastia que reinava a partir de Madrid. E isto não caiu em saco roto: oito anos mais tarde, a Restauração de 1640 tomaria as actas das Cortes de Lamego como uma das principais bases jurídicas e políticas da legitimidade e legalidade não só do movimento do 1º de Dezembro como da nova dinastia de Bragança.
Todos os historiadores actuais vos dirão, com inteira propriedade, que as Cortes de Lamego não existiram e que, portanto, as suas actas são falsas. Não tanto pelo facto de não haver outros documentos coevos a corroborá-las, o que já é significativo, mas enfim, poderiam ter-se perdido; mas porque um acontecimento tão importante seria fatalmente citado em diplomas posteriores e, sobretudo, porque as actas contêm erros e anacronismos graves.
E, no entanto, a fraude acaba por revelar-se menos... fraudulenta do que possa parecer. Ao reunir, um pouco desajeitadamente, os elementos que usou, o seu desconhecido autor coligiu, afinal, os princípios mais importantes daquilo a que podemos chamar o direito público português, contidos em capítulos de outras cortes realizadas sob as duas primeiras dinastias (e verdadeiras, essas), em testamentos reais, que eram também fontes de direito, e ainda no costume, que tinha, na época, uma força jurídica importante. Para dar apenas um exemplo, o preceito estabelecendo que um príncipe estrangeiro não podia reinar em Portugal fora estabelecido, por via revolucionária, em 1383 – 85 e fora ele que colocara D. João I no trono. Deste modo, as actas de Lamego, embora inventadas, não eram uma pura invenção...
Por isso, deixemos aquele monge, além, trabalhar calmamente e regressemos, nos bicos dos pés, ao século XXI, sem o perturbarmos no seu labor.
 João Aguiar
Vitrais do Mosteiro da Batalha

sábado, 27 de outubro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA


ANTES DO PRINCÍPIO

Estas «Viagens na História» realizam-se, como o seu próprio nome indica, no espaço e no tempo. E a primeira para a qual vos convido é ao Minho, no século XI. Nessa época, ainda D. Afonso Henriques não tinha nascido nem chegara à Península o quarto filho do duque de Borgonha, um brilhante cavaleiro chamado Henrique.
Havia já uma terra portucalense, então sujeita ao rei da Galiza — Garcia, filho de Fernando I de Leão e Castela e que, por morte deste, herdara aqueles dois territórios. Porém, segundo um cronista, a maior parte desse Portugal primitivo reconhecia como senhor um vassalo de Garcia, o conde Nuno Mendes, e este revoltou-se contra o rei, chefiando, assim, um movimento de emancipação. Tentativa malograda, aliás: numa batalha travada em 1071, entre os rios Cávado e Ave, as tropas do conde foram derrotadas por Garcia e o próprio Nuno Mendes morreu em combate — diga-se, a propósito, que o vencedor também não viria a ter muita sorte, pois acabou os seus dias no cativeiro, aí colocado pelo próprio irmão, Afonso VI, o avô materno de Afonso Henriques.
Mas voltemos ao conde Nuno Mendes. Alguns historiadores consideram que a sua rebelião não teve um significado profundo — seria apenas um dos muitos sobressaltos políticos em que a época era fértil —, enquanto outros sustentam que se tratava já de uma manifestação da vontade portuguesa de afirmar a independência (note-se que, por «vontade portuguesa», temos de entender a vontade dos nobres e, eventualmente, de uma parte do alto clero; o povo, como entidade política, não existia então). Entretanto, se a Crónica dos Godos não mente e os factos ocorreram, resta que este episódio é, de qualquer forma, como que um prelúdio, ainda que relativamente longínquo, à fundação do reino de Portugal e mereceria talvez ficar na nossa memória; julgo, no entanto, que o bom povo português, que sabe na ponta da língua quem é Deco e quanto Luís Figo ganha por mês, está olimpicamente em branco no que se refere a Nuno Mendes, a menos que exista um jogador de futebol com esse nome, coisa que, confesso o meu grave pecado, ignoro.
Mesmo entre aqueles que sentem algum interesse pelas nossas raízes, esta personagem é largamente desconhecida. Em compensação, toda a gente (mais ou menos) sabe (mais ou menos) quem foi Viriato e considera-o como um antepassado quase directo, noção nebulosa que contém algum exagero. Sem dúvida, é uma figura interessante — nem me conviria dizer o contrário, já que escrevi um romance sobre a sua vida; sem dúvida, também, a história do chefe lusitano faz parte do nosso legado. Em todo o caso, não deixa de ser curioso que tantos autores portugueses, antigos e modernos, se hajam debruçado avidamente sobre Viriato, que viveu no século II antes de Cristo, bem longe no tempo da formação da nacionalidade, e poucos tenham sido aqueles que se interessaram pelo conde Nuno Mendes, que viveu no século XI depois de Cristo e morreu menos de cem anos antes da batalha de S. Mamede, a «primeira tarde portuguesa», como já lhe chamaram.
Aliás, quando nós pensamos no nosso passado remoto — o que, vamos lá, não acontece muitas vezes —, as imagens que nos surgem são: Viriato, depois, num grande salto, D. Afonso Henriques desrespeitando a senhora sua mãe (e não foi bem assim...) e por fim a luta contra os Mouros. O quadro é, confessemos, um bocado desértico.
Por isso, aqui fica, nesta viagem ao Minho do século XI, esta recomendação do guia: «À vossa direita, entre o Ave e o Cávado, podem ver o conde portucalense Nuno Mendes a combater contra Garcia, rei da Galiza. Vai ser trucidado, mas que fique a lembrança».
João Aguiar

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

PEQUENOS TEXTOS


TRÊS PALAVRAS SOBRE WOLFGANG AMADEUS
Primeira — Comecei, não sei porquê, a gostar da chamada «música clássica» aí por volta dos meus onze anos. Aos quinze, sobre tal matéria, eu tinha — como é costume ter nessa idade — uma opinião perfeitamente clara, definida, intransigente e imutável. A história da música dividia-se em «Antes de Richard Wagner» e «Depois de Richard Wagner»; e Wagner era o único compositor inteiramente digno desse nome, o génio único e absoluto. Quanto a Mozart, o meu juízo estava também definido: Mozart era um chato.
O que se passa, com os quinze anos, é que muito brevemente se transformam em dezasseis e dezassete e por aí fora; e, ao mesmo tempo que a acne juvenil vai desaparecendo, desaparecem também as certezas claras, definidas e imutáveis. Portanto, e quase sem dar por isso, entrei num processo de maturação e assimilação musical que, sem abandonar Wagner, me levou para Richard Strauss, depois me fez saltar para Stravinsky e logo a seguir, algo inesperadamente, para os italianos, de Rossini a Pizzetti. Foi só então que me virei para o século XVIII e descobri o Vivaldi das «Quatro Estações» e, mais tarde, os portugueses — e por essa altura já eu me havia dado conta, finalmente, de que começara a gostar muito de Mozart. Levei tempo, mas cheguei lá.
O que, a meu ver, mostra duas coisas: primeira, o carácter caótico e inteiramente amador da minha cultura musical, que é uma simples manta de retalhos cosida ao sabor da simples e deseducada sensibilidade; segunda, o facto de Mozart ter sido, para mim, um «prémio de maturidade». Foi-me preciso perder, não a acne exterior mas a interior, para chegar até ele. E, quando cheguei, compreendi não só que valera bem a pena mas ainda que teria sido uma catástrofe pessoal eu ter ficado na fase do «Mozart é um chato», impermeável e insensível à sua música.

Segunda — De certo modo, o que hoje mais me impressiona e atrai em Mozart é — por paradoxal que pareça — aquilo que nos separa. Eu precisei de longos anos de maturação para chegar a entender a sua música; ele nasceu quase como a deusa Atena, que brotou de Zeus já crescida, vestida e armada, pronta para a luta. A precocidade de Mozart deixa-nos atordoados: aos cinco anos compunha minuetes, aos onze cantatas completas, aos doze compunha óperas, aos catorze compôs o «Mitridate, Re di Ponto». Como foi possível? Não basta responder: era um génio. A interrogação mantém-se: como foi possível?
Só à custa de um profundo desequilíbrio. E, ainda assim, esta violência íntima que é ser capaz de compor uma ópera completa aos catorze anos tem, necessária e fatalmente, de ser paga em trauma em desgaste. Sim, fica-se com a sensação de que «algo», nele, tinha de rebentar…
E rebentou, como sabemos. A sua desordem pessoal é o sinal e a prova. E não podemos admirar-nos com a sua morte aos trinta e cinco anos: Mozart esgotou, nesses trinta e cinco anos, toda a energia, toda sua força vital de um século inteiro. O que mais lhe restaria fazer neste mundo?

Terceiro — Genialidade, precocidade, ambas levadas até ao (ou mesmo além do) ponto-limite possível e concebível. Mas também atordoa nele a modernidade.
Não sou músico, nem sei música. Isto poderá ser lamentável, porém não impeditivo: tal como sou, basta-me ouvir o «Requiem» ou a cantata maçónica «Dir, Seele des Weltalls, o Sonne» ou ainda a ária «Fra l’oscure ombre funeste», do «Davidde penitente», para perguntar-me, sem esperança de resposta: «Mas esta é mesmo música do século XVIII?». E menciono somente estes três exemplos.
Dito isto, não encontro nada mais para dizer. Há temas para os quais as palavras não chegam: torna-se necessária a música…

João Aguiar

Lugar dos Moinhos - Ponte de Lima