sábado, 17 de dezembro de 2011

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

ILUSTRAÇÃO CIENTÍFICA

Seixos rolados a grafite
Chama-se seixo a todo fragmento de mineral ou de rocha, menor do que bloco ou calhau e maior do que grânulo, e que na escala de Wentworth, de amplo uso em geologia, corresponde a diâmetro maior do que 4 mm e menor do que 64 mm.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

NASCI E CRESCI, MUITO SIMPLESMENTE, PORTUGUÊS

UMA SOLUÇÃO 
PRAGMÁTICA

Não nasci nem cresci monárquico ou republicano. Por um acaso histórico de que não tenho exagerado orgulho mas que também estou longe de lamentar, nasci e cresci, muito simplesmente, português. O mesmo não se pode dizer de muitos compatriotas meus, que poucos dias após terem vindo a este mundo, e sem possibilidade de fuga ou de escolha, foram filiados pelos pais num clube de futebol e cresceram, portanto, condicionados pela dupla qualidade de portugueses e de adeptos, sem saberem muito bem a que bandeira deviam maior lealdade.
Quer isto dizer que a minha opção pela ideia monárquica foi tomada em plena maturidade, após ter experimentado, na juventude, diversos entusiasmos e após ter atravessado, na idade adulta, um longo período de indiferença institucional. Não pretendo, obviamente, fazer a minha biografia ideológica - tal não se justificaria nem seria interessante - mas estas primeiras considerações servem para explicar que ao tornar-me monárquico a minha decisão foi essencialmente pragmática.
E o ideal? - perguntar-se-á. Evidentemente, o ideal está presente nesta opção, mesmo porque o considero indispensável ao ser humano. É questionável, porém, que neste baixo mundo o ideal exista em estado puro. Duvido que tal seja possível e até mesmo que seja desejável. Porque deve ser temperado, ou melhor, contido por um saudável realismo que terá em conta factores materiais e outras questões, não menos importantes, de ordem moral, cultural e psicológica.
Para mim, uma teoria política pesa tanto pelo seu valor ético e social como pela sua aplicabilidade prática - pela sua operacionalidade. Ao longo da História do Mundo, grandes sonhos e grandes ideais têm conduzido a grandes hecatombes e provocado sofrimentos que nada - nem sequer as excelentes e generosas intenções que estiveram na origem do processo - desculpará aos olhos das vítimas e no julgamento da História. E, mesmo sem hecatombes nem tragédias, a ideologia aparentemente mais nobre e perfeita pode causar distorções mais ou menos graves se não se tiver em conta a sociedade (o terreno) em que os seus seguidores passam da teoria à prática.

2008 - enquadrado na sua história ©
Foi neste enquadramento geral que fiz, há anos, a minha opção monárquica. Afigurar-se-ia ocioso, por demasiado evidente, acrescentar que me refiro sempre, neste texto, a uma Monarquia Constitucional, em que o Rei assegura a chefia do Estado e a suprema representação nacional sem interferir na acção dos poderes legislativo, executivo e judicial. Acrescento, porém, este esclarecimento porque, fruto de uma certa distracção (ou ignorância) fundamental,  abundam, hoje em dia, as concepções distorcidas e simplistas sobre o sistema monárquico, como se este - tal como o republicano - não se houvesse alterado e adaptado, através dos tempos, aos novos valores políticos e éticos.
Não considero a Monarquia como uma solução universal e perfeita, mesmo porque não acredito em soluções universais e perfeitas; acredito, sim, na riqueza da diversidade humana, que impõe uma certa diversidade de sistemas, e no perene e humilde combate contra o erro, tendo a perfeição como horizonte que se deve perseguir, mas que se sabe ser inatingível. Portanto, a Monarquia não oferece - mais uma vez, tal como a República - o paraíso terreal a nenhum povo e seria claramente inadequada em países como os Estados Unidos ou a Federação Helvética. Mas naqueles Estados onde existe ou existiu e criou fortes raízes, ela parece-me ser, de facto, o melhor sistema institucional, porque, mais do que qualquer outro, tem a capacidade de conciliar, respeitando integralmente a liberdade individual e os direitos cívicos e políticos, dois vectores, duas forças que julgo essenciais: a tradição e a inovação (ou renovação). Tendo em conta que Portugal sofreu durante 48 anos por considerável excesso de «estabilidade», poder-se-á também usar outro fraseado: a Monarquia é, em meu entender, a melhor forma de assegurar a instabilidade equilibrada capaz de garantir que grandes e necessárias transformações possam processar-se com a maior harmonia possível.
O termo tradição é aqui usado em sentido lato. Engloba, portanto, a identidade que nos é própria, todo o nosso legado, tudo aquilo que, ao longo de oito séculos de vicissitudes e mudanças, por vezes revolucionárias, continua a caracterizar-nos; tudo aquilo que faz de nós os Portugueses e não qualquer outro povo. É a nossa identidade, como referi, e é, portanto, acima de tudo, a nossa cultura. Não se trata, pois, de um conceito «fechado», uma vez que não há cultura sem a influência e a elaboração de elementos externos - mas o modo de processar tal elaboração é, justamente, um traço essencial da identidade de cada povo.
Contudo, este elemento de continuidade e de identidade que é a tradição, no sentido que lhe aplico, tornar-se-ia perigosamente conservador (leia-se: imobilista) sem o elemento inovador ou renovador. Este, escusado seria dizer, só é possível, sem revolução, havendo liberdade de crítica, de debate e de voto, ou seja, em democracia. É o equilíbrio entre as duas forças - um equilíbrio dinâmico - que, julgo eu, a Monarquia é capaz de estabelecer, bem melhor do que a República, nas sociedades que ela ajudou poderosamente a formar, como é o caso da sociedade portuguesa. Porque uma chefia do Estado apartidária e hereditária fornece o enquadramento necessário de que a democracia necessita para funcionar em pleno, sem querelas de partido entre a magistratura suprema e o poder executivo que, esse, é rigorosamente o que for determinado pelas eleições.
Por outro lado, devemos ter presente uma característica que é, em grau variável embora, comum a todos os povos: a necessidade de uma grande figura paternal, ou maternal, que seja, ao mesmo tempo, símbolo da comunidade e seu delegado; que seja ao mesmo tempo um supremo recurso em tempo de crise e uma «propriedade» nossa, de quem podemos exigir a presença e o conforto; de quem não desejamos a intervenção activa na governação, mas de quem esperamos que seja a lembrança viva de que, para além de grandes conflitos ou simples querelas, há algo que nos une, do passado ao futuro.
Esta necessidade é, penso, natural e inelutável e é extremamente perigoso ignorá-la nas Constituições e nos sistemas políticos, porque ela tenderá, se a expulsarem pela porta da frente, a entrar pela das traseiras ou por uma janela. Isto é: se o sistema institucional não a tomar em conta, alguém, cedo ou tarde, se aproveitará dela para, de uma forma ilegal ou pelo menos ilegítima, tentar instalar-se e eternizar-se no poder, esmagando liberdades e eliminando ou neutralizando as vias político-jurídicas da crítica e da contestação.
Pela minha parte, prefiro, de longe, uma figura que, pela sua preparação desde a infância e pela própria natureza do seu cargo, confirmada na tradição e nela «incrustada», está, à partida, limitada nos seus actos, quer pelas leis constitucionais quer pela obrigação moral cimentada pela própria tradição. Em Portugal, pelo menos, o poder do Rei nunca foi de facto absoluto. Quando D. Afonso IV quis alterar o valor da moeda, requereu consentimento «aos povos e à cleresia» e, segundo parece, o consentimento terá sido dado com a condição de tal medida não voltar a ser tomada; D. João III, que durante o seu reinado enfrentou grandes dificuldades financeiras, nem sempre recebeu das Cortes a resposta que pretendia para os seus pedidos de financiamento; e, bem mais perto de nós, D. Manuel II não logrou, como desejaria, ver surgir em Portugal um partido socialista porque, obviamente, não podia envolver-se numa acção dessa natureza. De resto, numa Monarquia Constitucional, o Rei é certamente o cidadão com os direitos políticos mais restritos e mais limitados.
Acresce que, em República, quando uma figura de referência se impõe, seja ela um «salvador» ou um «pai» colectivo, o prestígio e a popularidade recaem totalmente sobre um indivíduo, concreto e personalizado: aplaude-se o Presidente X ou o primeiro-ministro Y porque se trata da pessoa X ou Y. Estaline, Hitler, Kim Il Sung e outros representam variantes deste tipo de figura - na sua forma extrema, evidentemente. Em Monarquia, porém, é sobretudo o símbolo que conta: aplaude-se o Rei, antes de tudo, porque é o Rei e o comportamento deste deve corresponder ao que dele se espera: ser um símbolo nacional, o símbolo da continuidade e da tradição
Esta importante diferença é, a meu ver, uma garantia adicional. X ou Y podem sofrer a tentação do poder, enquanto que dificilmente o Rei poderá sentir ou ceder a essa tentação: a própria natureza das suas funções o impede, para já não falar da formação que recebeu desde o berço. É certo que há excepções (raras embora), como sucedeu com Vítor Manuel III de Itália, que tolerou a ditadura fascista de Mussolini. Mas recorde-se que Mussolini caiu, afinal, porque acabou por ser demitido pelo próprio Vítor Manuel III. Recorde-se, igualmente, a aversão que Hitler nutria pelos Hohenzollern e pelo regime monárquico. E, ainda, que Salazar se esforçou por agradar aos monárquicos permitindo que D. Duarte Nuno, Duque de Bragança, viesse residir em Portugal, mas, cuidadosamente, afastou sempre a hipótese de uma restauração. Um Rei é extremamente perigoso para um ditador[*].
Referi-me, atrás, à figura do Rei como «um supremo recurso em tempo de crise e uma propriedade nossa, de quem podemos exigir a presença e o conforto». Neste contexto específico, o sistema republicano tem uma falha essencial. É difícil tomar e sentir como padrão, símbolo e recurso uma figura que muda de quatro em quatro, cinco em cinco ou sete em sete anos e que, na maioria dos casos, chegou à chefia do Estado por vias partidárias, indiscutivelmente legítimas em verdadeiras eleições democráticas, mas que, na realidade brutal dos factos, não podem produzir uma representação total, uma «emanação» do povo. Por muito sinceras que sejam as suas intenções, elas podem sempre ser atribuídas a directivas que visam maior êxito na próxima ida às urnas.
E não é despiciendo o papel moralizador desempenhado por vários reis em tempo de crise. Quando, entre 1855 e 1857, Lisboa foi devastada por duas epidemias sucessivas, uma de cólera-morbus e outra de febre amarela, D. Pedro V manteve-se na capital e visitou incansavelmente os hospitais - o que, na época, representava um sério risco de vida - falando com cada doente. Quando, na Segunda Guerra Mundial, os Holandeses se viram esmagados e ocupados pelas tropas de Hitler, o seu maior encorajamento foi, talvez, a voz da Rainha Guilhermina, que ouviam clandestinamente na rádio. E quando, no início dos anos 80, a Espanha se viu sacudida por um derradeiro sobressalto da extrema-direita, foi uma simples frase de Juan Carlos I, dita perante as câmaras de televisão, que retirou aos revoltosos a última esperança de vitória.
Colocando, assim, os vários factores na balança, não me parecem colher credibilidade os argumentos clássicos invocados pelos republicanos contra uma chefia monárquica do Estado. Não me parece inaceitável, por exemplo, que haja em democracia um poder cujo detentor não é eleito em sufrágio universal, porque o poder judicial também não é eleito e porque o Rei terá, quando muito, um simples poder moderador ou de aconselhamento - na realidade, o Rei constitucional não tem poderes e sim funções. Nem me parece «exótico» que haja uma família, a família real, a quem são concedidos privilégios únicos, pois que não podemos falar propriamente de privilégios e sim de obrigações. Nem me parece razoável o argumento: «e se o Rei for inadequado, ou até débil mental?», porque as leis da sucessão através do primogénito não são - nunca foram - tão simplistas ou tão rígidas: será Rei quem for jurado herdeiro e a família real é, para todos os efeitos, uma «reserva da república» (tomado o termo aqui no seu significado original, de «coisa pública»). Nem, finalmente, me parece que a Monarquia saia mais «cara» aos contribuintes, tanto mais que as estatísticas não o provam e que tudo depende da legislação e da vontade do Parlamento.
Resumindo, a opção monárquica é, para mim, não uma saudade tradicionalista, que não sinto, mas uma simples questão de bom senso.

                                                              João Aguiar

D. Nuno Álvares Pereira  - Mosteiro da Batalha ©
[*] Poder-se-á contrapor a esta afirmação o caso de D. Carlos I e da ditadura de João Franco. Mas, embora esse tenha sido indiscutivelmente um erro político, é preciso ter em conta que se tratava de uma medida temporária e de excepção. Nem o Rei nem o próprio João Franco desejavam prolongar tal situação e ainda menos institucionalizá-la.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

MANUSCRITOS


Persona - individualidade/personalidade... e eu, ego

Há tempo (2005), estava no átrio de um hotel no Rio de Janeiro e veio-me uma ideia tão forte que me senti impelido a ir até à recepção, para pedir uma folha de papel onde pudesse escrever e desenvolver essa ideia. Deveria ter, mais tarde, com a memória ainda fresca, passado a limpo esse texto – mas não o fiz. Agora, não me recordo bem do que tinha em mente quando escrevi: “Persona – individualidade/personalidade... e eu, ego: diferença?” Porque a verdade é que o ego me parece ser a parte que devemos dominar e, mais tarde, até, eliminar. Mas passo a transcrever o que escrevi no Rio (com algumas alterações e ajustes):
Aquilo que fica depois da dissolução da “personalidade” (persona”... máscara...): o que se dissolve seria o circunstancial – e, idealmente, seria a parte negativa, os aspectos negativos. O que “fica” irá construindo o verdadeiro ser: as qualidades positivas (vindas, possivelmente, de vidas/manifestações anteriores) e as qualidades que vamos desenvolvendo ao longo desta vida terrena: o “desbaste”, as correcções de trajectórias, comportamentos e sentimentos. E esses elementos irão construindo a verdadeira individualidade que seria a razão da manifestação divina através do Homem.
(Temos de admitir forçosamente que esta trajectória não é simplesmente linear, que pode haver recuos. O livre arbítrio há-de funcionar, pelo menos até certo ponto; e também as condições objectivas em que se desenvolve a vida de cada um. Há vidas tão desgraçadas - deficientes profundos; gente em toda as partes do mundo que sofre intensamente, etc. - que me parece necessário admitir recuos, além dos avanços. De resto, a questão do sofrimento é uma das várias questões essenciais que não estão resolvidas.)
Mas regressando à minha linha inicial de raciocínio: a ideia que delineei (imperfeitamente) implica (pelo menos na Terra; sobre outros planetas e outros mundos, nada sabemos) que atribuímos ao Homem o estatuto de “rei” da Criação, por assim dizer: o ponto máximo da escala. (Parêntesis importante: este termo, “rei da Criação”, não deve induzir em erro. Usar o termo “rei” é correcto se lhe dermos o significado verdadeiro – ou antes, aquele que eu atribuo à ideia de rei. Não vou agora alargar-me sobre isso; basta dizer que não significa “o ditador da Criação”, que pode fazer o que muito bem lhe apetece com a Natureza – minerais, vegetais e animais –; nada disso.)
Retomando: o Homem, ponto máximo da escala (apesar dos horrores que tem cometido e comete...). Esta noção do ponto máximo da escala é evidentemente contestada por muitos – ou pelo menos por alguns: “quanto mais conheço os homens mais gosto dos animais...” e “se o homem não existisse, o mundo continuaria a existir, talvez melhor e mais equilibrado, decerto inocente”. Mas isso é falsear a questão, dizer: “se o homem não existisse”. Sendo toda a vida manifestação divina (estou, aqui, tentando usar a razão, que, em princípio, também é um dom divino), é evidente que continuaria a haver manifestação, epifania, teofania; mas não da mesma forma, não na escala humana, que é superior – superior porque é a única em que um ser vivo tem plena consciência de si próprio, em que esse mesmo ser vivo construiu (ou talvez seja melhor dizer: descobriu) a noção do bem e do mal, de ética, de arrependimento, de compaixão (não se subestima, aqui, a afectividade animal; apenas é diferente). Esse mesmo ser vivo é o único (no planeta) capaz de pensamento abstracto, de se fazer perguntas sobre a vida e a morte, de se angustiar. O medo é comum a muitos animais. Já a angústia é exclusivamente humana. E poderia desenvolver estas ideias quase indefinidamente.
Enfim: isto tem preços, e um deles é o de certas noções ou certas  qualidades atrás referidas (consciência, ética, etc., etc.) poderem ser pervertidas e de os homens, entre o bem e o mal, poderem escolher o segundo, consciente ou inconscientemente. (Não estou a ignorar o estado, já invocado por autores como Nietzsche, de “para além do bem e do mal”; simplesmente, não considero tal estado, como não considero admissível a ausência de solidariedade.)
Mas – é isto o que importa ter presente – não me parece que o facto de o Homem estar no topo da escala implique que ele seja o estádio final do processo de evolução. Não julgo que o Homem, tal como o conhecemos, represente a fase final do plano divino de manifestação. Mesmo porque – como muito bem sabemos! – é demasiado imperfeito; tem demasiadas fraquezas. Simplesmente, é capaz de o reconhecer.
Mas o Homem é uma simples etapa. Temos de nos superar, de dar origem a algo de superior – daí o mito do herói. Claro, sabemos que a superação é um processo longo, não indolor, e que comporta riscos.
Sobre as religiões: as exotéricas, ou na sua expressão exotérica, dão-nos a “manutenção” espiritual das massas. As esotéricas, ou na sua parte esotérica, procuram proporcionar-nos os meios para efectuarmos a superação, a transmutação alquímica do homem.

João Aguiar

O  meu muito obrigado ao Carlos Madeira pela revisão da transcrição do texto, porque ele, mais que ningém, sabia o que o João estava a pensar quando escrevia.

 

sábado, 13 de agosto de 2011

"ENSAIOS" SOBRE HISTÓRIA - sem comentários


Exmª Senhora
Drª Maria de Fátima Marinho
a/c CAMPO DAS LETRAS - Editores
Rua D. Manuel II, 33 -
4050 - 345 PORTO

Oeiras, 17 de Abril de 2000

Li, há dias, na sua obra O Romance Histórico em Portugal, as referências àqueles dos meus livros que se enquadram nessa classificação. Nada tenho a criticar na intenção e no conteúdo do seu texto e, ainda que tivesse, isso não justificaria que a aborrecesse com uma carta. Sucede, porém, que há nesse mesmo texto um erro e é esse erro que pretendo assinalar — mas, acredite, não o faço com o mínimo azedume, que não teria razão de ser; antes num espírito de colaboração, de quem sabe que ninguém está imune a erros e enganos. E como lhe desejo sinceramente uma segunda edição e muitas mais, pode ser que veja interesse em introduzir uma correcção.
O erro encontra-se nas seguintes linhas: «Nos quatro romances acima mencionados, João Aguiar recria as vidas de Viriato, S. Quintiano de Braga, Sertório e Inês de Castro»... e, mais adiante:  «O Trono do Altíssimo foca a vida de S. Quintiano de Braga, personagem que viveu na diocese de Braga, no século IV d.C.»...
O problema está em que S. Quintiano de Braga nunca existiu, foi inventado por mim, como aliás se encontra expresso logo no início das Notas, em O Trono do Altíssimo (pág. 351, na edição da ASA):
«As personagens centrais deste livro — isto é: Quintiano, Secundino, Flávio, Restituto e Vitimer — são fictícias».
Na realidade, o que o romance pretende abordar é a própria heresia priscilianista e aquilo que se sabe da vida de Prisciliano.
Deixe-me repetir que este meu reparo não é, de modo algum, feito com um espírito negativo, bem pelo contrário. Compreendo perfeitamente que lhe haja escapado esta informação, porque possivelmente não leu as Notas, já que estas, claro, não fazem parte do romance. E, por outro lado, a Brácara do século IV é-nos suficientemente obscura para que não tenhamos de saber os nomes dos seus santos históricos. De certo modo, considero até que este erro é para mim um elogio, já que terei dado tanta veracidade ao meu Quintiano que consegui convencê-la da sua existência histórica. No entanto, como estou certo de que pretende o máximo rigor na sua obra, aqui lhe deixo, com amizade, esta indicação.
Posso ainda fazer outro breve comentário? Não se trata já de uma correcção; apenas gostaria que, uma vez que deu atenção aos meus livros, tivesse, para si, uma ideia exacta de certas intenções minhas, ao escrevê-los.
É exacto que, como diz, não há nesses quatro romances «a apresentação de teorias originais ou subversivas sobre as personagens históricas, antes a reprodução romanceada de saberes há muito estabelecidos».
No entanto: no caso de Viriato, uma das minhas razões foi destruir o estereótipo do rude pastor dos Hermínios entrincheirado numa Cava em Viseu, ideia que, como sabe, ainda está razoavelmente implantada (e que eu, certamente muito mais velho que a senhora, aprendi na escola primária). No caso de Sertório, quis, entre outras coisas, rectificar a imagem de um herói dos Lusitanos, sucessor directo de Viriato, imagem que os eruditos sabem ser falsa mas que também é predominante, para quem ouviu falar de Sertório. No caso do Trono, pretendi dar a conhecer uma heresia e uma realidade histórica que são largamente ignoradas e mostrar que a sacrossanta e ortodoxa cidade de Braga teve um bispo herege e foi reduto de uma heresia. E, no caso de Inês, quis — também entre muitas outras coisas — realçar o componente político da história e tratar a sua morte como a execução de uma sentença, cruel embora, e não como um assassínio.
Mas, claro, nada disto contradiz a sua afirmação.
João Aguiar
Museu Britânico - Baixo relevo da Grécia antiga

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

PALESTRAS


"A SEDUÇÄO DO LEITOR"
(Agrad.: Univ.Barc./Bas.Los./Edhasa)(Língua)
(I - Introduçäo)

1 - Antes de mais, permitam-me que explique o título desta conversa (prefiro chamar-lhe "conversa" em vez de "conferência", mesmo porque espero que haja de facto uma conversa, com muitos diálogos).
O título, e o tema, é: "A seduçäo do leitor". E uma explicaçäo é necessária para que näo pensem que se trata de uma palestra muito erudita, da exposiçäo "ex-cathedra" de uma tese profunda sobre a teoria da literatura.
Näo é, na realidade, nada disso; o estudo e a teorizaçäo da literatura säo evidentemente importantes e necessários, mas näo säo a minha especialidade. De resto, e correndo o risco, talvez, de os desiludir, devo confessar que eu sou apenas licenciado em Jornalismo e que, portanto, näo entrei na Literatura pela via académica. Aliás, näo entrei na literatura: caí na literatura subitamente, um pouco por acaso - se é que, nestas coisas, podemos falar de acaso.

2 - Acontece, porém, que me foi pedido que falasse sobre a narrativa literária, ou, mais precisamente, sobre a minha narrativa literária. E isso colocava-me um pequeno problema: o de falar de mim mesmo, como escritor. Isso é algo em que me sinto pouco à vontade, é quase como se estivesse a fazer o meu louvor - ou o meu epitáfio. Para o primeiro, näo me sinto habilitado. Para o segundo também näo, e espero ardentemente que ainda seja cedo demais.

3 - E entäo, para falar da minha narrativa... sem no entanto o fazer directamente; para evitar a impressäo errada de que me tomo demasiadamente a sério, escolhi como tema "A seduçäo do leitor", porque este enunciado - que é todo um programa! - resume, afinal, a minha concepçäo de escrita e o objectivo da minha escrita.

(II - Um outro tempo)
1 - E agora, peço a todos um pequeno esforço de imaginaçäo; podem até fechar os olhos, se quiserem, para visualizar melhor. Peço-lhes que recuem no tempo, até àquela época, muito anterior à escrita e à generalizaçäo da escrita, em que os homens viviam ainda integrados num clä, numa tribo. E peço-lhes que tentem visualizar aqueles momentos, importantes, em que o clä se reunia em torno de um homem. E que homem, ou que homens säo esses?
Deixem-me dar uma imagem. Em Portugal, um dos meus lugares favoritos é a citânia de Briteiros: as ruínas de um castro, uma povoaçäo da Idade do Ferro, situada näo longe de Guimaräes. Em Briteiros, há uma casa (as ruínas de uma casa) bastante maior do que as outras, que servia obviamente de local de reuniöes, talvez usado pelo conselho dos anciäos que governaria a cidade; mas, da última vez que lá estive, ouvi uma explicaçäo, sem dúvida mais romântica do que fundamentada, mas que me agradou: seria ali que a populaçäo se reuniria para ouvir os contadores de histórias.  Säo esses os homens de que falei e que pretendo evocar: os contadores de histórias, em volta de quem o povo se reunia, fosse numa casa, fosse numa clareira, ou, mais tarde, no largo principal da aldeia, ou no adro da igreja, ou junto de uma escada ou de uma fonte, ou à sombra de uma árvore.
Porque, para mim, escrever um romance é contar uma história. É, afinal, continuar a tradiçäo dos contadores de histórias. E por humilde que seja essa linhagem, ela reveste-se, ao mesmo tempo, de uma grande nobreza. E se eu conseguir esse título de contador de histórias, de bom contador de histórias, julgo que näo poderei aspirar a nada melhor.
2 - E o que fazia - o que faz - o bom contador de histórias?
Em primeiro lugar, ele abre uma brecha no fluir do tempo. Enquanto está junto do ouvinte, ou do leitor, ele integra-o num tempo diferente, que é o tempo da sua história, um tempo virtual - para usar um termo que se tornou caro aos iniciados nos mistérios da informática.
Eu penso que uma das necessidades básicas do homem, daquelas que vêm logo a seguir à alimentaçäo e à respiraçäo, é ter disponível esse tempo virtual e poder viver nele durante certos períodos da sua existência que quebram o ritmo do quotidiano.

(III - Realidade virtual)
1 - Falar nesse tempo virtual implica necessariamente falar na realidade virtual desse tempo em que o ouvinte e o leitor mergulham.
Aqui, quero referir, muito brevemente e só como exemplo, o célebre romance de cavalaria "Amadis de Gaula", que fascinou geraçöes, durante vários séculos. Näo vamos, claro está, discutir a sua origem, se é portuguesa, castelhana ou francesa; deixo esse combate para guerreiros mais eruditos. O que pretendo referir é o seguinte:
Conta um autor, julgo que do século XVI, que um dia um homem entrou em casa e encontrou toda a família a chorar diante de um livro. Alguém lhe explicou entäo a causa do choro: "Morreu Amadis!". Acontecera que estavam todos a ouvir o romance, lido em voz alta, e a história tinha chegado ao ponto em que se julgava que o herói morria.
Considerando a época e os meios de comunicaçäo, vemos que o "Amadis de Gaula" era muito melhor, infinitamente melhor do que qualquer telenovela ou série televisiva.
Pois bem: do que se fala aqui, afinal, é de um outro efeito que o contador de histórias exerce sobre o seu público: o envolvimento na realidade virtual da história. A capacidade de maravilhar, de levar o leitor a acompanhar os heróis, a rir, a emocionar-se, a sofrer com eles, a respirar com eles.
E esta é também uma necessidade humana que näo pode ser iludida, que näo é possível iludir. Se tentarmos recusar às pessoas a satisfaçäo dessa necessidade, elas iräo à sua procura. Se näo lhes dermos boas histórias, boas e bem escritas, que as maravilhem e que as envolvam, que as emocionem, elas iräo maravilhar-se e emocionar-se com histórias más e mal escritas. Mas nunca deixaräo de tentar satisfazer esta necessidade, porque ela é uma das características que nos distinguem dos animais.
Ela reflecte a necessidade de emoçäo, de transcender a satisfaçäo das outras necessidades materiais, que também säo muito importantes, mas que afinal säo, apenas, igualmente importantes. As duas säo indissociáveis - e, a propósito, o que é lamentável, e mesmo dramático, é que os Governos, e sobretudo os ministros das Finanças, mal se däo conta disto. Como mal se däo conta disto os economistas e os presidentes dos conselhos de administraçäo.

(IV - A história)
1 - Para poder arriscar uma primeira conclusäo, deixem-me fazer uma afirmaçäo que peca certamente pela redundância:
O que um contador de histórias faz, essencialmente, é - contar histórias.
E já o disse: penso que, efectivamente, um romance é, antes de mais, uma história.
Certamente que mesmo os grandes contadores de histórias do passado näo se limitavam ao encadear dos factos, àquilo a que chamamos o enredo.
Como sabemos, eles transmitiam, de geraçäo em geraçäo, os grandes mitos - e nunca será demais salientar a importância do mito, näo na concepçäo de "história inventada", mas na concepçäo, definida por Mircela Eliade, de história sagrada, história exemplar, de algo que ocorreu no tempo primordial e que é significativo.
E, como vimos, os contadores de histórias eram também catalisadores de emoçöes. E, muitas vezes, enunciavam ainda padröes de comportamento, ou seja, apresentavam ideais e  modelos éticos - como foi o caso do desconhecido autor do "Amadis de Gaula".
Mas todos esses elementos estavam entrelaçados, indissoluvelmente ligados à história que se contava. O modelo de cavalaria que foi Amadis nada seria sem as suas aventuras; os heróis da "Ilíada" e da "Odisseia" apaixonam porque vivem e actuam - e a história das suas aventuras, dos seus combates, alegrias e mágoas, está täo bem contada que ainda näo perdeu o fascínio, apesar dos milénios que atravessou.
2 - Com todas estas consideraçöes, desejo simplesmente salientar que - sempre na minha concepçäo do romance - a história näo é um mero pretexto nem é uma desculpa. É a essência mesma do romance. Sem história, näo há romance. Näo quero, de modo algum, ter a arrogância de apresentar uma definiçäo; direi, muito simplesmente, que para mim um romance é uma boa história, bem contada.
3 - Evidentemente, se a história for boa, e se for bem contada, ela conterá em si a alma das personagens, a respiraçäo das personagens. O que equivale a dizer, em termos teóricos, que ela incluirá necessariamente a análise psicológica, a profundidade psicológica, täo cara a tantos ensaístas e críticos.  E poderá até (embora eu julgue que isso näo é obrigatório) poderá até conter aquilo a que se convencionou chamar uma mensagem.
Note-se que näo subestimo estes elementos, antes penso que eles fazem viver a história, que a tornam, se näo plausível (o que também näo é estritamente necessário) pelo menos virtual, no sentido em que é vida em potência, capaz de ser vivida pelo leitor no mundo virtual que o escritor criou para ele.

(V - Imaginaçäo e intimidade)
1 - Vimos que o contador de histórias, antigo e moderno, cria um tempo e uma realidade e neles mergulha o leitor, envolvendo-o e catalisando as suas emoçöes. Mas o contador de histórias toca ainda uma outra tecla, entra num outro domínio: o da imaginaçäo.
Näo me refiro à imaginaçäo do contador, e sim à imaginaçäo do leitor. Este é um domínio essencial - se assim posso dizer, é cada vez mais essencial.
Porque é aqui que, hoje em dia - e afinal, desde sempre! - se localiza o cerne da história, do romance. E esta é a grande diferença entre narrativa escrita e a narrativa audiovisual.

2 - Permitam-me agora uma breve digressäo - aliás mais aparente do que real. Näo concordo com aqueles que contrapöem a escrita ao audiovisual, e que chegaram mesmo a profetizar a morte da escrita. As diferenças e a complementaridade dos dois meios parecem-me óbvias. A narrativa, a ficçäo audiovisual e a ficçäo escrita näo satisfazem exactamente as mesmas necessidades.
O que sucedeu - e penso que nem todas as literaturas reconheceram o fenómeno, ou pelo menos näo o reconheceram com a mesma extensäo - o que sucedeu foi que, sem dúvida, a generalizaçäo do audiovisual provocou grandes transformaçöes no gosto e na acessibilidade do público, e essas transformaçöes reflectiram-se naturalmente  na forma de escrever, na forma de contar histórias em livros.
Uma vez mais, saliento que estou apenas a referir-me à minha concepçäo do romance; e nesse âmbito, direi que näo se pode escrever uma história como se fazia antes do advento do audiovisual.
Houve correntes literárias - certamente respeitáveis - que reagiram ao audivisual pelo afastamento. Ou seja, desviando o romance da sua própria essência, isto é, uma boa história bem contada. Esta via, como disse, é respeitável, porque tudo é respeitável. Mas isolou o romance, alienou-lhe o grande público, tendeu a fazer dele um exercício intelectual para um círculo relativamente restrito de intelectuais.

3 - Quanto a mim, penso que nada alterou a essência do romance. E pretendo, se disso for capaz, seguir a via da boa história, bem contada - isto é: numa linguagem täo simples, täo fluída e täo transparente quanto possível. E permitam-me que afirme uma convicçäo que se fundamenta na minha experiência: a simplicidade é o supremo artifício, no bom sentido do termo. É a coisa mais difícil de atingir na escrita.
4 - Esta digressäo näo foi gratuita, porque se destinou a salientar a grande diferença entre o romance e a ficçäo audiovisual. Essa diferença reside, precisamente, na imaginaçäo do leitor, que é activada pelo contador de histórias.
Eu escrevo um romance, conto uma história. Mas quando o livro chega às mäos dos leitores, a história multiplica-se, tantas vezes quantas as pessoas que lerem o livro. Ninguém verá exactamente o que eu vi, ao escrever a história. Cada leitor irá construindo novas imagens, cada leitor gosta mais de uma personagem ou antipatiza com outra que näo me era necessariamente antipática.
Portanto, o contador de histórias activa a imaginaçäo do leitor e, ao fazê-lo, cria uma cumplicidade, uma intimidade que näo é igualada por nenhuma outra forma de ficçäo.
Isto näo constitui um ataque à ficçäo audiovisual - nem eu poderia, coerentemente, lançar tal ataque, uma vez que eu próprio também escrevo, e com gosto, para televisäo; é, definitivamente, um género diferente, que também gosto de praticar. Mas do que näo me parece haver dúvida é de que a verdadeira intimidade, näo com o público, colectivo, mas com cada indivíduo só pode atingir-se plenamente através da história escrita e lida.

(VI - A seduçäo)
Consideremos agora, mais uma vez, o que faz o contador de histórias ao contar a sua história.
Ele cria um tempo e uma realidade virtuais, e neles envolve o leitor; ele fá-lo sofrer, rir, chorar, transpirar; ele pöe o leitor a sonhar e a imaginar coisas, gente, sentimentos, emoçöes e lugares. Ele faz do leitor um cúmplice.
Para conseguir tudo isto, ele tem de encantar o leitor, tem de o levar a cortar temporariamente com o mundo que o rodeia, a entregar-se à leitura e à história. Enquanto estiver na sua companhia, o leitor näo pode fazer mais nada. Tem de, por algum tempo, abandonar tudo o que näo seja aquele livro.
E o que é isto, o que é tudo isto, se näo um acto de seduçäo?
Se alguma coisa posso dizer da minha escrita é que, com ela, procuro ser um bom contador de histórias e, através dela, seduzir o leitor.

(VII - A mensagem)
1 - Mas, perguntar-se-á: e a mensagem, a famosa mensagem?
Disse-o já: näo me parece que a mensagem, seja ela qual for, constitua um elemento indispensável na narrativa de ficçäo. Para mim, seduzir näo é converter e ainda menos manipular.
Isto näo obsta a que grandes romances contenham grandes mensagens; mas haveria ainda que definir o que é uma mensagem.
Näo iremos tomar esse caminho, que nos levaria para muito longe do tema central desta conversa. Limito-me, portanto, a dizer quais os limites que fixei a mim próprio.
2 - Sem dúvida, alguns dos meus livros contêm elementos que, se se quiser, podem ser classificados  como mensagens. É difícil que esses elementos näo existam, porque em cada livro que se escreve terá de haver algo - muito - de quem o escreve.
Por exemplo, já me foi dito que o meu segundo romance, "O Homem Sem Nome", contém vários níveis de leitura e que pelo menos um desses níveis está carregado de mensagens. O meu romance mais recente, "Os Comedores de Pérolas", contém igualmente dois níveis de leitura e aquele que se situa além da intriga quase-policial é, passe o termo, um "nível de mensagem".

3 - Mas, em qualquer caso, näo se trata de verdadeiras mensagens e sim de sugestöes e sobretudo desafios ao pensamento do leitor. Näo säo verdades a que eu quero converter o leitor. Säo ideias sugeridas, para que os leitores, se quiserem (e a isso näo säo obrigados), pensem; e pensando, se quiserem (a isso também näo são obrigados), tirem conclusöes para si próprios. Ou melhor ainda, sigam o curso dessas ideias; ou melhor ainda, encontrem novos cursos para essas ideias.
4 - Mas, se näo quiserem fazer nada disso; se muito simplesmente pegarem nos meus livros e se envolverem neles, e tiverem prazer em lê-los, e andarem ao lado das personagens, e viverem com elas - isso, para mim, será muito mais do que suficiente para que eu me sinta realizado como contador de histórias.

(VIII - A ficçäo histórica)
1 - Porque a minha vinda a Barcelona se deve à publicaçäo do meu primeiro livro em Espanha, e porque esse livro é o meu primeiro romance, "A Voz dos Deuses" ("Viriato", na ediçäo espanhola), ou seja, um romance histórico, talvez interesse falar um pouco sobre o assunto, tanto mais que o romance histórico, ou de fundo histórico, é um género que me agrada muito; aliás, depois de "A Voz dos Deuses", que tenta narrar a vida de Viriato, publiquei um outro: o meu terceiro romance, "O Trono do Altíssimo", trata essencialmente da heresia priscilianista.
2 - Quando decidi correr a aventura de escrever e publicar "Viriato", "A Voz dos Deuses", eu nem tinha sequer, propriamente, a ideia definida de iniciar carreira como escritor. Essa era uma aspiraçäo que datava dos meus oito anos de idade, mas já tinha desistido dela.
Nessa época - isto é, há nove anos -, o que eu pretendia, ou melhor: o que me apetecia era tentar evocar um passado que faz parte da herança portuguesa, do legado português, ao qual temos direito e que devia entrar no nosso imaginário, mas que é praticamente desconhecido entre nós, talvez porque näo é exclusivamente português, temos de o partilhar com a Espanha.
É certo que Viriato é conhecido, entrou, digamos, no folclore nacional. Mas o folclore histórico português  fez dele um simples pastor entrincheirado na Serra da Estrela (onde quase certamente nunca esteve) e ocasionalmente aquartelado em Viseu (numa fortificaçäo que nem sequer é lusitana, e sim romana). Näo foi essa imagem que eu encontrei na pesquisa que fiz; e a surpresa que senti, ao encontrar uma outra imagem, foi um incentivo suplementar para escrever o livro.
Da mesma forma, a surpresa que senti ao verificar que a cidade de Braga, tradicionalmente o grande centro católico de Portugal, a grande rival eclesiástica de Santiago de Compostela e mesmo de Toledo, essa cidade de Braga tinha sido, no século IV, uma das praças fortes de uma heresia, o priscilianismo, e chegou mesmo a ter um bispo priscilianista, essa surpresa foi o grande incentivo para escrever "O Trono do Altíssimo".

3 -  Em ambos os casos, apeteceu-me, simplesmente, evocar um passado que está demasiado esquecido na memória portuguesa; um passado que está para além do "tempo dos mouros", que é, ainda hoje, o grande limite na nossa memória colectiva.
Hoje, penso que a ficção histórica pode, se se quiser, ser um pouco mais.

João Aguiar

"Espaço/Tempo" - Caneta tinta da china sobre papel cavalinho

segunda-feira, 18 de julho de 2011

REVIVER


A VISÃO PORTUGUESA DE VIRIATO 
A visão portuguesa de Viriato é o tema que deverei desenvolver, ainda que brevemente. Julgo que essa visão estará, essencialmente, contida nas diversas intervenções dos participantes vindos do meu país. Elas contemplam, em primeiro lugar, o domínio da História e da Arqueologia, em que até as especulações partem de factos comprovados ou prováveis; são as contribuições do Prof. Dr. Armando Coelho da Silva e do Dr. Augusto Ferreira do Amaral. O primeiro é, entre outras coisas, uma das maiores autoridades em Portugal sobre a cultura castreja e a romanização do Noroeste Peninsular; o tema que proporá para debate será o próprio nome de Viriato, que tem sido objecto de várias hipóteses explicativas. Quanto ao Dr. Ferreira do Amaral, que tem realizado investigações históricas do maior interesse e do maior rigor, falará sobre o nome de Astolpas, o sogro de Viriato, no âmbito de uma intervenção em que abordará a origem dos Lusitanos e dos povos mais antigos que viveram em Portugal.
Por outro lado, o papel de Viriato no universo dos mitos portugueses será abordado por António de Macedo, professor, realizador cinematográfico e escritor com uma vasta obra publicada. Quanto ao tratamento deste herói lusitano na literatura — e não apenas na literatura portuguesa — caberá ao prof. Dr. José Barbosa Machado, que, de resto, explorou já o tema na dissertação que apresentou para o seu mestrado em Educação.
A vertente dramática será a matéria do escritor e editor João Osório de Castro. E, finalmente, teremos aquilo a que chamarei a visão tradicional, quer nas suas ligações com várias localidades portuguesas, nomeadamente Cabanas de Viriato — questão que será explorada por Francisco António Pessoa, presidente da Assembleia Municipal de Carregal do Sal — quer num âmbito mais geral, o de um Viriato nascido na Serra da Estrela, pastor montanhês, símbolo da luta pela liberdade; dele nos falará o dr. Sérgio Franclim, professor de Língua Portuguesa e escritor.
Feita esta breve apresentação, penso que deverei limitar o meu contributo a dar-vos uma perspectiva global da ideia que, em Portugal, temos de Viriato, de modo a mostrar-vos, digamos, o pano de fundo que servirá de cenário à participação portuguesa neste curso.
Antes de mais, devo esclarecer que, hoje em dia, a figura de Viriato não se encontra em primeiro plano; é um herói, mas não é uma vedeta. Mesmo porque — está morto.
Contudo, na posição relativamente obscura que ocupa, Viriato conserva força e prestígio. Mais, até, do que eu julgava quando escrevi o meu primeiro romance, em que tentei narrar o que poderá (talvez) ter sido a sua vida e a sua acção como chefe militar e político. Sem cair na tentação da falsa modéstia, direi que a aceitação que esse livro obteve em Portugal se deveu mais ao tema do que ao seu eventual mérito literário. Foi o tema que motivou verdadeiramente as repetidas edições, uma adaptação para banda desenhada e uma adaptação teatral, além de ter inspirado um jovem músico português a compor a sua primeira sinfonia. Estou certo de que foi Viriato, e não eu, quem desencadeou todo esse processo criativo.
Isto poder-nos-ia levar a pensar que ele pertence a uma tradição com muito profundas raízes populares, comparável àquela outra que produziu numerosas lendas sobre mouras e mouros. Mas não me parece que seja esse o caso. A figura de Viriato entrou verdadeiramente no imaginário português por via erudita. As referências, não muito numerosas, que lhe são feitas na Idade Média encontram-se em crónicas e, que eu saiba, não há, nessa época, menção a tradições populares, a coisas que o povo diz. E quando, no século XVI, se estrutura verdadeiramente o mito de Viriato como guerreiro pré-português, é ainda por via erudita que esse mito se impõe. António de Macedo e José Barbosa Machado farão, julgo, referências mais pormenorizadas ao assunto, mas julgo poder dizer, para já, que a «visão portuguesa» de Viriato se deve essencialmente aos homens de cultura e, em grande medida, aos poetas.
O curioso é que essa visão permeou de tal modo as camadas populares que se tornou, também, sua pertença e ganhou uma vida própria e um dinamismo próprio, produzindo, então sim, as suas lendas, quase diria a sua gesta.
Assim, hoje, os estudiosos sabem que, em termos de rigor histórico, Viriato é uma figura nebulosa; que será, no mínimo, forçar a História fazer dele um antepassado directo dos Portugueses; que a própria identificação de Portugal com a antiga Lusitânia é historicamente muito aproximativa e pouco correcta; porém, o imaginário popular retém ainda os elementos que no passado lhe foram transmitidos por uma classe culta que fora encontrar nos autores greco-romanos os elementos necessários para construir aquilo que, na época, pareceria uma tese sólida, talvez mesmo irrefutável: a da ligação genealógica directa, a da continuidade entre a Lusitânia e Portugal.
Haveria muito a dizer sobre as motivações profundas dessa ideia, mas falta-nos o tempo. Retenha-se, apenas, que, nesta apropriação dos Lusitanos pelos Portugueses, Viriato devia, inevitavelmente, ocupar uma posição central.
Pois bem: mesmo quando uma tal ideia começou a ser contestada, ainda no século XIX, por historiadores como Alexandre Herculano, ela manteve-se, imperturbada, no imaginário português.
E que ideia, que visão é essa?
Julgo que o grande poeta Fernando Pessoa, já em pleno século XX, definiu, em esboço, o seu enquadramento num poema dedicado a Viriato, que faz parte do livro Mensagem:
«Teu ser é como aquela fria luz
Que precede a madrugada»
A madrugada, entenda-se, o nascimento de Portugal. De certo modo, temos nestes versos — e em todo o poema — delineada a teoria da Lusitânia precursora de Portugal e de Viriato como o herói precursor da criação portuguesa.
Mas Viriato é também o herói libertador, ou, pelo menos, o defensor da liberdade; e está, sem dúvida, ligado à ideia da identidade nacional portuguesa.
Esta é, por assim dizer, a noção generalizada. E, embora eu a tenha classificado de «popular», convirá ter presente que, nas suas linhas gerais, ela foi adoptada como dado adquirido, mesmo ao longo do século XX, por diversos autores, alguns dos quais são nomes importantes das letras portuguesas. Ela não se confinou, portanto, às tradições locais nem ao folclore português — e uso aqui o termo «folclore» no seu sentido exacto, de «conhecimento do povo».
Julgo dever agora, nesta última parte da minha intervenção, reflectir, ainda que brevemente, sobre a visão portuguesa que acabo de expor. Esta visão, a que são hoje alheios os investigadores especializados, contém um aspecto muito curioso: ela como que executa um salto por cima da lógica e da História.
De facto, e como já referi, tal visão liga-nos, pelas nossas origens, aos antigos Lusitanos. Não vou enredar-me em argumentos genéticos ou etnológicos, matérias a que sou estranho; mas direi que, em termos de língua, cultura e civilização, a matéria-prima a partir da qual se formou o povo português foi, afinal, o legado de Roma, acrescido de elementos germânicos, árabes e berberes. Sem dúvida, estão presentes elementos anteriores, ainda visíveis ou discerníveis; sem dúvida, esses elementos fazem parte do nosso legado. Mas a sua importância parece-me secundária ao lado dos contributos que referi em primeiro lugar.
A verdade é que Portugal não nasceu da luta dos Lusitanos contra Roma. Portugal nasceu das Cruzadas do Ocidente, da chamada Reconquista Cristã; e a exploração das origens desse fenómeno leva-nos de regresso ao Império Romano cristianizado, aos reinos suevo e visigodo, à conquista islâmica. Mais uma vez, parece-me que é um acto de acrobacia tomar a figura de Viriato, um homem do século II a. C., como pertencendo à corrente de afirmação nacional portuguesa.
Há, pois, uma estranha acrobacia. No século XI, mais precisamente em 1071, o conde portucalense Nuno Mendes reuniu à sua volta quase todos os barões de Entre-Douro-e-Minho, revoltou-se contra Garcia, rei da Galiza, e foi derrotado e morto. Como se sabe, só no século seguinte Portugal se tornaria independente, mas alguns historiadores — contestados, embora, por outros — consideram este episódio como um primeiro sinal da nacionalidade nascente. Seria natural, em todo o caso, que os Portugueses vissem no conde Nuno Mendes um primeiro herói libertador; no entanto, é-lhes, praticamente, desconhecido.
Em contrapartida, colocam Viriato ao lado dos nossos primeiros reis, de D. Afonso Henriques a D. Dinis; em posição superior, certamente, a D. Afonso II, do qual ninguém fala e cuja acção política foi determinante. Vejo aqui, pois, uma quebra de lógica, sobretudo se tivermos em conta as transformações, os realinhamentos e as fusões culturais e étnicas que ocorreram entre os séculos II antes de Cristo e XII depois de Cristo, altura em que o povo português se constituiu em reino independente.
Mas...
Mas se os mitos, na sua forma mais válida e pura, tendem a ser coerentes, embora não coincidentes, com a História, nem sempre as tradições se conformam com ela. Viriato representa, assim, uma tradição inconformista. Ele e a sua época estão firmemente implantados no nosso imaginário; ele é, para os Portugueses, o guerreiro ancestral e a sua época o tempo mítico dos antepassados longínquos. Tenho de confessar-vos: eu próprio, quando visito, em Portugal, as ruínas de um castro ou de uma citânia, sinto uma emoção que pouco ou nada tem de racional, mas que é forte e profunda.
E a vida, felizmente, não é só feita de razão. 
João Aguiar


Na foto: Chefe do Governo da Extremadura,
Presidente da República Jorge Sampaio e ELE

sábado, 25 de junho de 2011

REVIVER

MACAU - Janeiro de 2005

No Nº200 deste mês, da revista "Volta ao Mundo" é relembrado  o trabalho magnífico sobre Bruxelas,  em Janeiro de 2006


quinta-feira, 23 de junho de 2011

ILUSTRAÇÃO CIENTÍFICA

Ameijoas

Hoje foi um dia de  trabalho e de concentração completo, deixando que o mundo ficasse lá fora. 
Ameijoa Ruditapes decussatus - Pontiado a tinta da china sobre poliester A4

segunda-feira, 20 de junho de 2011

OS QUE O CONHECIAM, DISSERAM... (Lisboa)

João Aguiar, o meu testemunho e memória.

por Jorge Salgueiro a quinta-feira, 3 de Junho de 2010 às 13:01
  


















Conheci João Aguiar a propósito da minha primeira sinfonia inspirada no seu primeiro romance “A Voz dos Deuses”. Estávamos em 1992. A partir de então tornámo-nos amigos, falávamos com frequência e iniciámos uma colaboração artística que durou até hoje.
Quando em 1998 lhe pedi para escrever o poema para a canção final da fábula sinfónica “A Quinta da Amizade”, a sua reacção foi de surpresa pois nunca tinha feito textos para canções. Mas aceitou o desafio e fez o poema da “Canção da Amizade”, um dos trechos mais conhecidos na área do ensino da música às crianças. No ano seguinte escreveu dois poemas para “A Floresta d’Água”.

O João escrevia a ouvir música, a maior parte das vezes ópera. Era um melómano e conhecia os libretos como poucos. Adorava Wagner. Quando me telefonaram do Gabinete Coordenador de Educação Artística da Madeira encomendando uma ópera comemorativa dos 500 anos da Cidade do Funchal, não pude deixar de pensar de imediato no seu nome para escrever o libreto. Escreveu “A Orquídea Branca” um libreto maravilhoso que apaixonou todos aqueles que puderam assistir ao espectáculo.

Em 2009/2010 voltei a trabalhar com o João. Tal como para os poemas, a Foco Musical encomendou ao João o argumento para um bailado. Por telefone ou na sua casa, trabalhámos no argumento para o bailado “A Menina de Pedra”. Talvez tenha sido a sua última obra completa. Foi estreado no dia 10 de Março deste ano mas o João já não pôde assistir.

Fica-me a memória de um Homem nobre, culto, apaixonado pelo trabalho, pela arte e pela História. De trato afável, verdadeiro, um monarca de vanguarda.

Jorge Salgueiro, 3 de Junho de 2010


Vida e obra: 
João Aguiar nasceu em Lisboa em 1943. Após ter frequentado os dois primeiros anos do curso de Filosofia da Universidade Clássica de Lisboa, licenciou-se em jornalismo pela Universidade Livre de Bruxelas e trabalhou nos centros de turismo de Portugal em Bruxelas e Amesterdão. Em 1976 regressou a Lisboa trabalhando na rádio, na imprensa escrita e em televisão. Trabalhou para a RTP (onde tinha iniciado a carreira em 1963) e para diversos diários e semanários como: Diário de Notícias, A Luta, Diário Popular, O País e Sábado. Em 1981, foi nomeado assessor de imprensa do então Ministro da Qualidade de Vida. Colaborou regularmente na revista mensal Superinteressante, sendo membro do seu Conselho Consultivo. João Aguiar faleceu a 3 de Junho de 2010, em Lisboa, vítima de cancro. Iniciou a sua carreira literária com quarenta anos e o seu primeiro romance foi A Voz dos Deuses (1984), um dos livros mais vendidos em Portugal nos últimos anos. Tem escrito, sobretudo, romances históricos. Na sua vasta obra contam-se também vários guiões para programas de televisão, argumentos cinematográficos e colaborações na área da música.

Literatura:
A Voz dos Deuses (1984), O Homem sem Nome (1986), O Trono do Altíssimo (1988), Os Comedores de Pérolas (1992), A Hora do Sertório (1994), A Encomendação das Almas (1995), Navegador Solitário (1996), Inês de Portugal (1997), O Dragão de Fumo (1998), A Catedral Verde (2000), Diálogo das Compensadas (2001), Uma Deusa na Bruma (2003), O Sétimo Herói (2004), O Jardim das Delícias (2005), O Tigre Sentado (2005), Lapedo – Uma Criança no Vale (2006), O Priorado do Cifrão (2008).

Televisão:
A Marquesa de Vila Rica (Guião e diálogos), 1990 RTP;
Os Melhores Anos I e II (Guião e diálogos), 1990 RTP;
Rua Sésamo (Coordenação) RTP;
O Rosto da Europa (Texto, diálogos e co-autoria) 1994 RTP.

Cinema:
Inês de Portugal (Diálogos e co-autoria), 1997.

Colecções infanto-juvenis:
O Bando dos Quatro;
Sebastião e os Mundos Secretos.

Para música de Jorge Salgueiro:
A Quinta da Amizade (poema para canção, 1998);
A Floresta d’Água (2 poemas para canções, 1999);
A Orquídea Branca (libreto para ópera, 2008);
A Menina de Pedra (argumento para bailado, 2010).

ópera ORQUIDEA BRANCA, foto de Helder Santos na noite de estreia no Teatro Baltazar Dias (Funchal) 28/10/2008. João Aguiar ao centro (de gravata).