terça-feira, 28 de dezembro de 2010

RIO DAS PÉROLAS – conto I

O  Deus dos pássaros
A gaiola que o Quim me ofereceu era uma das mais belas que alguma vez vi à venda em Macau. Tenho um fraco pelas gaiolas chinesas, grandes, médias ou pequenas, simples ou trabalhadas. Lembro-me bem que, da primeira vez que visitei o jardim de Lou Lim Ioc, fiquei fascinado ao ver dezenas de gaiolas penduradas nos ramos das árvores, enquanto os donos, na sua maior parte velhos patriarcas chineses, repousavam pachorrentamente à sombra, lendo o jornal, conversando ou deixando perder o olhar em quem passava, enquanto ouviam os trinados das aves que haviam trazido a espairecer.
Mas aquela era especial, embora me seja difícil explicar porquê. Vista de perto era igual a tantas outras, igual a essas que se vêem sob as árvores ou sobre a relva dos jardins de Macau: a base de bambu, enfeitada com entalhes, os poleiros – dois – também de bambu, os comedouros de porcelana branca pintada com desenhos representando pequenas flores azuis. À distância, porém – e quando digo distância, digo dois ou três metros, não mais –, parecia ganhar uma beleza especial, uma delicadeza invulgar.
Esta característica, de certo modo estranha, era notada por todos quantos a observavam. Quanto a mim, havia uma outra razão para ela ser um objecto muito especial: assistira à sua aquisição e julgo que nunca esquecerei esse acto.
O Quim comprou a gaiola numa loja pequena que justamente só vendia gaiolas, bem perto do Mercado Vermelho. O que houve de inesquecível na compra foi que ele regateou o preço durante uns bons vinte minutos e conseguiu um desconto de quase cinquenta por cento – sem saber, sequer, dizer «ai» em cantonense, o que não seria extraordinário se o vendedor falasse português. Não era esse o caso.
E no entanto, isto não o impediu de dizer ao lojista: – Vá lá, faça um desconto maior por ser para mim. Já reparou que sou quem lhe está a comprar essa gaiola? Não é ali a vizinha do lado, sou eu!
O lojista, que nunca o vira antes e de qualquer modo não percebia uma palavra, ria muito, o Quim também, depois o outro escrevia num pedaço de papel uma quantia inferior à que tinha pedido minutos antes, por sua vez já inferior ao preço inicial. Eu sentia-me um pouco embaraçado, e, de nós três, era o único que não estava divertido. Quando saímos, virei--me para o meu amigo, que transportava orgulhosamente a sua compra na mão direita, e disse-lhe que não havia grande razão para vaidades:
— O preço que ele aceitou é com certeza aquele em que o homem tinha pensado logo no princípio, podes estar certo. O excedente inicial era só a margem para discussão, para te fazer crer que conseguiste uma pechincha.
Raciocínio eminentemente lógico, porém desmentido três ou quatro minutos mais tarde, quando um jovem pai macaense, que passou por nós carregado com o seu bebé, nos fez parar e perguntou onde tínhamos comprado uma gaiola tão bonita. O Quim deu-lhe a informação pedida e acrescentou o que lhe havia custado.
— Só isso?! – exclamou o outro – Olhe que foi uma óptima compra!
É inenarrável o olhar de triunfo que o Quim me lançou.
Depois desse olhar, estendeu a mão que segurava a gaiola e disse: – Toma, comprei-a para ti.
Passo por alto os meus protestos e agradecimentos e também o facto de não me ter feito rogado. Entretanto, uma gaiola vazia é como um jardim sem flores e punha-se o problema de arranjar-lhe um inquilino. Era um problema, repito, porque eu gosto do objecto em si, porém não gosto de ter aves aprisionadas.
— Há aqueles passarinhos artificiais – lembrou o Quim –, cobertos de penas e tudo, parecem mesmo verdadeiros.
Mas, repliquei, eu nunca vira esse artigo à venda nas lojas de Macau. Seria preciso ir a Hong Kong, ou talvez em Zhuhai, naquele mercado...
Ele interrompeu-me, disse que a questão não lhe parecia uma sangria desatada, da próxima vez que um de nós fosse a Hong Kong traria um passarinho, não começasse eu com as minhas impaciências de criança.
Conformei-me. Não tinha melhor remédio, aliás.
Porém, logo no dia seguinte, aconteceu-me passar em frente àquela tão conhecida loja a que, por uma razão qualquer que eu desconheço, se dá o nome de «Mariazinha», nome que, de resto, figurava na tabuleta por debaixo da designação chinesa.
Um simples acaso, aparentemente. Como também foi um aparente acaso que me fez olhar para a montra e ver, pousado sobre uma flor de jade, um pequeno pássaro vermelho, exactamente aquilo que eu queria para povoar a minha gaiola. Um acaso, ainda, que o passarinho ali estivesse, já que, segundo me informou o proprietário da «Mariazinha», era peça única e não estava à espera de receber mais.
Com tantos acasos eu devia pôr-me de sobreaviso, porém todos nós tendemos a desprezar estes pequenos acontecimentos, justamente porque são pequenos. Porém, como dizia uma grande amiga minha, citando um antigo poeta chinês: A flor do acaso brota da árvore do imprevisto.
(Descobri entretanto esta mesma frase num opúsculo quase desconhecido de Laprunelle, impresso em Avignon, datado de 1780; por outro lado, um professor universitário de Xangai afiançou-me com toda a firmeza que nenhum poeta chinês disse ou escreveu isto. Suspeito que andam por aí, em vozes ocidentais, muitas outras citações de mestres orientais cuja origem é igualmente discutível.)
Encurtando razões: comprei o passarinho artificial, levei-o para casa e meti-o na gaiola, fixando-o ao poleiro superior. Fazia bela figura e era tão perfeito que muita gente o julgava verdadeiro, de penas e osso, e só descobria a sua verdadeira natureza ao reparar que ele se mantinha perenemente imóvel.
Foi ao cabo de duas semanas que, sem qualquer razão, comecei a sonhar com a gaiola e com o passarinho vermelho. Em si, o facto não tem nada de extraordinário, ou melhor: os meandros do nosso inconsciente têm por vezes erupções extraordinárias, porém a isso estamos já habituados e se eu sonhasse uma ou duas vezes com os dois objectos não veria nisso mais que um acontecimento curioso. Porém sonhei muitas vezes e, o que me perturbava ainda mais, era um sonho recorrente, sempre o mesmo. Encontrava-me de repente num jardim (sabia que era um jardim porque havia árvores e plantas e flores), com a gaiola na mão, e tentava prendê-la a um ramo. Depois, acordava.
Muito simples e nada assustador, como se vê. No entanto, comecei a ficar assustado, justamente por causa daquela obsessiva repetição do sonho. Procurei explicações, não as encontrei. Cheguei a considerar seriamente a eventualidade de consultar um psicólogo. Tê-lo-ia feito se acreditasse em psicólogos.
Um amigo, profundo conhecedor das coisas de Macau, ofereceu--se para me levar a um astrólogo chinês; recusei por uma questão de lógica ocidental e limitei-me a esperar a normalização da minha vida onírica.
Mas o sonho repetia-se. Enfim, após madura reflexão introspectiva, construí, sozinho, uma teoria: eu achara tanta graça a ver os velhos chineses com as suas gaiolas penduradas nas árvores que, interiormente, desejava fazer o mesmo. Talvez porque a imagem que deles tinha era uma imagem de paz, de quietude – sentimentos, estados de alma que me são, desgraçadamente, estranhos.
Era isso e nada mais que isso, concluí. Porém não ganhei muito com a conclusão porque os sonhos continuavam, sempre iguais, e começavam a tornar-se incomodativos.
Então, lentamente, subtilmente, despontou em mim a ideia de que só teria descanso quando executasse em vigília aquilo que fazia em sonhos. A minha racionalidade insurgiu-se, muito saudavelmente, contra essa ideia: já seria insólito que eu, ocidental, levasse para um jardim uma gaiola com pássaros verdadeiros. Não seria incoerente, é verdade; mas, repito, seria insólito. Porém, levar uma gaiola com um pássaro artificial – seria caso, não para um psicólogo e sim para um psiquiatra, e com direito a internamento.
Não sei exactamente quanto tempo levei a render-me. Foi uma luta prolongada, árdua. E não cedi por rendição da lógica, antes porque a qualidade obsessiva dos sonhos tornou insustentável a situação. Não era já uma só vez por noite. Bastava-me adormecer: mal os meus olhos se fechavam, aí estava eu no jardim, a suspender a minha gaiola, com o meu pássaro vermelho e imóvel, um pedaço de balsa revestido de penas. Acordava, voltava a adormecer e voltava ao jardim.
Pensei então: inútil resistir, tudo isto é ridículo, tudo isto é infantil, bem sei, porém se quero libertar-me deste sonho tenho de contentar o meu inconsciente idiota, tenho de o fazer.
Podia ter escolhido uma área verde qualquer — a encosta do Monte, a Guia, o Parque Sun Iat-Sen, o Jardim da Flora ou o de Lou Lim Ioc. Escolhi este último porque, já que tinha de fazer figura de imbecil, ao menos fá-la-ia no meu lugar preferido. Gosto particularmente do jardim de Lou Lim Ioc por estar situado numa parte velha da cidade e por ser, a meus olhos, um permanente e discreto milagre: afrontado já por prédios enormes que vão substituindo impiedosamente as antigas casas, no meio do tumulto do trânsito, aquele espaço como que absorve o ruído, é um local de paz e de beleza.
Precisei ainda de alguns dias para arranjar coragem. Então, numa certa manhã húmida e quente, já a anunciar um daqueles dias sufocantes de Julho, peguei na gaiola e dirigi-me para o jardim.
Não contarei o meu constrangimento, a minha vergonha. O pior foi à entrada, ao comprar o modesto ingresso; rezei para que a funcionária não reparasse no pássaro vermelho. Não sei se reparou ou não, mas deitou--me, em todo o caso, um olhar de estranheza, pois não apresento semelhança alguma com um velho patriarca chinês.
Procurei um local onde não houvesse gente, esperançado em passar desapercebido. Não seria difícil, pensei, porque era muito cedo. Mas os veneráveis anciãos das gaiolas são madrugadores e a cada canto os encontrava. Por fim, não longe daquela ponte que galga o lago em grandes curvas para impedir a passagem de fantasmas, pendurei a minha gaiola e coloquei-me a alguns metros de distância para poder fingir que ela não me pertencia.
Não era a única gaiola que havia nas proximidades. Era, sim, a única contendo um passarinho mudo, os outros desfiavam trinados ininterruptos. Os seus donos, três ou quatro velhotes, observaram-me com uma curiosidade passageira.
«E agora», perguntei a mim mesmo, «o que é que se segue?».
Durante uns quarenta minutos não se seguiu nada, a não ser que cresceu dentro de mim a desconfortável sensação de ridículo. Não tinha, sequer, levado um livro comigo. Olhei para o lago, olhei para o céu e para a folhagem, olhei para os meus pés.
Foi nessa posição que senti estar a ser observado. Levantei a cabeça; era uma ilusão, ninguém olhava para mim.
Mas a sensação manteve-se, ganhou força, quase diria que ganhou peso. Calhou então atentar na minha gaiola e distingui muito claramente os olhos do passarinho vermelho. O meu, feito de balsa. Duas bolinhas, talvez miçangas pretas.
Desviei a cara. E logo uma força misteriosa, irresistível, me obrigou a olhar novamente a gaiola. Ao mesmo tempo, um pensamento me fulgurou no cérebro com a nitidez de uma ordem:
Abre as portas das gaiolas.
Sacudi a cabeça para desfazer a ilusão, comecei a trautear uma área do Orfeu de Gluck.
Abre as portas das gaiolas.
Não era um pensamento – não meu, em todo o caso; era uma voz. Soava dentro de mim, porém era uma voz, que, tal como o pensamento, não era minha. E o pássaro vermelho olhava-me com os seus olhos de miçanga.
Abre as portas das gaiolas.
Estou a ficar muito, muito pior, disse-me então. É melhor ir-me embora, já chega por hoje, já dei satisfação aos sonhos.
Abre as portas das gaiolas.
Olhei em volta. Percorreu-me o corpo um calafrio: o jardim estava como que petrificado, não havia um só movimento, os velhotes, donos das outras gaiolas, pareciam estátuas de faiança. Uma senhora que passava tinha parado e quedava-se imóvel, com um pé levantado.
Abre as portas das gaiolas.
O pássaro vermelho também não se mexia, o único em que a inércia era natural. Reparei num outro pormenor: enganara-me ao julgar que tudo estava paralisado. As aves que se encontravam nas gaiolas, as verdadeiras, moviam-se. Já não cantavam, porém faziam pequenos movimentos. E todas olhavam para mim.
Abre as portas das gaiolas.
Levantei-me sem saber que o fazia. Encontrei-me de pé, sem memória do movimento necessário para me erguer.
Era impossível resistir àquela ordem. Fui pelo jardim, de gaiola em gaiola, abrindo as portas. Os pássaros saíam, esvoaçavam por instantes à minha volta, depois desapareciam nos ramos das árvores. E eu continuava, percorri o jardim inteiro abrindo gaiolas, consciente da enormidade do que fazia.
Quando terminei, voltei ao ponto de partida. Sentia-me tonto, o mundo rodopiava em torno de mim.
A voz, que se calara, voltou a soar, com força redobrada:
Falta uma gaiola. Abre-a também.
Mas não há mais nenhuma, foram todas abertas, argumentei em silêncio.
Como se a mão do vento me tocasse, a minha cabeça girou até ficar de frente para a gaiola onde se encontrava o pássaro artificial. A minha gaiola, oferecida pelo Quim, comprada junto do Mercado Vermelho; o meu passarinho artificial, comprado por mim na «Mariazinha», onde o encontrara por acaso.
Por acaso.
Assim como me levantara para percorrer o jardim, assim me encontrei junto daquela gaiola. Abri-lhe a porta.
O passarinho caiu do poleiro. Ao tocar no fundo, abriu as asas, bateu--as, ganhou altura. Saiu da gaiola a voar e era evidente que estava bem vivo.
Mal saiu, começou a descrever círculos. E a cada bater de asas aumentava de tamanho até atingir as dimensões de uma águia real.
Então, voou lentamente, majestosamente, em direcção ao Sol.
João Aguiar




The God of birds

The cage Quim gave me was one of the most beautiful I had ever seen for sale in Macau. I have a weakness for Chinese cages, big, medium‑sized or small, simple or not. I remember that I became fascinated when, the first time I visited the Lou Lim Ioc garden, I saw dozens of cages hanging from trees and their owners, mainly elderly Chinese patriarchs, quietly resting in the shade as they read the paper, talked or gazed at people passing by while they listened to the chirping of the birds they had brought for an airing.
But that cage was special though it’s difficult to explain why. Seen from up close, it looked the same as so many others. the same as the ones under the trees or on the lawns of gardens in Macau: it had a bamboo base with carved decorations, perches – two of them – also made of bamboo, and food containers in white porcelain with small blue flower patterns. From afar, however – and when I say afar, I mean two or three metres, not more – , a special beauty, some unusual delicacy seemed to descend on it. This was a little strange but everyone who saw it noticed this. There was another reason why it was such a special object for me: I had been there when it was bought and I don’t think I’ll ever forget it.
Quim bought the cage in a small shop that only sold cages very close to the Mercado Vermelho. What was unforgettable was that he spent a good twenty minutes haggling and managed to get the price down by practically half – without even knowing how to say “ah” in Cantonese, which might not have been extraordinary if the seller had spoken Portuguese. This was not the case.
It didn’t, however, stop him from asking the shopkeeper: – Come on then, bring the price down a little more just for me. Can’t you see I’m the one who’s buying the cage? Not the next‑door neighbour, but me!
The shopkeeper, who had never seen him before and, in any case, didn’t understand a word, laughed a lot, and so did Quim. Then he would write down on a piece of paper a price lower than the one he’d asked minutes before, which was already lower than the initial price. I felt a little embarrassed and was the only one of the three who wasn’t having fun. When we left I turned to my friend, who was proudly carrying the cage in his right hand, and told him that there was no reason for him to be so pleased with himself:
— The price the man let it go for is certainly the one he had wanted right from the start, you can be sure of that. The inflated sum at the beginning was just to give him room to bargain, just to get you to think you’d got it dirt cheap.
Extremely logical as reasoning goes, although discredited three or four minutes later when a young Macanese father with his baby passed by, stopped us and asked where we had bought such a pretty cage. Quim told him and added how much it had cost.
— Is that all?! – he exclaimed – Well, that was an excellent buy!
Quim shot me a indescribably triumphant look.
Then he stretched out the hand with the cage and said: – Take it, I got it for you.
I won’t give a detailed account of my protestations and thanks and the fact I didn’t need much persuading to accept it.
But an empty cage is like a garden without flowers and the problem then arose about getting a lodger. I say it was a problem because I like the object in itself though I don’t like to have caged birds.
— There are those little artificial birds ‑ Quim remembered ‑ , covered in feathers and stuff, that look very real.
But I’ve never seen them for sale in the shops in Macau, I replied. I’d have to go to Hong Kong or maybe Zhuhai, to that market ...
He stopped me and said that it didn’t seem to be such a pressing issue. The next time one of us went to Kong Kong, we’d get a little bird and that I wasn’t to be get into one of my childish states of impatience.
I calmed down. I had no choice, in any case.
But that very next day, I happened to walk past a well‑known shop which, for some reason unknown to me, is called “Mariazinha”, as written on the sign below its name in Chinese characters.
It was simple chance, apparently. Just as it was simple chance that made me look at the shop window and see, a little red bird on a jade flower; it was just what I wanted for my, cage. Chance too that the little bird should be there at all because, as the owner of “Mariazinha” told me, it was the only one and they were not expecting any more.
So many chance happenings should have alerted me, however, we all tend to ignore these little incidents precisely because they are so little. As a great friend of mine would say as he quoted a Chinese poet: The flower of chance blossoms on the tree of the unexpected.
(I later discovered that exact phrase in a practically unknown little book by Laprunelle, printed in Avignon in 1780; meanwhile a university professor from Shanghai assured me very firmly that no Chinese poet had ever said or written that. I suspect that many a Westerner out there is citing quotations from other Oriental masters of equally doubtful origins.)
To cut the reasons short: I bought the little artificial bird, took it home and got it to sit on the top perch. It looked splendid and was so perfect that a lot of people thought it was real, made of feathers and bone, only to discover its true nature when they noticed it never moved.
It was, over two weeks later that, for no reason at all, I began to dream about the cage and the little red bird. In itself, there was nothing extraordinary about this, or rather: our unconscious wanderings occasionally result in extraordinary outbursts and we get used to it, so if I dreamed once or twice about these two objects I wouldn’t think it anything other than just interesting. But the dreams became frequent and what caused me more concern was that it was a recurrent dream, always the same. I would suddenly find myself in a garden (I knew it was a garden because of the trees and plants and flowers) with the cage in one hand and I would be trying to hang it from a branch. Then I would wake up.
Very simple and not at all frightening, as you can see. But I began to get frightened because the dream was obsessively repetitious. I tried to find an explanation, but I couldn’t find one. I even thought of seeing a psychologist. I would have if I believed in psychologists.
A friend who was deeply knowledgeable about everything in Macau offered to take me to a Chinese astrologer; I refused to on a question of Western logic and just waited for my world of dreams to get back to normal.
But the dream kept recurring. So after deep introspection, I constructed my own theory: I thought it so delightful that the old Chinese had their cages hanging from trees that I decided, in my mind, to do the same. It could have been because the idea I had of them was an idea of peace, of stillness – feelings, states of the soul unhappily unknown to me.
So it was that and nothing more than that, I concluded. But the conclusion wasn’t of much help because the dreams continued, always the same, and were becoming upsetting. Then slowly the subtle idea formed in my mind that I would only find peace if I actually did when awake what I was doing in my dreams. My reason reacted very healthily against idea: it would already be unusual if I, a Westerner, should take a cage with real birds to a garden. It wouldn’t be incoherent, that’s true; but I repeat, it would be unusual. However, to take a cage with an artificial bird in it – that would be a case not for a psychologist but rather for a psychiatrist and getting locked up to boot. I don’t know how long I took before I succumbed to this idea. The battle was long and difficult. And I didn’t surrender on the question of logic but rather because the obsessiveness of the dreams had made the situation untenable. It was no longer just once a night. All I had to do was go to sleep: no sooner were my eyes closed than there I was in the garden, hanging my cage with my inert red bird, a piece of balsa wood covered in feathers. I would wake up, go back to sleep and go back to the garden.
So I thought: there’s no point fighting it, I know this is all ridiculous and childish but if I want to get rid of that dream, I must humour my stupid unconscious so I’ll just have to do it.
I could have chosen any green space – the Monte slope, the Guia, the Sun Iat‑Sen Park, the Flora Garden or then the Lou Lim Ioc Garden. I chose the last because if I had to look a fool at least I would do so in my favourite place. I specially like the Lou Lim Ioc Garden because it’s in an old part of town and, in my eyes, a constant unassuming miracle: it’s encircled all around by enormous high‑rises that are relentlessly taking over from the old houses and though it’s in the middle of the bustle of traffic, it seems to absorb the noise and remains a place of peace and beauty. I thought about it for a few days before I gathered the nerve. Thus on a moist and warm morning which announced one of those suffocating July days, I grabbed hold of the cage and set off in direction of the garden.
I won’t describe how uncomfortable and embarrassed I felt. The worst was when I bought the modesty‑priced ticket to get in; I prayed the woman at the gate wouldn’t notice the red bird. I don’t know if she did or not, but at any rate she gave me a strange look as I don’t look in any way like an old Chinese patriarch.
I searched for a place without people, hoping nobody would notice me. It can’t be difficult, I thought, it’s still very early. But venerable old men with bird cages are early risers and I found them in every nook and cranny. In the end. not far from the bridge – built in great curves to stop the ghosts from crossing the lake – I hung my cage, walked a few metres away and pretended it didn’t belong to me.
It wasn’t the only cage in the immediate vicinity. It was, though, the only one with a silent little bird, all the others were chirping away uninterruptedly. Their owners, three or four old men, glanced at me out of curiosity for a brief moment.
“Now what?” I wondered, “What happens next’?”
Nothing happened for some forty minutes or so, apart from the uncomfortable feeling growing within me of how ridiculous it was. I hadn’t even brought a book with me. I looked at the lake, I looked at the sky and the green leaves, I looked at my feet.
It was while in this position that I felt I was being watched. I lifted up my head; it was just a fancy, nobody was looking at me.
But the feeling remained and grew, I would even say it gained weight. I then happened to look at my cage and I very distinctly saw the eyes of the little red bird. Those of my little bird made out of balsa wood. Two little balls, perhaps black beads.
I turned away. And straightaway a mysterious and overwhelming force made me look again at the cage. At the same time, a thought flashed through my brain as clear as a command:
Open the doors of the cages.
I shook my head to get rid of the delusion and began to hum an aria from Gluck’s Orfeo.
Open the doors of the cages.
It wasn’t a thought ‑ at least not mine, at any rate; it was a voice. It came from inside me, but the voice, just like the thought, was not mine. And the red bird looked at me with its bead‑like eyes.
Open the doors of the cages.
I’m getting much but very much worse, I told myself. I’d better go now, that’s enough for one day, I’ve done what my dreams asked for.
Open the doors of the cages.
I looked around me. A shiver ran down my body: the garden was perfectly still as if frozen, there was no movement at all, the old men who owned the other cages seemed statues made of porcelain. A woman passing by was motionless, one foot raised in the air.
Open the doors of the cages.
The red bird wasn’t moving either. but it was the only thing that normally should be still. I noticed something else: I had made a mistake when I thought everything was motionless. The birds in the other cages. the real ones, they were moving. They weren’t singing any more, but they were making little movements. And they were all looking at me.
Open the doors of  the cages.
I got up without knowing what I was doing. I was on my feet without remembering what movement I had made to raise myself from the ground.
It was impossible to disobey that order. I went through the garden, cage by cage, and opened the doors. The birds came out, flew around me for a moment and then disappeared into the trees. And I kept on opening the cages all over the garden, fully aware of the enormity of what I was doing.
When I finished, I returned to where I’d started. I felt dizzy, the world whirled around me.
The voice, which had been silent returned twice as strong:
There’s one more cage. Open it too.
But there’s no other cage, they’ve all been opened, I argued back in silence.
As if the hand of the wind had touched me, my head turned around until it was facing the cage with the artificial bird. My cage, given to me by Quim, bought next to the Mercado Vermelho; my little artificial bird, bought by me at “Mariazinha” where I had found it by chance.
By chance.
In the same way as I had got to my feet and walked through the garden, I now found myself next to that cage. I opened the door.
The little bird fell off the perch. When it touched the floor of the cage, it opened its wings, flapped them and rose up in the air. It flew out of the cage, clearly very much alive.
As soon as it was outside, it began to fly in circles. And every time it flapped its wings it grew larger until it had grown to the size of an imperial eagle.
Thus it flew slowly and majestically towards the  sun.
João Aguiar

domingo, 26 de dezembro de 2010

AQUILINO RIBEIRO NO PANTEÃO

Com um sincero respeito por opiniões contrárias à minha, direi que vejo a entrada de Aquilino Ribeiro no Panteão Nacional — onde nem sequer figura Eça de Queirós — como sendo, essencialmente, uma espécie de “operação de pré-campanha” antecedendo as comemorações do centenário da República.
Independentemente da qualidade literária de Aquilino, que não está em questão nem é alvo de contestação, confesso não ver uma razão de suficiente peso para o colocar no Panteão Nacional. Ao contrário de Garrett ou de Eça, nem a sua obra nem a sua acção mudaram o curso da literatura em Portugal. Falta-lhe também o significado cultural de um Alexandre Herculano. É, evidentemente, um bom escritor; teve, sem dúvida, uma certa intervenção política. Mas isso não basta.
Por outro lado, há, como já foi referido publicamente, indícios ou suspeitas (não faço afirmações, pois não me documentei sobre o assunto) de uma implicação de Aquilino no regicídio de 1908. Penso que teria sido aconselhável estudar e aprofundar a questão, caso tal fosse possível. Porque, SE (sublinho o “se”) ele esteve de facto implicado, então foi cúmplice de um duplo homicídio particularmente repugnante. Isto, se verdadeiro, em nada afectaria a sua estatura literária; mas tornaria (ou tornará) embaraçosa a sua presença no Panteão.
Por último: se, como suspeito, esta é essencialmente uma primeira acção comemorativa da República Portuguesa, lembrarei então que o saldo principal desta República é um período de anarquia sangrenta e de miséria, depois um longo período de ditadura (o longevo Estado Novo) e, enfim, a apagada e vil tristeza mental e psíquica em que nos encontramos presentemente. Não vejo o que há para comemorar…
 João Aguiar


Fim do dia de férias no Vimeiro - Setembro 2oo7

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

MALDITO PUTO!


Querido Pai Natal: não me tragas nada. Basta-me pensar que Jesus nasceu hoje e fico tão feliz que não preciso de mais nada. Beijos, Toninho.
O homem de vermelho e com longa barba branca releu a carta. Depois, amarrotou-a e chicoteou cruelmente as renas. «Maldito puto! Ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito de ser assim tão feliz!»

João Aguiar


J. Sousa - "Árctico" 2oo6 - Acrílico sobre tela 80x60

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

À ESPERA DO FANTASMA


À chegada, olhei à minha volta e compreendi, sem necessidade de ler folheto algum, que houvera ali a preocupação de manter a traça monástica. Portanto, instalei-me, fui espreitar o claustro e a «capela gótica» e a antiga igreja, passei pela sala do capítulo. E reflecti, cheio de esperança: «Bem, com os antecedentes do edifício, dá para contar, quase certamente, com a aparição do fantasma de um monge».
Havia, claro, o risco de me sair algum bojudo sargento de infantaria, pois que por lá passaram também dois regimentos. Mas eu apostava no monge.
Feita a aposta, concentrei-me na outra questão essencial: «O que é que eu vou fazer aqui, durante três dias?!»
Veja-se até que ponto cheguei a Beja alienado e esquecido de mim mesmo. Esquecido também de que me encontrava agora em pleno e profundo Alentejo, onde, apesar de tudo, o tempo continua a ser outro; e muito outro o seu ritmo. «Devagar ou parado», dizem os lisboetas e demais citadinos exasperados que já não sabem como a Terra funciona e respira.
Mas a Terra, quando lhe damos essa oportunidade, tem meios subtis para nos fazer ouvir a sua voz. Portanto, não tardei a perceber que precisava de dormir uma sesta. A seguir, percebi que a piscina estava a chamar por mim.
No entanto, o grande acontecimento veio à noite. Durante as primeiras horas, não sei quantas, dormi profundamente; depois acordei e, a partir de então, foi uma sequência de vigília e de sonhos agitados, fatigantes, a culminar numa daquelas estranhas experiências de «sonho lúcido» (a pessoa sabe que está a dormir e que está a sonhar; isto não é invenção minha, o fenómeno está mesmo a ser estudado em laboratórios).
Porquê uma tal noite? Dera-me bem com o quarto, a cama e a almofada. Jantara muito levemente. O fantasma não respondera à chamada.
Adiante. Dia seguinte: visita ao Museu Regional, instalado em mais um convento; aí, a presença obsessiva — na igreja e no claustro, em altares e andores de procissão — de S. João Baptista e S. João Evangelista, logo por acaso os meus padroeiros, visto que têm o meu nome, ou eu o deles. Visita ao castelo e corajosa escalada ao alto da Torre de Menagem: Beja inteira à minha volta, pequena e resplandecente no seu branco, e, mais além, a planície aberta no seu dourado pós-ceifa, a planície que eu tantas vezes cruzei no passado e que, entendo agora, nunca é monótona; um mistério que nem tento desvendar. E uma quase-ausência, abençoada, do mais repugnante animal português da era presente, a grua de construção civil.
No fim do dia, um pensamento súbito: «Eu passava bem aqui uns quinze dias, ou mais, desde que tivesse uns livros comigo…». E a seguir: «Talvez até um ano inteiro, com papel para escrever e música para ouvir». O que respondia àquela questão sobre o que fazer. E depois, à noite (nessa e na seguinte), um sono de que nada posso dizer, porque foi demasiado profundo para deixar memórias.
Quanto à agitação do primeiro dia, sei o que foi: chama-se descompressão.
Quanto aos agentes dessa descompressão, ponho hipóteses: ou foi Beja, os dois S. João, a planície e a quase-falta de gruas…
Ou, afinal de contas, o fantasma respondeu mesmo à chamada. E era de certeza um monge franciscano.

João Aguiar

J. Sousa - Indiscreto - Acrílico sobre tela 2005


segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O TREVO E A ESMERALDA

Não me dou bem com o frio e a chuva é, para mim, uma necessidade, mas não um prazer; apesar disso, tenho uma simpatia muito especial pela Irlanda, uma simpatia que abraça a terra e a gente.
A terra, montanhas, planícies, lagos, enseadas, porque é lindíssima, simultaneamente acolhedora e selvagem, aberta e misteriosa. A gente, porque — ah, que inveja! — ama o seu país e o seu rico património, que sabe proteger e de que sabe desfrutar. Mas também porque, exceptuando as qualidades que referi, encontro nela traços que nos são familiares: por exemplo, um alegre desrespeito pelo «socialmente correcto». Enquanto ali ao lado, na Grã-Bretanha, as famílias da pequena burguesia botam os filhos na cama ao fim da tarde, nesta terra do trevo, nesta ilha a que chamam Esmeralda por ser de um verde tão brilhante (um presente da copiosa chuva), nós vemos os pimpolhos à noitinha, nos restaurantes e nos bares, aos lado dos pais (e das mães), que cervejam pacata e abundantemente ou bebem o seu uísque como nós, antes, bebíamos o bagaço.
E há uma outra qualidade nos Irlandeses (ou, pelo menos, em muitos Irlandeses) que eu prezo particularmente. Ela revelou-se-me na minha primeira visita, em serviço — foi então que me deixei encantar pelo país e me prometi um regresso em férias.
Tinha de percorrer longas distâncias e recusei-me a conduzir naquilo que, para mim, é o lado errado da estrada. Mas um colega, com quem viajava, declarou, com tranquila e superior segurança, que não haveria problemas, estava habituado a essas coisas, conduziria ele... só mais tarde, e tarde de mais, me explicou que a sua experiência se limitava a uma única viagem em estradas inglesas — durante a qual tivera um acidente.
Embalado na ignorância deste sombrio pormenor, aceitei a solução. E o que tinha de acontecer aconteceu: para os lados de Killarney, passámos junto de um castelo medieval. O perito condutor de volante à direita olhou-o e comentou: «Olha que castelo tão giro!»; eu respondi: «Olha o carro que aí vem!»; ele desviou-se — mas para o lado que os seus reflexos lhe ditaram, ou seja, para a direita; e a direita era o meio da estrada.
Choque frontal, felizmente a baixa velocidade. O colega a decretar «explique você, que o seu inglês é melhor». Uma senhora irlandesa em crise, tanto mais que o carro era novo e o que iria o marido dizer. Uma GNR (que lá se chama «Garda») simpática e eficiente. Regresso ao hotel de boleia, oferecida por um cordialíssimo espectador. Dois valentes uísques para recompor as emoções. E, no dia seguinte, saída em seguro táxi, para evitar males maiores.
Solução abençoada: pude, enfim, apreciar a paisagem sem ter o estômago contraído. E a paisagem era magnífica. Em certo ponto, à beira de um lago, passámos por uma casinha encantadora, que, se houvesse justiça neste mundo, seria minha; e o motorista, tanto ou mais conversador que os portugueses, informou: «Essa casa está sempre vazia. Ninguém lá fica muito tempo...». Sorrindo, perguntei se estava assombrada. E, com a maior naturalidade, ele respondeu-me:
— Não. Por acaso, esta não está.
E aqui têm a tal qualidade que tanto me impressionou e agradou.
É bom ver gente que continua a conviver com as suas tradições e com os seus fantasmas, sem se apressar a ligar para a SIC ou para a TVI na esperança de trinta segundos de protagonismo televisivo.
                                    João Aguiar


J. Sousa - O Canto dos Fantasmas - Óleo sobre tela . 2007



sábado, 18 de dezembro de 2010

"ROTINAS, INSPIRAÇÕES, AMBIENTE DE ESCRITA"

Este o tema. 
E começo pela terceira parte.
J.S. -  Acrílico sobre tela
Que me lembre, escrevi uma única vez ao ar livre, à sombra de uma árvore; e ainda assim, era uma curta crónica e tratava-se de uma urgência. Também, uma única vez, e também por motivo de urgência, escrevi a bordo de um avião. O meu ambiente preferido, aquele em que me sinto verdadeiramente bem, é a minha casa — e, nela, a divisão que uso como gabinete de trabalho. Aí estão os livros, o computador, a aparelhagem de áudio. É muito raro escrever sem música de fundo.
Saltando para as rotinas: a verdade é que não as tenho. Ou, pelo menos, tenho-as em fases curtas. Por exemplo, há alturas em que escrevo melhor à noite, mas, de momento, prefiro levantar-me cedo e trabalhar, sobretudo, durante a manhã. Na verdade, só reconheço em mim dois hábitos enraizados: um, que já referi, é escrever com música de fundo; o outro é ir bebendo chá ao longo do dia. Entenda-se: chá (verde, preto, chinês, açoriano ou de qualquer outra proveniência) e não tisanas. Quanto ao resto… não o faço de propósito, mas já reparei que sempre que falo de uma qualquer rotina que tenha adoptado, não tardo a abandoná-la.
Resta a questão das inspirações. Aí, não sei bem o que responder, porque ignoro o processo. De onde vêm as ideias? Penso que, a este nível da chamada inspiração, não têm uma origem única. Uma coisa é certa: no meu caso, o ambiente que me cerca não tem sido, até agora, uma fonte de inspiração — se, por exemplo, estou no campo ou num jardim, perco-me a olhar para as árvores e para os passarinhos e não consigo escrever ou, sequer, imaginar. O processo, ou é muito complexo ou muito simples; em qualquer caso, prefiro deixá-lo correr e não lhe estudar o mecanismo.
João Aguiar
Só podia ser à sombra de um secular sobreiro - Set. 2oo5 - Mangualde
J. Sousa - Grafite H sobre papel

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Três impressões sobre FERNANDO PESSOA


Espera-se então que eu fale, ainda que só um pouco — ou melhor: sobretudo só um pouco — sobre Fernando Pessoa.
Isto é, ao mesmo tempo, uma grande responsabilidade, um grande perigo e também um grande problema. Uma responsabilidade tendo em conta a personagem ilustre que constitui o tema; um perigo (para mim) porque eu não sou propriamente um estudioso, um especialista de Fernando Pessoa, limito-me a lê-lo de vez em quando; e um problema porque — o que é que não foi já dito sobre ele, em Portugal e no estrangeiro?
Assim, o meu olhar sobre Fernando Pessoa só pode ser pessoal e mesmo íntimo. Lamento, mas é tudo quanto tenho para dar…
E começo com uma daquelas coincidências que, como se sabe, não existem:
Antes — repito: algum tempo antes de receber o convite para participar neste encontro, eu tinha começado a ler, ou a reler, toda a poesia de Fernando Pessoa. Diariamente, umas páginas, ao pequeno-almoço. Eu sei que isto não se faz na boa sociedade, ler Pessoa ao pequeno-almoço. Mas enfim, podia ter-me dado para pior e é uma coisa que não faz mal a ninguém, de modo que não me importo com os comentários que possam fazer a este respeito.
Ora bem: é esta leitura, que ainda prossegue, a base para tudo, todo aquele pouco, que vou dizer. Uma leitura começada sem premeditação nem motivos ulteriores, sem ter em vista uma conferência, uma intervenção ou qualquer outro trabalho. Uma leitura feita porque sim, por puro prazer. Daí que as minhas impressões sejam, digamos, as de um leitor inocente, que não leu tudo quanto há sobre Pessoa, que, neste assunto, quase só se limita a ler Pessoa.
Também uma leitura sistemática; e devo dizer que é a primeira vez que a faço da obra poética — em português — de Fernando Pessoa. Ora, uma leitura sistemática dá-nos uma perspectiva diferente daquela que se tem, por exemplo, lendo apenas a Mensagem ou outros poemas seleccionados.

1 — Passemos então à primeira impressão que tenho recolhido. Ela é de proximidade, de familiaridade
Não comecem já a pensar coisas; não estou a comparar-me a Fernando Pessoa, não estou, sequer, a tentar colocar-me à sua sombra. Não é isso. O que sucede é que, numa leitura da poesia completa de qualquer autor, chegam até nós, juntamente com os poemas excelentes, aqueles que ficaram inacabados. E ainda os poemas imperfeitos. E estes também existem, acho eu, atrevo-me a achar, no espólio deixado por Pessoa.  Não é pecado dizê-lo, atrevo-me também a pensar.
Ora, justamente, essa mesma imperfeição, encontrada num Fernando Pessoa, torna-no-lo mais familiar, mais próximo. Por um lado, quebra um pouco a rigidez da quase idolatria que muitos lhe votam; por outro lado, o facto de nem mesmo essas imperfeições serem de molde a diminuí-lo, mostra um pouco a dimensão do seu génio.
Dou como exemplo — sei que esta é uma visão muito, muito subjectiva — o poema Antemanhã, da Mensagem. Nunca gostei muito dele e desta vez, ao relê-lo, pareceu-me uma espécie de rascunho para o célebre O Mostrengo, que esse, vale a sua celebridade. Mas isso é impossível, porque O Mostrengo é muito anterior. E então, Antemanhã surge-me como um regresso ao discurso do primeiro poema e penso que esses regressos nunca são aconselháveis: terminado um poema, deve-se seguir em frente e não voltar atrás. [António Botto…]
Mas… continuemos na senda do sacrilégio… o próprio «falhanço» que aos meus olhos é Antemanhã humaniza, também aos meus olhos, a figura do poeta. E, claro, bem estaríamos nós se todos os falhanços na literatura portuguesa fossem assim.

2 — A segunda impressão que recolhi foi a da surpresa, ou melhor, a das surpresas que ele nos proporciona. Quero eu referir-me a isto: mesmo num poema que eu (e sublinho o eu por se tratar, uma vez mais, de um juízo subjectivo) considero imperfeito, se encontram, nada raramente, versos magníficos. E também, neste tipo de leitura que tenho vindo a fazer, de começar numa ponta e acabar na outra, há poemas que, num conjunto de qualidade sempre apreciável, sobressaem como… a figura que me vem à mente é: como jóias. Sobressaem, direi até literalmente, como jóias. Dou, como exemplos, aquele poema hermético em que se lê: A morte é a curva da estrada / morrer é só não ser visto; ou, na Mensagem… mas há tantos, na Mensagem! Enfim, os dois que são dedicados ao Infante D. Henrique, o que é dedicado ao Infante Santo, o Mostrengo, o poema final, Nevoeiro. Poderia, evidentemente, multiplicar os exemplos e repare-se: cada um desses poemas, por si só, definiria um grande poeta.

3 — E a terceira impressão: a de que Pessoa se desmentiu a si próprio.
O poeta pode ser um fingidor, mas não finge tão completamente que não deixe ficar nos seus versos algo que, tomado no conjunto, é muito parecido com um verdadeiro auto-retrato. Sobretudo quando esse poeta é tão completo, tão rico em temática e expressão, como Fernando Pessoa.
Refiro-me, ao dizer isto, à poesia ortónima, a poesia escrita sob o seu nome, isto é: não considerando, de momento, os heterónimos. Claro, os heterónimos vêm completar o quadro, mas tomá-los agora em consideração obrigar-me-ia a alargar-me demasiado. Portanto, tomemos apenas como referência os poemas escritos por «Pessoa-Pessoa»: o seu conjunto diz-nos muito, muitíssimo sobre a vida íntima do poeta, sobre a sua maneira de ser, sobre as suas preocupações. Para o conhecermos, quase não precisamos de escritos suplementares — cartas, páginas íntimas, etc., — nem de testemunhos contemporâneos. É possível, através da leitura seguida desses poemas, seguir os traços do retrato que ele fez de si mesmo. Um retrato verdadeiro e coerente, até nas suas contradições. Nele vemos como Pessoa, muito humanamente, oscilava entre as certezas e as firmezas dos poemas herméticos, em que transmite uma mensagem, e as dúvidas, os desânimos, as fraquezas, em que a mensagem se nega. É o retrato de um atormentado. Dizer que é também o retrato de um génio — que, ainda por cima, não se ignora como tal — é já um estafado lugar-comum. Mas continua a ser verdade.
E, enfim, se juntarmos à poesia ortónima a dos heterónimos, semi-heterónimos e pseudónimos, em português e inglês, teremos então aquele retrato completo em toda a sua assombrosa complexidade.
Será que importa dizer tudo isto? Não sei. Foi já dito tanta vez, de tantas maneiras.
Uma coisa eu sei: que importa ler.
É bastante mais importante ler Fernando Pessoa do que falar sobre Fernando Pessoa. Estamos, julgo eu, espero eu, num sítio ideal para o fazer. Vão às estantes, por favor, peguem nos seus poemas e leiam-nos
João Aguiar

J. Sousa - Serra de Sintra - "Casa do Cantoneiro" – Óleo sobre tela


sábado, 11 de dezembro de 2010

“MANCHAS E TRAÇOS” “LUZ E SOMBRA”

Esta exposição também poderia chamar-se, com menor elegância porém maior exactidão, «É assim que eu quero e gosto». Ou então: «Um grito», desde que ficasse esclarecido que o grito é tranquilo, nada dramático e ainda menos doutrinário.
Agora, a explicação. Desde muito novo, Joaquim de Sousa mostrou queda e talento para as artes plásticas, especialmente o desenho e a pintura. Nessa época, foi-lhe negada a possibilidade de estudar e de se treinar nessa área; restou-lhe a prática «selvagem», o desenho e a pintura sem bases nem mestre.
A história não podia acabar aqui. Há largos anos, o poeta Vasco de Lima Couto disse dele: «O Quim é uma força da Natureza». Tinha razão e a Natureza só é domada na aparência. Daquelas primeiras tentativas, na sua maioria ingénuas e quase toscas, começaram a surgir composições (desenhos a tinta-da-china,  sobretudo) que, estranhamente, superavam a falta de aprendizagem e mostravam um valor intrínseco a par de uma grande sensibilidade. O tempo e a vida abriram-lhe, depois, uma porta, com o início de uma carreira como gráfico publicitário, à qual se juntou posteriormente a actividade (arte e técnica) da paginação. Enfim, tornou-se também ilustrador e neste domínio tem trabalhos de qualidade notável.
Mas, notar-se-á, em todas estas «aproximações» à pintura houve sempre um factor comum: a disciplina imposta pela actividade profissional, pelo próprio tipo de trabalho a executar. Tal disciplina expressava-se em limitações ao tema, ao traço, à cor, à fantasia.
Há uns anos atrás, soou, discretamente e sem fanfarras, a hora da quebra das correntes. Discretamente e sem fanfarras, ele pôde estudar desenho e pintura. Adquirir técnica e prática sob supervisão e orientação. E, digerindo toda essa aprendizagem, começou, enfim, a pintar o que queria. Aquilo de que gostava. Mas — é aqui que está a sua mensagem: sem pretender transmitir qualquer mensagem. Sem se submeter a obsessões, nem a correntes definidas; sem pensar no seu lugar na História. Sem se arrogar o problemático estatuto de génio incompreendido. Assumindo a saudável, preciosa liberdade de ouvir exclusivamente a sua vontade, o seu gosto e a ideia que lhe aparece sem explicações eruditas e complicadas.

Por isso, Joaquim de Sousa passa, sem transição, da paisagem e da natureza morta ao abstracto. Do formalmente convencional ao simbólico. Da luz misteriosa e da transparência do vidro ao retrato de uma flor, passando pela pirâmide iniciática — porque, atenção, ele não exige à pirâmide que à partida seja iniciática, somente que seja bela e se ajuste ao ambiente criado.
Somos nós, observadores, que lemos a iniciação. A mensagem só toma forma quando nos chega. E é certamente diferente para cada um de nós. E esse é o segredo.
João Aguiar


J. Sousa - Flor de anis - Grafite sobre papel

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

LUXO

O que é, para mim, o Luxo
Nunca fui apresentado a esse senhor. Por vezes, vejo-o passar na rua, mas nunca se dignou a olhar-me, quanto mais a falar-me. Aqui muito para nós, confesso não lamentar essa arrogância que me exclui; primeiro, porque não gosto de gente arrogante e depois porque uma consulta feita a dois dicionários (para assentar melhor as ideias sobre o assunto) me revelou que as definições a ele respeitantes podem variar ligeiramente na forma, porém têm uma constante: a palavra supérfluo. Neste mundo, quanto mais supérfluos houver, mais miséria haverá também.
Além disso, estou intimamente convencido de que o senhor em questão é, basicamente, um chato. 
João Aguiar



J. Sousa - Óleo sobre tela

sábado, 4 de dezembro de 2010

CRIAÇÃO E LIBERDADE



Parece redundante dizer que a Criação, seja sob que forma for, tem a Liberdade como sua primeira condição.
Mas, ao falarmos em criação humana — porque sobre a divina, é-nos impossível falar —, devemos saber que a liberdade que ela exige não é qualquer liberdade.
Por exemplo, não nos é permitido partir do zero. A criação ex nihilo não é possível ao homem; toda a criação humana reflecte uma realidade, seja ela externa, objectiva, seja ela a realidade íntima do criador, também essa condicionada, parcialmente, por factores externos. Nós construímos a partir da imaginação, da experiência e da vivência.
Está também errado pensar que a liberdade objectiva é uma condição essencial para a criação. Não raro, as imposições servem como catalisadores: um prazo imposto pode — como todos os criadores sabem — dar um impulso decisivo ao processo da criação. A opressão e as proibições exercidas por um poder ditatorial tanto podem agir como travão e mordaça como podem, pela própria revolta que inspiram, servir como incentivo e fonte de ideias para o acto de criar, embora reprimam ou impeçam depois a divulgação da obra — mas a criação, essa, foi consumada.
Então, a liberdade essencial, a liberdade indispensável para permitir o processo criador é, muito simplesmente — a liberdade interior, aquela que só nos pode ser tirada pelo adormecimento ou pela alienação.
É essa liberdade que, acima de tudo, temos de defender.

João Aguiar

J. Sousa - Grafite H sobre papel