TRÊS PALAVRAS SOBRE WOLFGANG AMADEUS
Primeira — Comecei, não sei porquê,
a gostar da chamada «música clássica» aí por volta dos meus onze anos. Aos
quinze, sobre tal matéria, eu tinha — como é costume ter nessa idade — uma
opinião perfeitamente clara, definida, intransigente e imutável. A história da
música dividia-se em «Antes de Richard Wagner» e «Depois de Richard Wagner»; e
Wagner era o único compositor inteiramente digno desse nome, o génio único e
absoluto. Quanto a Mozart, o meu juízo estava também definido: Mozart era um
chato.
O que se passa, com os
quinze anos, é que muito brevemente se transformam em dezasseis e dezassete e
por aí fora; e, ao mesmo tempo que a acne juvenil vai desaparecendo,
desaparecem também as certezas claras, definidas e imutáveis. Portanto, e quase
sem dar por isso, entrei num processo de maturação e assimilação musical que,
sem abandonar Wagner, me levou para Richard Strauss, depois me fez saltar para
Stravinsky e logo a seguir, algo inesperadamente, para os italianos, de Rossini
a Pizzetti. Foi só então que me virei para o século XVIII e descobri o Vivaldi
das «Quatro Estações» e, mais tarde, os portugueses — e por essa altura já eu
me havia dado conta, finalmente, de que começara a gostar muito de Mozart.
Levei tempo, mas cheguei lá.
O que, a meu ver, mostra
duas coisas: primeira, o carácter caótico e inteiramente amador da minha
cultura musical, que é uma simples manta de retalhos cosida ao sabor da simples
e deseducada sensibilidade; segunda, o facto de Mozart ter sido, para mim, um
«prémio de maturidade». Foi-me preciso perder, não a acne exterior mas a
interior, para chegar até ele. E, quando cheguei, compreendi não só que valera
bem a pena mas ainda que teria sido uma catástrofe pessoal eu ter ficado na
fase do «Mozart é um chato», impermeável e insensível à sua música.
Segunda — De certo modo, o que hoje
mais me impressiona e atrai em Mozart é — por paradoxal que pareça — aquilo que
nos separa. Eu precisei de longos anos de maturação para chegar a entender a
sua música; ele nasceu quase como a deusa Atena, que brotou de Zeus já
crescida, vestida e armada, pronta para a luta. A precocidade de Mozart
deixa-nos atordoados: aos cinco anos compunha minuetes, aos onze cantatas
completas, aos doze compunha óperas, aos catorze compôs o «Mitridate, Re di
Ponto». Como foi possível? Não basta responder: era um génio. A interrogação
mantém-se: como foi possível?
Só à custa de um profundo
desequilíbrio. E, ainda assim, esta violência íntima que é ser capaz de compor
uma ópera completa aos catorze anos tem, necessária e fatalmente, de ser paga
em trauma em desgaste. Sim, fica-se com a sensação de que «algo», nele, tinha
de rebentar…
E rebentou, como sabemos. A
sua desordem pessoal é o sinal e a prova. E não podemos admirar-nos com a sua
morte aos trinta e cinco anos: Mozart esgotou, nesses trinta e cinco anos, toda
a energia, toda sua força vital de um século inteiro. O que mais lhe restaria
fazer neste mundo?
Terceiro — Genialidade, precocidade,
ambas levadas até ao (ou mesmo além do) ponto-limite possível e concebível. Mas
também atordoa nele a modernidade.
Não sou músico, nem sei
música. Isto poderá ser lamentável, porém não impeditivo: tal como sou,
basta-me ouvir o «Requiem» ou a cantata maçónica «Dir, Seele des Weltalls, o
Sonne» ou ainda a ária «Fra l’oscure ombre funeste», do «Davidde penitente»,
para perguntar-me, sem esperança de resposta: «Mas esta é mesmo música do
século XVIII?». E menciono somente estes três exemplos.
Dito isto, não encontro nada
mais para dizer. Há temas para os quais as palavras não chegam: torna-se
necessária a música…
João Aguiar
Lugar dos Moinhos - Ponte de Lima |
Sem comentários:
Enviar um comentário