sábado, 24 de agosto de 2013

PEQUENOS TEXTOS


O ITINERÁRIO DO SORRISO
 
Depois de tudo o que se tem dito e escrito sobre Os Lusíadas, cabe perguntar humildemente: restará alguma coisa para dizer ou escrever?
A resposta a esta pergunta será, evidentemente — Sim.
Não há aqui quebra de humildade. O mérito da resposta pertence bem mais a Camões do que a nós, que o estudamos. Penso que esta é, aliás, uma das características mais notáveis do poema, a par da sua incomparável beleza formal: conter uma riqueza e uma densidade tais que após quatro séculos de leitura ainda nos é possível explorar esse universo

encantado de palavras, imagens, ideias, ritmos — e quase diria também cores, odores e sons — e, ao explorá-lo, encontrar nele novas aventuras, novas terras, novos rios. Ainda que outros por lá hajam passado e deixado o seu padrão e desenhado cartas de marear. Porque é-nos sempre possível implantar novos padrões e traçar novas cartas, segundo a nossa maneira de ver e de «respirar» Os Lusíadas.
A carta de navegação que aqui proponho não é mais do que um esboço e, seria escusado dizê-lo, não relata um verdadeiro descobrimento, pois muitos outros hão-de ter seguido o mesmo itinerário, porém não me recordo de o ver exposto de forma sistematizada e nítida. Ainda que tal sistematização exista, não é certamente das mais conhecidas.
Uma coisa posso garantir: não encontrei este itinerário nos bancos da escola, quando me ministraram Os Lusíadas como se de um remédio amargo e particularmente indigesto se tratasse, uma leitura atravancada com a divisão de orações e os complicados nomes das figuras de linguagem - zeugmas, anástrofes, apóstrofes, hipérboles, sinédoques, prosopopeias... enfim, o bastante para levar qualquer adolescente a erguer à sua volta as barreiras defensivas da rejeição: Camões nunca mais, não gosto e não quero.
Pela parte que me toca, após haver completado o antigo liceu, precisei de sete anos para reencontrar Os Lusíadas e para me reencontrar, finalmente seduzido, em Os Lusíadas.
A abordagem que pretendo esboçar não teria esse inconveniente. Ela teria, estou certo, efeitos bem diferentes, pois ofereceria uma iniciação mais fácil, mais segura e capaz de criar entre os jovens iniciados e o poema um laço duradouro, porque afectivo.
É a abordagem pelo humor (que, espero torná-lo claro, depressa se transforma em abordagem pelo amor).
Chamo-lhe «itinerário do sorriso». Porque o humor, na sua forma mais inteligente e nobre — aquela que, justamente, encontramos em Os Lusíadas —, não tem de fazer rir a bandeiras despregadas. Essa é a função da farsa, igualmente nobre, porém diferente. O humor é sobretudo sorriso, alusão velada, insinuação.
Uma primeira observação: em Os Lusíadas, poema épico, o humor encontra-se, não poucas vezes, associado ao erotismo, mais do que ao heroísmo. O que, aliás, é compreensível, dado a sua natureza ser de certo modo idêntica à natureza do erotismo: se o humor tem pouco a ver não só com a farsa mas também com o riso desbragado e truculento, o erotismo, ao contrário do que parece julgar uma brutal concepção contemporânea, pouco ou nada tem a ver com pornografia. O humor sorri apenas; e o erotismo apenas sugere. Deixa entender mais do que afirma, entreabre portas sem as escancarar.
E, para o caso que nos interessa, ele é um poderoso atractivo suplementar que o Itinerário do Sorriso oferece como iniciação destinada à juventude. Não cabem aqui, penso eu, escrúpulos moralistas, pois a juventude, nos nossos dias, é bombardeada desde a mais tenra e inocente idade não apenas com mensagens eróticas mas até com outras que transportam a mais clara pornografia. Nas circunstâncias actuais, o humor erótico de Camões será, sem a menor dúvida, uma saudável sublimação e mesmo uma pedagogia.
Consideremos, antes de mais, esta célebre passagem (Canto II, 36):

Os crespos fios de ouro se esparziam
Pelo colo, que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava e não se via
Célebre, referi acima. Pelo menos, na memória juvenil de toda uma época. Duvido que entre os estudantes da minha geração — e das seguintes — houvesse um só que desconhecesse estes versos, a cena em que Vénus vai suplicar a Júpiter, rei dos deuses, protecção para a armada de Vasco da Gama. E no entanto, esse trecho nunca era lido nas aulas, nem sobre ele se praticava a divisão de orações.
É certo que não se encontra aqui uma alusão propriamente humorística, porém o exemplo serve para mostrar como é possível, começando pela «leitura acanalhada» que, fatalmente, será a primeira que os adolescentes de hoje — tal como os de ontem — hão-de fazer, passar a outras leituras. Porque a irresistível beleza dos versos não deixará de, com a ajuda inteligente do professor, exercer a sua magia.
Quanto ao humor, ele está bem presente nesta mesma cena protagonizada por Vénus e Júpiter:

C'um delgado cendal as partes cobre
De quem vergonha é natural reparo,
Porém nem tudo cobre nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, para que o desejo acenda e dobre,
Lhe põe diante aquele objecto raro.
(Canto II, 37)

Há certas divergências quanto ao significado da expressão «roxos lírios», de que o véu de Vénus é pouco avaro. Porém, seja ele a pele avermelhada das partes pudendas, como pensa Afrânio Peixoto, seja antes o roxo das pontas dos seios, este jogo do «nem tudo cobre nem descobre» apela, inegavelmente, ao sorriso.
E o sorriso regressa mais adiante, quando Júpiter, comovido mas sobretudo seduzido, consola a deusa do amor:

As lágrimas lhe alimpa, e acendido
Na face a beija, e abraça o colo puro;
De modo que dali, se só se achara,
Outro novo Cupido se gerara.
(Canto II, 42)

Depois, no Canto VI, quando Neptuno convoca as divindades marinhas, eis como surge retratada a sua belíssima esposa:

Vestida ua camisa preciosa
Trazia, de delgada beatilha,
Que o corpo cristalino deixa ver-se,
Que tanto bem não é para esconder-se.
(Canto VI, 21)

Também será difícil não sorrir na cena em que Vasco da Gama, ao entrar no palácio do Samorim, admira as esculturas do portal e nelas vê
Mui grande multidão da assíria gente,
Sujeita a feminino senhorio
Dua tão bela como incontinente;
Ali tem, junto ao lado nunca frio,
Esculpido o feroz ginete ardente
Com quem teria o filho competência.
Amor nefando, bruta incontinência!
(Canto VII, 53)

Esta passagem merece uma atenção especial. Primeiro porque o professor que a quisesse descodificar e analisar em plena aula poderia fornecer aos seus alunos alguns dados históricos e lendários que em tempos fizeram parte da nossa cultura geral e cujo regresso ao conhecimento dos jovens portugueses seria talvez uma interessante contribuição para a riqueza do seu espírito, mesmo que não conste dos programas oficiais do ensino. O professor explicaria, pois, que a «bela incontinente» é a tão cantada Semiramis, rainha da Assíria, a quem é atribuída a construção dos célebres jardins suspensos de Babilónia (aqui entraria uma pequena divagação sobre Assírios, Caldeus, a Mesopotâmia em geral...) e cuja luxúria era tão intensa e aberrante que teria mantido relações íntimas com o próprio filho — e com um cavalo, o tal «feroz ginete ardente» que Camões ali coloca junto ao lado «nunca frio» da rainha. Também não faria mal acrescentar que Semiramis inspirou pelo menos duas óperas, uma de Rossini e outra de Marcos Portugal, compositor que no seu tempo foi famoso em toda a Europa (e que nós hoje relegamos para a apagada e vil tristeza do esquecimento).
Em segundo lugar, porque nesta mesma passagem se descobre a vontade clara, consciente e deliberada do poeta: ele quer o sorriso do leitor, nesta cena. Para isso introduz nela uma descrição que não tem justificação aparente, seja histórica, dramática, narrativa ou outra. A justificação está, precisamente, em fazer-nos sorrir com a evocação de Semiramis e do seu lado nunca frio e do seu amante equino.
Finalmente, no episódio erótico por excelência, o da Ilha dos Amores, vamos encontrar a tripulação da armada explorando os bosques à procura de caça e avistando, em vez de animais, as ninfas e deusas que Vénus ali reuniu para deleite dos navegantes...

Dá Veloso, espantado, um grande grito:
— «Senhores, caça estranha — disse — é esta!
(Canto IX, 69)

E logo a seguir, entusiasmado:
Sigamos estas deusas e vejamos
Se fantásticas são, se verdadeiras!»
Isto dito, velozes como gamos,
Se lançam a correr pelas ribeiras...
(Canto IX, 70)

O que depois se passa é conhecido e não faz parte do objecto desta simples exposição. Mas como não encontrar aqui, novamente, um sorriso feito de malícia e de alegria?
Permita-se-me agora uma curta divagação para prestar homenagem, também ela sorridente, a... um censor do Santo Ofício, imagine-se. Mais concretamente, a Frei Bartolomeu Ferreira, o autor do parecer que tornou possível a publicação de Os Lusíadas. Pelos seus olhos inteligentes ou demasiado distraídos — possibilidade esta que não me parece crível — passaram todos estes versos, todas estas imagens, os roxos lírios de Vénus, o quase incontido desejo sexual de Júpiter, o corpo magnífico de Tétis, Semiramis e o seu ginete, os gracejos de Veloso. E depois de ter lido tudo isto, o que ele escreveu sobre o poema foi: Vi por mandado da santa & geral inquisição estes dez Cantos dos Lusiadas de Luis de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizerão em Asia & Europa, e não achey nelles cousa algua escandalosa nem contrária â fe & bõs custumes...
Excelente Frei Bartolomeu. Limitou-se depois a advertir o leitor a propósito da constante intervenção dos deuses pagãos, mas logo explicou que isto he Poesia & fingimento (...) e por isso me pareceo o liuro de se imprimir.
A censura do Estado Novo não seria talvez tão tolerante para com um novo Camões — e não o seria, de certeza, se ele em vez de escrever um poema houvesse realizado um filme.
Todavia, não é só no seu componente erótico que o poema segue o itinerário do sorriso.

Vereis o Mar Roxo, tão famoso,
Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado,

Declara Júpiter a Vénus no Canto II (49). E depois, no Canto V (35), encontramos a cena em que todos certamente pensam quando se fala de humor em Os Lusíadas. Ela faz parte do célebre episódio do marinheiro Fernão Veloso — justamente aquele que, mais tarde, bradará: «caça estranha é esta!».
O meu propósito não é narrar o episódio, sobejamente conhecido. Recorde-se apenas que quando a armada do Gama se encontra na baía de Santa Helena, os navegadores portugueses entram em contacto com os indígenas; e que Veloso, espírito aventureiro e não pouco gabarola, acaba por pedir autorização para os acompanhar: ir com eles ver a povoação que tinham, pera trazer algua mais notícia da terra do que eles davam, como conta João de Barros na primeira Década da Ásia. Acaba por regressar a correr, perseguido pelos naturais, e tem de ser recolhido à pressa pelo batel enquanto se trava uma refrega em que o próprio Vasco da Gama é ferido. Já ao largo,

Disse então a Veloso um companheiro
(Começando-se todos a sorrir):
— «Olá, Veloso amigo, aquele outeiro
É melhor de decer que de subir...»
— «Sim, é, — responde o ousado aventureiro —
Mas, quando eu para cá vi tantos vir
Daqueles cães, depressa um pouco vim,
Por me lembrar que estáveis cá sem mim.»

Eis, numa penada, todo o quotidiano da vida de bordo, os gracejos, a camaradagem alegre — e, novamente, o sorriso...
No canto seguinte, é Baco o alvo de Camões, que o descreve a penetrar nos domínios de Neptuno para incitar este contra os Portugueses. O deus do mar, avisado

Da vinda sua, o estava já aguardando.
Às portas o recebe, acompanhado
Das Ninfas, que se estão maravilhando
De ver que, cometendo tal caminho,
Entre no Reino da água o rei do vinho.
(Canto VI, 14)

E atente-se, no decurso deste mesmo episódio, à forma como Camões descreve Tritão:

Os cabelos da barba e os que decem
Da cabeça nos ombros, todos eram
Uns limos prenhes de água, e bem parecem
Que nunca brando pente conheceram;
Nas pontas pendurados não falecem
Os negros mexilhões, que ali se geram.
Na cabeça, por gorra, tinha posta
Ua mui grande casca de lagosta.
(Canto VI, 17)

Finalmente, gostaria de referir uma outra passagem do Canto VI (65), integrada no Episódio dos Doze de Inglaterra:

Algum dali tomou perpétuo sono,
E fez da vida ao fim breve intervalo;
Correndo algum cavalo vai sem dono
E noutra parte o dono sem cavalo.

Uma vez referenciadas todas estas estações do nosso itinerário, que mais resta para dizer?
Apenas importa, julgo, salientar a forma como o sorriso que ele propõe nos aproxima de Os Lusíadas e do seu autor.
Pelo seu estro épico, pela característica ímpar de ser o grande poema nacional — e de o ser com qualidade literária também ímpar —, a obra, como é evidente, está-nos indissoluvelmente ligada, a nós, Portugueses, pelo menos enquanto quisermos ser um povo, uma nação e um país. Porém essa ligação é, digamos, colectiva e portanto impessoal. É uma ligação profunda e importante, mas não podemos, enquanto indivíduos, transportá-la permanentemente na nossa consciência, porque ninguém consegue viver — e ainda bem — em permanente estado de exaltação heróica, seja ela nacional (isto é, patriótica) ou internacionalista. Esse era o sonho, aliás não-inocente, dos regimes totalitários, de direita e de esquerda, que assolaram o nosso século XX.
Contudo, enquanto indivíduos, um outro laço pode ligar-nos a Camões e a Os Lusíadas de uma forma permanente, como sentimento afectivo pessoal, vivo e actuante em cada um de nós. Direi mesmo que esse laço revelar-se-á natural, quase inevitável, desde que estejamos dispostos a seguir o Itinerário que proponho. Porque então, Camões, que nos é distante pelo génio, há-de revelar-se-nos tão próximo como um irmão, pelo espírito, a vivacidade, o humor portugueses.
Não há sequer moralismo na sua ironia, não se trata de aplicar a máxima castigat ridendo mores. É antes malícia alegre e pura, daquela que ainda hoje, em termos apenas diferentes mas ainda coincidentes, encontramos em nós mesmos, no dia a dia.
Quando Tétis aparece vestida com uma camisa de delgada beatilha, ele acrescenta: Que o corpo cristalino deixa ver-se, / Que tanto bem não é para esconder-se. O que corresponde, evidentemente à moderna chalaça: «O que é bom é p'ra se ver».
O grito de Veloso, Senhores, caça estranha é esta! podia, com palavras menos elegantes mas não muito diversas, ser repetido por um qualquer galã de praia moderno ao deparar com um grupo de raparigas tomando banho de sol numa duna.
O Mar Vermelho que fica amarelo, de enfiado ao ver as vitórias portuguesas, eis uma imagem que nos parece muito próxima da que hoje seria usada.
Passarei sem me deter no episódio em que Fernão Veloso foge a bom fugir dos Africanos na baía de Santa Helena, pois a cena — sobretudo a resposta que ele dá aos companheiros — encontra tão claro eco em várias anedotas contemporâneas que me parece inútil dizer mais do que já disse. E o mesmo é válido para a descida de Baco aos fundos marinhos, esse momento em que as Ninfas se espantam que entre no Reino da água o rei do vinho.
Mas atente-se na forma como é descrito Tritão: Os cabelos da barba e os que decem / Da cabeça nos ombros, todos eram / Uns limos prenhes de água, e bem parecem / Que nunca brando pente conheceram; / Nas pontas pendurados não falecem / Os negros mexilhões, que ali se geram. / Na cabeça, por gorra, tinha posta / Ua mui grande casca de lagosta...
Este Tritão desmazelado e feio, que nunca se penteia e que se passeia pelos mares com uma casca de lagosta na cabeça: não corresponderá ele ao que poderia gerar a imaginação jocosa de um adolescente (ou não poderá ser ele também o auto-retrato humorístico do próprio adolescente?)
É neste contexto, neste ambiente familiar em que há calor humano e alegria, que podemos encontrar, como sugeri, uma nova aproximação a Os Lusíadas. E se acaso, seguindo este itinerário, os estudantes de hoje saírem da escola apaixonados pelo poema, transportando-o na memória e no coração, ter-se-á dado um grande passo na educação da juventude.
 
                                             João Aguiar

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