O destino desta viagem é Alcobaça; a sua época, o
século XVII. Entremos sub-repticiamente no cartório do mosteiro e observemos
aquele monge, além, muito ocupado a escrever. Não sabemos — ninguém sabe — quem
ele é, mas, aqui para nós, está a fazer algo de muito importante: em pleno
século XVII, escreve a cópia de um original do século XII. E, o que é ainda
mais importante: como esse original nunca existiu, o monge está a inventá-lo.
Assim, graças a esta esclarecida acção, vão entrar na História as Cortes de
Lamego.
Façamos o enquadramento. Em 1632, ou seja, a época
final da dominação filipina, Frei António Brandão publicou o terceiro volume da
obra Monarquia Lusitana e nele incluiu, com uma advertência sobre a sua
duvidosa credibilidade, um documento que seria a cópia tardia das actas de umas
cortes que se teriam realizado em Lamego, em data posterior à da batalha de
Ourique, para proceder à coroação solene de D. Afonso Henriques e estabelecer
uma lei fundamental para o novo reino português. Para aqueles que em 1632
ansiavam pela restauração da independência e sonhavam já fazer da casa ducal de
Bragança a nova dinastia real portuguesa, as decisões dessas cortes, sobre as
quais, até então, ninguém ouvira ou lera uma só palavra, eram uma bênção caída
do Céu: os princípios da sucessão no trono nelas consagrados tornavam
virtualmente ilegítima a realeza dos Filipes em Portugal, tanto mais que, entre
outros elementos importantes, impunham claramente a noção de que nenhum
príncipe estrangeiro poderia reinar sobre os Portugueses; e, para completar o
quadro, sustentava-se também um outro princípio: o da legitimidade da revolta
popular contra o soberano que não respeitasse as liberdades, garantias e
compromissos consignados naquelas actas.
Deste modo, discretamente, por vias de um documento
cuja autenticidade não era assegurada mas que, apesar disso, se publicava,
ficavam lançadas as bases jurídicas para um levantamento contra a dinastia que
reinava a partir de Madrid. E isto não caiu em saco roto: oito anos mais tarde,
a Restauração de 1640 tomaria as actas das Cortes de Lamego como uma das
principais bases jurídicas e políticas da legitimidade e legalidade não só do
movimento do 1º de Dezembro como da nova dinastia de Bragança.
Todos os historiadores actuais vos dirão, com
inteira propriedade, que as Cortes de Lamego não existiram e que, portanto, as
suas actas são falsas. Não tanto pelo facto de não haver outros documentos
coevos a corroborá-las, o que já é significativo, mas enfim, poderiam ter-se
perdido; mas porque um acontecimento tão importante seria fatalmente citado em
diplomas posteriores e, sobretudo, porque as actas contêm erros e anacronismos
graves.
E, no entanto, a fraude acaba por revelar-se
menos... fraudulenta do que possa parecer. Ao reunir, um pouco
desajeitadamente, os elementos que usou, o seu desconhecido autor coligiu,
afinal, os princípios mais importantes daquilo a que podemos chamar o direito
público português, contidos em capítulos de outras cortes realizadas sob as
duas primeiras dinastias (e verdadeiras, essas), em testamentos reais, que eram
também fontes de direito, e ainda no costume, que tinha, na época, uma força
jurídica importante. Para dar apenas um exemplo, o preceito estabelecendo que
um príncipe estrangeiro não podia reinar em Portugal fora estabelecido, por via
revolucionária, em 1383 – 85 e fora ele que colocara D. João I no trono. Deste
modo, as actas de Lamego, embora inventadas, não eram uma pura invenção...
Por isso, deixemos aquele monge, além, trabalhar
calmamente e regressemos, nos bicos dos pés, ao século XXI, sem o perturbarmos
no seu labor.
Vitrais do Mosteiro da Batalha |
Sem comentários:
Enviar um comentário