ANTES DO PRINCÍPIO
Estas «Viagens
na História» realizam-se, como o seu próprio nome indica, no espaço e no tempo.
E a primeira para a qual vos convido é ao Minho, no século XI. Nessa época,
ainda D. Afonso Henriques não tinha nascido nem chegara à Península o quarto
filho do duque de Borgonha, um brilhante cavaleiro chamado Henrique.
Havia já uma
terra portucalense, então sujeita ao rei da Galiza — Garcia, filho de Fernando
I de Leão e Castela e que, por morte deste, herdara aqueles dois territórios.
Porém, segundo um cronista, a maior parte desse Portugal primitivo reconhecia
como senhor um vassalo de Garcia, o conde Nuno Mendes, e este revoltou-se
contra o rei, chefiando, assim, um movimento de emancipação. Tentativa
malograda, aliás: numa batalha travada em 1071, entre os rios Cávado e Ave, as
tropas do conde foram derrotadas por Garcia e o próprio Nuno Mendes morreu em
combate — diga-se, a propósito, que o vencedor também não viria a ter muita
sorte, pois acabou os seus dias no cativeiro, aí colocado pelo próprio irmão,
Afonso VI, o avô materno de Afonso Henriques.
Mas voltemos
ao conde Nuno Mendes. Alguns historiadores consideram que a sua rebelião não
teve um significado profundo — seria apenas um dos muitos sobressaltos
políticos em que a época era fértil —, enquanto outros sustentam que se tratava
já de uma manifestação da vontade portuguesa de afirmar a independência
(note-se que, por «vontade portuguesa», temos de entender a vontade dos nobres
e, eventualmente, de uma parte do alto clero; o povo, como entidade política,
não existia então). Entretanto, se a Crónica dos Godos não mente e os
factos ocorreram, resta que este episódio é, de qualquer forma, como que um
prelúdio, ainda que relativamente longínquo, à fundação do reino de Portugal e
mereceria talvez ficar na nossa memória; julgo, no entanto, que o bom povo
português, que sabe na ponta da língua quem é Deco e quanto Luís Figo ganha por
mês, está olimpicamente em branco no que se refere a Nuno Mendes, a menos que
exista um jogador de futebol com esse nome, coisa que, confesso o meu grave
pecado, ignoro.
Mesmo entre
aqueles que sentem algum interesse pelas nossas raízes, esta personagem é
largamente desconhecida. Em compensação, toda a gente (mais ou menos) sabe
(mais ou menos) quem foi Viriato e considera-o como um antepassado quase
directo, noção nebulosa que contém algum exagero. Sem dúvida, é uma figura
interessante — nem me conviria dizer o contrário, já que escrevi um romance
sobre a sua vida; sem dúvida, também, a história do chefe lusitano faz parte do
nosso legado. Em todo o caso, não deixa de ser curioso que tantos autores
portugueses, antigos e modernos, se hajam debruçado avidamente sobre Viriato,
que viveu no século II antes de Cristo, bem longe no tempo da formação da
nacionalidade, e poucos tenham sido aqueles que se interessaram pelo conde Nuno
Mendes, que viveu no século XI depois de Cristo e morreu menos de cem
anos antes da batalha de S. Mamede, a «primeira tarde portuguesa», como já lhe
chamaram.
Aliás, quando nós
pensamos no nosso passado remoto — o que, vamos lá, não acontece muitas vezes
—, as imagens que nos surgem são: Viriato, depois, num grande salto, D. Afonso
Henriques desrespeitando a senhora sua mãe (e não foi bem assim...) e
por fim a luta contra os Mouros. O quadro é, confessemos, um bocado desértico.
Por isso, aqui
fica, nesta viagem ao Minho do século XI, esta recomendação do guia: «À vossa
direita, entre o Ave e o Cávado, podem ver o conde portucalense Nuno Mendes a
combater contra Garcia, rei da Galiza. Vai ser trucidado, mas que fique a
lembrança».
João
Aguiar
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