ESTADOS DE GRAÇA
Uma das
utilidades da História é servir-nos de referência para o tempo presente. Assim:
se atravessamos um momento de relativa prosperidade ou grande orgulho nacional,
convém-nos olhar momentos passados e considerar as asneiras ou as inconveniências
cometidas, para ficarmos sóbrios e evitarmos reincidências; e, em tempos
deprimidos, quando o nosso moral colectivo está em baixa, é recomendável
considerar outros tempos em que o país, entrado numa espécie de «estado de
graça» — não sem imperfeições, evidentemente —, se colocou na vanguarda ou
reagiu com eficácia a circunstâncias adversas; isto para evitar o enjoativo e
destrutivo processo de autoflagelação e de indiferença que nada corrige e só
destrói.
Como terão já
percebido, é a esta utilização da História que vou referir-me, já que muito
raramente atravessámos um período tão degradado como o actual. Precisamos
urgentemente de recordar alguns «estados de graça», entre os vários que tivemos
— e não incluo, sequer, o tão evocado período das navegações e descobrimentos.
Assim,
convido-vos a viajar, antes de mais, até à revolução de 1383 – 1385. Estávamos,
na altura, em plena crise: enfraquecidos por três guerras desastrosas, sem Rei,
e na iminência de vermos aclamar D. Beatriz, que casara com o rei de Castela, o
que significava, obviamente, uma união das duas coroas. Por isso se fez a
revolução e ela colocou-nos na vanguarda política da Europa. Pela primeira vez,
uma boa parte da população agiu como povo — uma acção política,
uma acção que recusou os princípios consagrados da sucessão dinástica e os
substituiu por outros, com a eleição, em cortes, de um novo rei (D. João I) que
era um filho bastardo. Pela primeira vez, a «arraia miúda» levantou-se por uma
causa política e juntou-se a outras classes sociais, quando não as pressionou.
Pela primeira vez, uma parte substancial do país actuou como nação. Que me
lembre, tal não acontecera ainda, nestes termos, em toda a Europa.
A segunda
viagem leva-nos ao período que se seguiu a 1640. Novamente, um Portugal
extremamente enfraquecido. Mas, apesar de todas as deficiências, é prodigioso
como foi possível manter (e vencer) uma guerra que durou mais de vinte anos e
que não se travou somente na frente militar nem somente dentro do rectângulo:
éramos atacados em várias frentes, em toda a extensão do já decadente império,
tínhamos de obter o reconhecimento diplomático da Europa, refazer o exército, a
marinha — e, ao mesmo tempo, a economia. E, apesar de tudo isso, foi-nos
possível salvar o principal e vencer essa guerra de mais de dois decénios.
Para a
terceira viagem, não precisamos de ir tão longe no tempo: somente aos anos 70
do século XX. Refiro-me à integração do mais de meio milhão de pessoas que
entraram no país, vindas de África, no início e no seguimento do processo de
descolonização. Evidentemente, houve traumas, problemas, disfunções; mas, numa
perspectiva global, é notável que aquela integração fosse tão rápida, tão
pacífica e, julgo que podemos dizê-lo, tão eficiente. Note-se que não me refiro
apenas às medidas tomadas pelas autoridades. Refiro-me também, quase diria
sobretudo, à atitude dos próprios retornados e ao seu esforço; e também à
população no seio da qual se instalaram ou reinstalaram. Atritos? Alguns, sim —
nada que se compare ao longo trauma do regresso dos pieds-noirs idos da
Argélia para França.
Repito: nenhum
destes «momentos de graça» foi perfeito. A perfeição, como se sabe, não é deste
mundo. Mas, dentro do possível, fizemos o melhor. E, num momento como o actual,
não será descabido recordá-lo. Não para meditarmos lamurientamente sobre o
passado, mas antes para...
Para
acordarmos. O que já não seria nada mau.
João
Aguiar
Capela da Memória - Cabo Espichel |
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