sábado, 29 de dezembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 10


UM OUTRO TEMPO
   A notícia de que, nas escolas, as disciplinas de Português e Filosofia iriam deixar de ter provas nacionais obrigatórias trouxe-me imediatamente à lembrança, por oposição, o reinado de D. Dinis I. Porque aquela notícia representa, de certo modo, o toque final na destruição de um edifício que o sexto rei de Portugal começou a construir — com a sua própria acção como poeta, com a adopção da língua portuguesa para a redacção dos documentos da chancelaria régia e com a criação e protecção da primeira universidade: ou seja, o edifício de uma cultura portuguesa. Aparentemente, esse edifício já não interessa, portanto há que demoli-lo para construir no seu terreno um banco ou um prédio de escritórios.
   Enfim, esses são contos largos. Atentemos, antes, nesse reinado de D. Dinis, porque, embora atravessado por duas guerras civis e outros contratempos, foi um tempo que, pelo menos visto a esta distância, é magnífico.
   Em primeiro lugar, um tempo de construção e consolidação. Os primeiros reis, de Afonso Henriques a Afonso III, cada um à sua maneira, melhor ou pior, da forma que souberam ou puderam, esforçaram-se por lançar os alicerces: alargando o território, cuidando de o povoar, dando-lhe (mérito de Afonso II) uma coerência jurídica, chamando (mérito de Afonso III) os concelhos a participar na acção política.        Quanto a D. Dinis, surge-nos como, passe o termo, uma «síntese» dos reis anteriores, na medida em que um dos traços mais notáveis da sua acção foi ter conseguido fazer executar boa parte das leis que os seus antecessores tinham concebido e assinado, mas que não tinham sido aplicadas, por oposição do clero ou da nobreza, consoante os interesses atingidos. A isto, acrescentou ele uma intervenção decisiva em todos os sectores da vida do reino — apesar de lhe terem posto o cognome de «Lavrador», a agricultura não foi, nem de longe, o único campo que mereceu a sua atenção. Teve ainda a inteligência e a abertura espiritual necessárias para proteger os Templários portugueses e criar para eles a Ordem de Cristo, que veio a desempenhar o papel que todos sabemos.
   Finalmente, como foi bom nós termos conhecido um período histórico, recuado embora, em que o chefe do Estado português gozava de tão grande prestígio internacional! «Os namorados que trovam de amor / todos deviam grão dó fazer / e não tomar em si nenhum prazer / porque perderam tão bom senhor / como el-rei D. Dinis de Portugal», escreveu, à morte do monarca, um poeta leonês. Era uma época em que os trovadores e segréis peninsulares sabiam todos versejar em galego-português, língua que dominava então a poesia ibérica. Mas para quem achar que não conta a opinião dos poetas, considere-se, antes, a opinião dos políticos: no Verão de 1304, D. Dinis passou a fronteira, com a rainha D. Isabel e uma brilhante comitiva, para, a pedido dos reis de Castela e Aragão, servir de juiz numa questão que opunha os dois reinos. E a sua sentença foi imediatamente aceite por ambas as partes.
   Sim, foi um reinado não isento de sobressaltos, mas cheio de vigor, inteligência e prestígio. Um tempo magnífico. Infelizmente, já bastante remoto…
João Aguiar

Inscrição na entrada do castelo de MELGAÇO

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

EXERCÍCIOS - Grafite H


Estrutura reprodutiva do Pinheiro Bravo: pinha de 8-22 x 5-8cm, aproximadamente simétrica na base, com apófises romboidais, carenadas e com umbigo proeminente; semente alada (penisco) de 7-8mm com asa até 30mm. Cor castanho-brilhante em árvores adultas.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 09


O BISPO GUERREIRO

     A ideia não seria nova nem original se a nossa visita histórica deste mês tivesse por destino a Idade Média: nessa época, havia prelados aguerridos — os arcebispos de Braga, por exemplo, eram grandes senhores que tinham a sua mesnada e um deles, D. Lourenço Vicente, foi mesmo ferido na batalha de Aljubarrota.
     Mas isto, sem ser coisa inaudita, já era bem menos vulgar no século XVII. E é na transição do século XVI para o XVII que vamos encontrar D. Marcos Teixeira, que foi cónego da Sé de Évora e bispo da Baía e que, nesta segunda função, e já no final da sua vida, assumiu, com inesperado brilho, um comando militar.
     Hoje, a personalidade de D. Marcos Teixeira surge-nos com a sombra de ter estado ligado à Inquisição, o que não é recomendação para ninguém, mas há que contar com a mentalidade da época e a educação que decerto recebeu… de qualquer forma, o que interessa, para o nosso caso, é que em 1621, já nada — mesmo nada — jovem, foi feito bispo da Baía. Temo-lo, pois, no Brasil, onde, por vias do seu temperamento, entra em conflito com o governador, Diogo de Mendonça Furtado.
     Mas outros acontecimentos vêm sobrepor-se a estes atritos. Em 1624, dá-se a primeira invasão holandesa da Baía, lançada por uma poderosa armada comandada por Jacob Willekens. O governador português tomou as medidas que considerou possíveis, embora tivesse poucos meios; foi, porém, impossível resistir ao ataque, efectuado a 9 de Maio; a cidade rendeu-se e o próprio Mendonça Furtado tornou-se prisioneiro dos holandeses.
     Na véspera, porém, o bispo D. Marcos Teixeira fugira da Baía e fora refugiar-se na aldeia do Espírito Santo, onde se concentraram outros portugueses que viviam na região. Havia instruções seladas contendo o nome do substituto do governador, caso este ficasse incapacitado; abertas essas instruções, viu-se que o sucessor designado era Matias de Albuquerque, governador de Pernambuco (e futuro general da Guerra da Restauração). Porém, Matias de Albuquerque estava longe e a situação na região da Baía era demasiado grave; assim, os moradores do Espírito Santo, reunidos em assembleia, escolheram, por aclamação, o seu bispo como governador provisório.
     Talvez nenhum deles tenha medido todo o alcance desta decisão. Assim que foi nomeado, D. Marcos mostrou bem de que metal era feito: organizou o governo e, sobretudo, organizou, com grande eficiência e entusiasmo, a resistência. Escolheu, acertadamente, a táctica da guerrilha e com ela bloqueou completamente os holandeses. Estes dominavam a Baía, instalavam-se nas casas, profanavam as igrejas; mas não podiam ir além do perímetro urbano, excepto a poder de sortidas que lhes saíam caras: assim, numa dessas sortidas, morreu o seu comandante, o coronel Van Dorth, e, a seguir, o seu substituto, Albert Schouten. Entretanto, o octogenário D. Marcos comandava pessoalmente a resistência e trabalhava nas fortificações. Em breve a situação dos ocupantes da Baía se tornou insustentável. Aliás, viriam a render-se no ano seguinte, quando chegou uma esquadra da Europa, com a missão de os desalojar.
     No entanto, o grande trabalho fora executado por D. Marcos Teixeira, ao longo do segundo semestre de 1624. Por fim, esgotado pelo esforço físico e pelas exigências do seu posto, o velho bispo entregou o governo a Francisco Nunes de Eça e morreu pouco depois. Mas a memória ficou: sem ele, talvez a Baía não falasse português…
João Aguiar

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 08


PECADO ORIGINAL

Numa crónica publicada há alguns meses, referi-me à mãe do nosso primeiro rei e escrevi que «as relações entre Afonso Henriques e D. Teresa foram bastante mais complexas e menos violentas do que diz a lenda». Como o tema da crónica era outro, não desenvolvi tal ideia, antes a deixei ficar neste ponto. Mas para quem, como nós, gosta de viajar pela História, tem certamente interesse explorar um pouco a questão, mesmo porque estamos falando de uma espécie de «pecado original» que teria presidido ao nascimento do nosso país: um filho revoltando-se contra a mãe e defrontando-a no campo de batalha.
Aliás, a lenda veio complementar a história: conta-nos como D. Teresa foi aprisionada após o recontro de São Mamede e depois posta a ferros e encerrada no castelo de Lanhoso, de onde lançou uma soturna maldição contra o filho, a qual veio a cumprir-se muitos anos mais tarde, no cerco de Badajoz, quando D. Afonso, já velho mas ainda combatente, foi ferido e aprisionado. E é curioso ver como a lenda, ao apoderar-se do nosso rei fundador, o fez evoluir, simultaneamente, em sentidos opostos: por um lado, é um filho que trata mal a mãe, (o que não é coisa de todo recomendável), mas, por outro, não só convive com milagres mas merece, até, a santificação — houve, aliás, múltiplas tentativas para o canonizar. Esta dualidade, note-se, é muito típica da figura do herói clássico, quero dizer: do herói grego, que comete grandes feitos mas também, eventualmente, grandes inconveniências, pelas quais vem a pagar. Portanto, a lenda tratou D. Afonso Henriques, de certo modo, «à maneira grega».
Isto quanto à lenda. Mas a História diz-nos algo diferente. Em primeiro lugar, o conflito entre D. Afonso Henriques e D. Teresa, entre filho e mãe, era coisa vulgar naqueles tempos, sobretudo nas famílias reinantes: veja-se, por exemplo, a história da monarquia leonesa. Aliás, tendo em conta os costumes da época, uma «simples batalha» era equivalente, digamos, a uma discussão particularmente acesa.
Em segundo lugar, D. Teresa não foi aprisionada após São Mamede. Não assistiu à batalha, evidentemente; há quem ponha mesmo a séria hipótese de ela, na altura, não se encontrar, sequer, em Portugal e sim na Galiza.
E, finalmente, talvez mais importante ainda: as relações entre mãe e filho não cessaram em São Mamede; pelo menos, as relações políticas. Sabe-se isto, quanto mais não seja, indirectamente. De facto, D. Teresa manteve, até à sua morte, em 1130, a ligação com o conde Fernão Peres de Trava, que, dois anos antes, comandara as suas tropas, vencidas pelo filho. Ora, nesse mesmo ano de 1130, cerca de seis meses antes do seu falecimento — não custa muito supor que ela já estivesse doente e impossibilitada de viajar —, o mesmíssimo conde Fernão Peres estava, calma e pacificamente, em Braga. E a sua presença é atestada por um documento: uma doação feita por D. Afonso Henriques e na qual se encontra a assinatura do conde galego, como confirmante do acto (um acto político) do jovem príncipe que o derrotara em 1128.
Portanto, as relações mantinham-se; não ternas, talvez, porém mantinham-se. Podemos ficar descansados porque, no nosso nascimento, não houve um pecado original especificamente português.

João Aguiar

Tentação - Óleo sobre tela

domingo, 2 de dezembro de 2012

MURMÚRIOS

MURMÚRIOS
INCURSÃO NO ACRÍLICO 

Murmúrio I . 2004 - Acrílico sobre tela 81X65cm


Murmúrio II . 2004 - Acrílico sobre tela 64.5X54.5cm

Murmúrio III . 2004 - Acrílico sobre tela 70X70cm

Murmúrio IIII . 2004 - Acrílico sobre tela 70X60cm

VIAGENS NA HISTÓRIA 07


O MITO CRIADOR
Quem não ouviu falar na batalha de Ourique?
A resposta será: muita gente —mas enfim, também há quem saiba do que se trata. Uns e outros, gostaria de, nesta viagem ao longo da História, os levar até lá — não à batalha verdadeira, pois ninguém sabe ao certo onde ela se feriu; nesse particular, quem quiser poderá ir até Ourique, no Alentejo, ou, prosaicamente, ao Campo de Ourique, em Lisboa, ou aos outros Ouriques que por cá temos. Não importa, para o nosso caso, o local, nem sequer as dimensões da batalha, que foram — se ela, sequer, existiu — muito inferiores ao que diz a tradição. Importa-nos, sim, visitar a lenda de Ourique, porque ela é, de facto, o «mito criador» de Portugal.
(Breve explicação: dou ao termo «mito» o sentido de história sagrada, de história exemplar, de algo que ocorreu num tempo primordial e que narra acontecimentos que se tomam como modelos. Ou seja: não interessa que esses acontecimentos sejam reais ou construídos; interessa, sim, que foram escolhidos como padrão, como modelo histórico a ser seguido pelas gerações seguintes.)
Ora, em muito breve resumo, o que nos conta o mito de Ourique?
Conta-nos que D. Afonso Henriques, então princeps ou dux dos Portugueses, no decorrer de uma investida em terras muçulmanas, travou uma batalha contra «cinco reis mouros»; que, na véspera da batalha, Cristo lhe apareceu e lhe deu as Quinas, para que ele as colocasse no seu estandarte e assim venceria o inimigo; e que, no próprio campo de batalha, os seus vassalos lhe pediram que fosse o seu rei e como tal o aclamaram.
Em traços muito rápidos, eis os elementos essenciais do mito de Ourique, o qual estaria já em formação cerca de cento e cinquenta anos após o recontro, que viria a completar-se nos séculos XIV e XV e cuja autenticidade só viria a ser contestada nos finais do século XIX. Devo dizer que há já largos anos que este mito exerce sobre mim um verdadeiro fascínio, porque ele aponta, para Portugal, um modelo que é confirmado pelos dados históricos.
Assim, o que nos dizem os acontecimentos míticos de Ourique? Dizem-nos que Cristo apareceu a D. Afonso Henriques para anunciar-lhe a vitória sobre o exército muçulmano; ou seja, o mito reconhece que Portugal é um fruto daquilo a que se chama a Reconquista Cristã. Dizem-nos ainda, os acontecimentos, que Cristo impôs as Quinas a Afonso Henriques e que, no campo de batalha, este foi aclamado rei pelos seus vassalos. Ou seja: embora o mito coloque Portugal sob a protecção divina, ele não confere uma origem divina à monarquia portuguesa. Cristo dá um brasão ao dux dos Portugueses, mas não o proclama rex. Quem executa este acto são os vassalos. São eles, portanto, que fundam o reino ao escolher e aclamar um rei. E esta é, a meu ver, a mensagem profunda do mito de Ourique.
Quanto à História, o que nos diz ela?
Que a cerimónia de entronização de um rei de Portugal tem o nome tradicional de aclamação e que essa cerimónia é essencialmente laica; o rei não é ungido e talvez nem sequer fosse coroado solenemente — os actos decisivos eram o juramento, o desfraldar da bandeira e o brado («Real, real, real»…), ou seja, a aclamação propriamente dita.
E a História diz-nos ainda que, quando Afonso II, neto de Afonso Henriques, fez testamento, estabeleceu que, morrendo ele sendo o herdeiro menor, este ficaria entregue à tutela dos vassalos e não da rainha viúva. Ou seja, desde os primórdios, nunca o reino foi propriedade do rei.
O que, ainda hoje, merece reflexão, atrevo-me a pensar.

João Aguiar

Charola do Convento da Ordem de Cristo - TOMAR