terça-feira, 30 de outubro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA


A FRAUDE HONESTA

O destino desta viagem é Alcobaça; a sua época, o século XVII. Entremos sub-repticiamente no cartório do mosteiro e observemos aquele monge, além, muito ocupado a escrever. Não sabemos — ninguém sabe — quem ele é, mas, aqui para nós, está a fazer algo de muito importante: em pleno século XVII, escreve a cópia de um original do século XII. E, o que é ainda mais importante: como esse original nunca existiu, o monge está a inventá-lo. Assim, graças a esta esclarecida acção, vão entrar na História as Cortes de Lamego.
Façamos o enquadramento. Em 1632, ou seja, a época final da dominação filipina, Frei António Brandão publicou o terceiro volume da obra Monarquia Lusitana e nele incluiu, com uma advertência sobre a sua duvidosa credibilidade, um documento que seria a cópia tardia das actas de umas cortes que se teriam realizado em Lamego, em data posterior à da batalha de Ourique, para proceder à coroação solene de D. Afonso Henriques e estabelecer uma lei fundamental para o novo reino português. Para aqueles que em 1632 ansiavam pela restauração da independência e sonhavam já fazer da casa ducal de Bragança a nova dinastia real portuguesa, as decisões dessas cortes, sobre as quais, até então, ninguém ouvira ou lera uma só palavra, eram uma bênção caída do Céu: os princípios da sucessão no trono nelas consagrados tornavam virtualmente ilegítima a realeza dos Filipes em Portugal, tanto mais que, entre outros elementos importantes, impunham claramente a noção de que nenhum príncipe estrangeiro poderia reinar sobre os Portugueses; e, para completar o quadro, sustentava-se também um outro princípio: o da legitimidade da revolta popular contra o soberano que não respeitasse as liberdades, garantias e compromissos consignados naquelas actas.
Deste modo, discretamente, por vias de um documento cuja autenticidade não era assegurada mas que, apesar disso, se publicava, ficavam lançadas as bases jurídicas para um levantamento contra a dinastia que reinava a partir de Madrid. E isto não caiu em saco roto: oito anos mais tarde, a Restauração de 1640 tomaria as actas das Cortes de Lamego como uma das principais bases jurídicas e políticas da legitimidade e legalidade não só do movimento do 1º de Dezembro como da nova dinastia de Bragança.
Todos os historiadores actuais vos dirão, com inteira propriedade, que as Cortes de Lamego não existiram e que, portanto, as suas actas são falsas. Não tanto pelo facto de não haver outros documentos coevos a corroborá-las, o que já é significativo, mas enfim, poderiam ter-se perdido; mas porque um acontecimento tão importante seria fatalmente citado em diplomas posteriores e, sobretudo, porque as actas contêm erros e anacronismos graves.
E, no entanto, a fraude acaba por revelar-se menos... fraudulenta do que possa parecer. Ao reunir, um pouco desajeitadamente, os elementos que usou, o seu desconhecido autor coligiu, afinal, os princípios mais importantes daquilo a que podemos chamar o direito público português, contidos em capítulos de outras cortes realizadas sob as duas primeiras dinastias (e verdadeiras, essas), em testamentos reais, que eram também fontes de direito, e ainda no costume, que tinha, na época, uma força jurídica importante. Para dar apenas um exemplo, o preceito estabelecendo que um príncipe estrangeiro não podia reinar em Portugal fora estabelecido, por via revolucionária, em 1383 – 85 e fora ele que colocara D. João I no trono. Deste modo, as actas de Lamego, embora inventadas, não eram uma pura invenção...
Por isso, deixemos aquele monge, além, trabalhar calmamente e regressemos, nos bicos dos pés, ao século XXI, sem o perturbarmos no seu labor.
 João Aguiar
Vitrais do Mosteiro da Batalha

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