domingo, 31 de outubro de 2010

OS QUE O CONHECIAM, DISSERAM... (Lisboa)



JOÃO AGUIAR - Adeus Amigo

Há pessoas que passam pela nossa vida e deixam marcas indeléveis. João Aguiar, para mim, foi uma delas. Um dia, depois de ter lido com entusiasmo A Voz dos Deuses, pensei que estava perante um excelente livro para adaptar para banda desenhada. Decidi, então, encher-me de coragem e telefonar para o autor, por causa da questão dos direitos. A voz que me atendeu do outro lado do fio pareceu-me, de imediato, afável e amistosa. Logo ali, combinámos o primeiro de muitos almoços que, ainda hoje, recordo com saudade.
O escritor, já eu o conhecia das linhas que, na minha cabeça, se transformaram de imediato em imagens, mas o ser humano que criou esses textos, digo-vos eu, ainda era melhor. Isto pode parecer um lugar comum, mas não é. Sempre disponível, acompanhou o desenrolar da obra a par e passo, tendo pedido unicamente, como pagamento de direitos, que lhe oferecesse apenas algumas pranchas que queria guardar, depois do livro estar pronto e publicado. Inicialmente passou-me pela cabeça que fosse ele a escrever o texto. Amavelmente, declinou a oferta e disse que preferia ver o que é que outros poderiam fazer com a obra. Foi nessa altura que decidi pedir ajuda ao Rui Carlos Cunha, para me ajudar com os textos, e ao Nuno Galvão, com as cores, pois senti que ia ter muito trabalho pela frente. Mas, de uma disponibilidade sem limites, João Aguiar foi sempre uma pessoa presente, durante as várias fases da criação: sugeriu-nos locais, emprestou-nos fotos, textos, ajudou-nos a desenvolver ideias, etc, etc.
Recordarei para sempre, aquele olhar curioso e atento de um homem simples que, por acaso, já era um escritor famoso, mas, que, nem por isso, deixou de nos ajudar em todos os momentos. Assim, pensei que seria uma pequeníssima, mas justa homenagem, colocar aqui duas das muitas fotografias que foram tiradas, na altura do lançamento do livro no Festival da Amadora em 1994. E também aí, João Aguiar foi único. Começou por dizer que aquele momento era nosso, mas como insistimos e dissémos que a obra também era um bocadinho dele, porque, para além de ter sido da sua imaginação que ela nasceu, também ele foi uma pessoa sempre presente na fase da criação da BD. Aceitou, então, participar e acompanhar-nos nesse momento que para mim,  foi o concretizar de um sonho.
A foto de família no lançamento de A Voz dos Deuses. Em cima, da esquerda para a direita: João Rodrigues, o editor; Nuno Galvão, o colorista e autor do stand e João Aguiar. Em baixo: Rui Carlos Cunha, o meu co-argumentista e eu.
Não é portanto muito difícil, calcular o que senti hoje à hora de almoço, quando ouvi nas notícias que o seu coração tinha deixado de bater. Por isso, finalizo este texto dizendo: desculpa lá a familiaridade, mas onde quer que estejas João, que Endovélico e todos os outros Deuses te acompanhem sempre,  lá longe, nesse pequeno paraíso, onde tu estarás a continuar aquilo que tão bem soubeste fazer por aqui: CRIAR!
  

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Uns vao, outros ficam, e tudo fica diferente!


Igreja de S.Domingos. A velha Macau.
Agora, em Macau, tudo o que parece, nào 'e!
A nova Taipa.
Perdeu todo o encanto.

sábado, 2 de outubro de 2010

OS QUE O CONHECIAM,DISSERAM... (Macau)


 Perdi um dos melhores…

Bastaram três palavras para anunciar a partida de um grande amigo. O melhor dos poucos (e verdadeiros) amigos que me restam.
O SMS, emitido pouco depois da 8 e 30 da manhã de Lisboa, na última quinta-feira, dizia seca e brutalmente: “O João morreu”.
Eram três e meia em Macau. O telemóvel, depositado em cima da minha mesa de trabalho trazia a notícia que, há alguns dias, aguardava a todo o momento.
Apesar de não constituir surpresa, o egoísmo não nos deixa aceitar que a morte nos prive do convívio de um amigo de há quarenta anos.
Conhecemo-nos em Luanda, em 1970, ambos jovem oficiais recrutados pela guerra colonial. Uma guerra sem tiros, mais virada para a chamada acção psicológica.
Ainda em Angola, vivemos experiências inéditas na área do jornalismo e, mesmo nos períodos em que a geografia nos separava, a chama da amizade sempre se manteve acesa.
Em Maio do ano passado, um mês depois de voltar a Macau, após um afastamento forçado de dois anos, recebo um e-mail do João, a informar que tinha um cancro. Trazia a esperança de quem tenta acreditar em milagres, a firmeza de quem está disposto à luta, as entrelinhas de um homem inteligente que tem a perfeita noção da realidade.
Eu quis, imediatamente, saber tudo sobre o cancro no pâncreas e conclui, então, que, nestes casos, a taxa de sucesso ronda os 3 por cento…
Seguiram-se as mensagens irrealistas, patéticas, a pretender transmitir a esperança que não tinha, e a que a minha falta de fé não ajuda muito.
À Cecília, minha companheira de há 30 anos, e, desde o primeiro dia, também ela amiga muito dilecta do João, pedia-lhe que, nas suas orações, me incluísse no desejo de que alguma coisa ainda fosse possível.
Uma breve deslocação a Portugal, durante os feriados do Ano Novo Lunar, em Fevereiro deste ano, teve como um dos objectivos principais visitar o João, antecipando a despedida.
Debilitado em consequência da intervenção cirúrgica e dos dolorosos tratamentos que se seguiram, continuava, apesar de tudo, disposto à luta. Foi o último dos nossos convívios.
Para trás ficaram, entre outras vivências, os dias passados na Chácara Lilau, a alegria das vindimas e as petisqueiras macaenses regadas com o nosso vinho. Tudo devidamente misturado com animadas discussões sobre tudo e mais os benefícios da Monarquia, no dizer do João.
A meio da tarde, entre os chás chineses que bebericava e os gengibres picantes, o João dissertava comparando mitologias orientais e romanas.
Momentos felizes, durante um posseio em Cantão (2005)

Uma forte ligação a Macau

Em 1989, o João Aguiar vem, pela primeira vez, a Macau. Estavámos no Instituto Cultural, sob a presidência de Jorge Morbey. Num chamado Gabinete de Projectos Especiais, a Cecília e eu dirigimos um vasto projecto editorial que, entre outras iniciativas, trouxe a Macau um conjunto de escritores: João Aguiar, Agustina Bessa-Luís, Alice Vieira, Manuel Ferreira. Outros nomes que faziam parte da lista viriam só alguns anos mais tarde…
O desafio era motivá-los a incluir Macau como tema da sua actividade literária, o que, pontualmente, veio a acontecer.
Com o João Aguiar foi diferente. Em 1992 publica “Os Comedores de Pérolas”, com a chancela da ASA. Segue-se “O Dragão de Fumo” e “A Catedral Verde”, todos pela mesma editora e que ficaram conhecidos como a trilogia sobre Macau.
Em 2005, surge o livro “O Tigre Sentado” como resultado da sua publicação no diário “Ponto Final”, sob a forma de folhetim.
Caso único em toda a bibliografia sobre Macau, a “trilogia” dá origem a sucessivas edições e “Os Comedores de Pérolas” são incluídos em colecções fora da ASA e, tal como boa parte da obra de João Aguiar, são traduzidos para alemão, búlgaro, francês e italiano.
Como jornalista, João Aguiar colaborou activamente com a revista “MacaU” (1992-2004).
Nas suas constantes deslocações a escolas e a universidades em Portugal e no estrangeiro João Aguiar é constantemente solicitado a falar de “Os Comedores de Pérolas” e a satisfazer uma enorme curiosidade sobre Macau. Ao longo de quase 20 anos, o escritor torna-se um embaixador do Território. Sem honra nem glória, mas sempre com um grande entusiasmo e empenhamento.
A este propósito, podia-se ler-se na página electrónica do jornal “O Público”, no dia da sua morte, dois comentários significativo. Uma leitora da Albufeira lembrava que “as suas histórias sobre Macau despertaram-me uma curiosidade de a conhecer – espero poder lá ir um dia…”
E do Porto, a afirmação de que “deixa uma literatura fantástica sobre Macau”.
Várias deslocações a Macau (a última das quais em 2006) alimentam a sua personalidade de investigador e nunca esconde o prazer de voltar.
Até há cerca de três anos, quando o coração o avisou que já chegava de abusos, fumava charutos e cachimbo, tenho este chegado a ser uma das suas “imagens de marca”.
A velha Tabequeria Filipina (desaparecida há menos de um ano) abastecia-o de cachimbos e de ”puros” que, nas suas ausências mais prolongadas, lhe chegavam, regularmente, a Portugal.
Em Macau, palmilhava as ruas, sem manifestar cansaço, encantado com a humidade insuportável, de que garantia gostar.
Obrigatória era a visita ao Tempo Hon Kong (do Deus Guardador do Patos) que está registado na sua obra.

O homem e a obra

João Aguiar deixa uma vasta produção literária e é apontado como o grande precursor do romance histórico. “A Voz dos Deuses” (Memórias de um companheiro de armas de Viriato), publicado em 1985, marca o início da sua carreira como escritor e é, por muitos, considerada como a sua obra maior.
A sua escrita, de uma beleza estética indiscutível, pode definir-se com uma frase também extraída dos comentários feitos na WEB: “escrevia bom português, com a simplicidade de um inglês”.
Para Urbano Tavares Rodrigues, vulto maior da literatura portuguesa e académico de mérito, João Aguiar “era um excelente escritor, que foi melhorando muito ao longo dos tempos. De entre os livros recordo em particular um sobre Macau: magnífico”.
Conversador fluente, com um domínio perfeito da língua, facilmente conquistava as audiências ou animava tertúlias entre amigos, com o humor acutilante que só a inteligência permite.
Falava inglês como se viesse de Oxford e francês como os da Sorbonne mas insurgia-se, até à raiva, com os estrangeirismos para termos com equivalente em português.
A preocupação pelo rigor chegava a roçar a “inconveniência”…
Uma vez, em Macau, acompanhei o João Aguiar a cumprimentos a um académico conceituadíssimo e respeitável. O interlocutor sentindo-se obrigado a brindar o visitante com uma citação adequada à circunstância vá de atribui-la a Júlio César. O João não resistiu. Com a maior das serenidades, emendou, suavemente: “não foi Júlio César. Foi César Augusto.”
O outro respondeu: “Claro, claro…”
Profundamente culto, João estudava os temas que ia tratar na sua obra. Investigava, documentava-se e quando fazia, fazia bem. Como escritor e como jornalista, estatuto que sempre reivindicou até ao fim, mesmo depois de passar a dedicar-se, a tempo inteiro, à actividade literária.
Para além da sua incursão pela literatura infanto-juvenil e por programas televisivos, João Aguiar escreveu um libreto para a ópera “Orquídea Branca” que assinalou as comemorações dos 500 anos da cidade do Funchal, estreada em Outubro de 2008.
Com a vaidade própria dos que têm um talento especial, gostava, naturalmente, de concitar a atenção dos outros, mas fazia-o com a humildade de quem, como disse Alice Vieira, “era um princípe”.
E a tal ponto levava o seu comportamento de cavalheiro que, quando passava por situações que fariam perder a paciência a um santo ou que, de qualquer forma, eram bizarras ou desnecessariamente inesperadas, as classificava como “experiências estéticas involvidáveis.”
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É incontestável que as letras portuguesas perderam um grande escritor, mas eu perdi este amigo de que vos dei uma pálida imagem.

Rogério Beltrão Coelho
(Publicado no jornal "A Tribuna de Macau", em 7 de Junho de 2010)