quarta-feira, 25 de setembro de 2013

PEQUENOS TEXTOS - CONTO


O BECO DA CARPIDEIRA

Macau. Ano da graça do Senhor de 1999

Do que eu sentia saudades era do tempo de Verão, do tempo quente: a roupa empapada de transpiração, colada ao corpo, o ar escaldante como vapor de uma chaleira posta ao lume, o contraste delicioso do outro ar, condicionado, ao entrar num qualquer edifício e depois, à saída, o regresso ao calor, os óculos instantaneamente embaciados e novamente, quase sem transição, o suor a brotar da pele, a espalhar-se pela camisa e pelas calças. A chuva súbita e morna que se mistura com a água libertada pelo corpo. Memórias vagamente nostálgicas e quase sensuais de chuvas passadas, chuvas tropicais, recebidas noutro lugar com o mesmo prazer secreto e morno.

Contudo, em boa verdade, não podia queixar-me do tempo. Era um tempo magnífico de estação seca, um Dezembro luminoso e doce. Que lhe encontrasse uma ténue tristeza escondida nessa luz e no próprio ar, só a mim podia ser atribuída tal responsabilidade e só de mim podia queixar-me. O defeito estava em mim, não no dia nem na cidade.
O defeito estava ainda, talvez, em que nesse dia eu havia percorrido longa e lentamente a cidade, toda a cidade — e uma parte do Território — a pé. Não segundo um itinerário sistemático, antes ao sabor de um capricho inconsciente. E agora a tarde resvalava muito devagar para a noite e um cansaço mortal ganhava-me o corpo enquanto, num vaivém automático e absurdo, passava e voltava a passar diante do beco.
Levei algum tempo a aperceber-me do que fazia. Era um vaguear obsessivo que começara na igreja de São Domingos e se alargara depois em percursos mais ou menos circulares, cada vez mais amplos. Agora fixara-se naquela rua, primeiro num sentido e depois no inverso, mas sempre com uma paragem em frente do beco.
Este não tinha nenhum traço particular. Era um dos muitos que existem na parte velha da cidade, sombrios e desarrumados. Todos esses becos me atraem porque é a cidade velha que me atrai especialmente, mas há outros que me parecem bem mais interessantes — por causa de uma árvore, ou de um revestimento vegetal a cobrir paredes enegrecidas pela humidade, ou de um pequeno altar consagrado a uma qualquer divindade doméstica.
Ali não havia nada disso e no entanto eu não conseguia afastar-me.
Fixei o olhar na placa da toponímia e li:
Beco da Carpideira.
O nome não me era estranho. Distraidamente, coleccionara-o na memória ao lado de outros nomes, a Calçada das Verdades, a Travessa da Guelra, o Pátio do Comprador, a Travessa de Sancho Pança, e até esse dia não fora mais que uma simples peça de colecção e não havia qualquer motivo para que não fosse apenas isso e assim continuasse. Nenhum motivo, a não ser que, desta vez, eu queria entrar.
Também não deveria haver razão especial que me impedisse, excepto que sentia uma relutância tão forte quanto a vontade de o fazer. Relutância, insisto, e não medo. Esta era uma distinção muito nítida. Foi ela que me decidiu, já que não encontrava uma explicação aceitável para o meu comportamento — a não ser a disposição particular com que me levantara nessa manhã.
Portanto, entrei no Beco da Carpideira e dominei o estremecimento que me sacudiu o corpo ao dar o primeiro passo. O Sol desapareceu, ficou na rua que deixara atrás de mim.
Velhas casas, dois contentores de lixo, um gato a deslizar entre dois bancos de madeira abandonados ali. Dois velhos chineses que me olharam com uma indiferença tranquila, um garoto do seus oito anos a fazer trabalhos escolares sentado numa cadeira de metal desconjuntada. E um forte perfume de incenso, que me levou até ao fundo do beco, onde vi a porta, aberta, de uma loja de artigos religiosos budistas.
Lojas dessas encantam-me — não pela qualidade nem pela beleza de cada objecto, regra geral de plástico ou de lata, a mais pura fancaria no mais puro kitsch, mas pelo conjunto, a galeria de divindades, o mistério das inscrições em caracteres chineses, as figuras de papel que servem para queimar nos funerais. Mas nunca entro sem ir acompanhado de alguém que fale cantonense, porque não sei regatear, nem sequer em português.
No entanto, entrei. Pela mesma razão e com as mesmas sensações mescladas que havia experimentado ao penetrar no beco.
Lá dentro vi — quando os meus olhos se habituaram à penumbra — o dono da loja: um chinês de longa barba, muito mais velho do que os que eu vira lá fora.
Um chinês fora de moda.
Digo isto por várias razões: porque aquela barba, muito branca e sedosa, era a mais longa que eu já observara, excepto em filmes (e, ainda assim, filmes americanos com péssimas imitações de personagens chinesas); pela túnica que vestia, que era verde-esmeralda, de seda brilhante, e nem sequer se parecia com as vestes tradicionais; e, talvez mais que tudo, pelo sorriso.
Um sorriso indefinível, ao mesmo tempo cordial, aberto — e enigmático. Triste, também. E ainda, por estranho que seja o paradoxo, reconfortante.
Com este sorriso o homem olhou-me e disse, em voz baixa:
— Não quer comprar nada...
A entoação não era exactamente interrogativa, mas claro que a tomei como tal, pelo que respondi:
— Não sei. Entrei só para ver... — e enquanto dizia isto, resignei-me a comprar, pelo menos, um porta-pivetes de lata, igual a outros que vira em lojas do mesmo género e que sabia serem baratos, mesmo sem regatear. Ele, porém, não me deixou sequer encetar a aquisição.
— O senhor não me compreendeu. Eu disse: «não quer comprar nada». Não era uma pergunta, era uma afirmação. De facto, não quer comprar nada. Não entrou aqui para comprar.
Fitei-o, sem resposta. Então, o homem sorriu novamente.
Eu estava embaraçado, aborrecido e, admito, alarmado. Não que me sentisse ameaçado por um perigo físico, mas havia qualquer coisa estranha no ar. Para sacudir a perturbação, ensaiei uma banalidade muito a propósito:
— Fala muitíssimo bem português, não tem sequer um vestígio de sotaque. Onde aprendeu?
Foi a sua resposta que veio mostrar-me, enfim, como era certo haver qualquer coisa no ar, além do perfume de incenso:
— Mas, meu caro senhor... eu estou a falar-lhe em cantonense.
Abri a boca para dizer «que disparate» e também para rir, porque não entendo uma só palavra de cantonense — nem de mandarim, aliás.
Voltei a fechar a boca sem ter falado e sem vontade de rir. Porque compreendi, de repente, que ele tinha razão. Falava em cantonense; com um pequeno esforço de concentração, eu conseguia, até, ouvir os sons que para mim eram ininteligíveis. Ao mesmo tempo, o seu discurso soava dentro do meu cérebro, em português. Ou talvez, em vez de palavras, fossem imagens que traduziam o que ele me dizia.
Agora, o que quer que estivesse a acontecer era claramente assustador, mas ele não me deu tempo para sentir medo.
— Venha! — disse. — Já estamos atrasados.
Disse-o como se aquilo fosse a coisa mais natural, como se houvéssemos combinado aquele encontro. Afastou um cortinado que tapava a parede do fundo e fez-me um sinal para que o seguisse.
A escada, estreita e com degraus incómodos, de tão altos, parecia descer até ao centro do planeta. É um exagero, evidentemente, porém foi esse o meu pensamento. Descemos sem parar durante uns bons dois minutos, alumiados somente por poucas velas esparsas, fixas em pequenas reentrâncias da parede. Em baixo havia uma porta, que o meu guia abriu — e logo o perfume de incenso se tornou mais forte.
Antes de entrar, o chinês virou-se para mim:
— Não pense que a sua presença aqui é uma coisa vulgar...
— Seria a última coisa que eu pensaria — ripostei. — Não sei sequer o que estou aqui a fazer nem que lugar é este.
Ele encolheu os ombros, como se isso não tivesse importância. Transpôs a porta. Fui-lhe no encalço e encontrei-me numa sala que devia ser grande mas cujas dimensões não podia calcular. As velas, às centenas, não chegavam para rasgar a penumbra. A princípio, julguei que não havia mais ninguém, porque as pessoas se confundiam com as imagens — o Buda sentado na posição do lótus, Kun Iam, a deusa da misericórdia, A-Mah, a concubina celeste, protectora dos pescadores, Hông-kòng Sân, o protector dos patos, Na Cha, o pequenino deus traquinas. E também, surpreendentemente, Nossa Senhora, Santo António, São João e São Francisco Xavier.
Diante de cada imagem ardiam velas e pivetes de incenso, diante de cada imagem oravam pessoas que, afinal, não se mantinham completamente imóveis, pois algumas faziam a tripla vénia tradicional — tanto perante as divindades budistas como diante dos santos cristãos.
A voz do meu guia e anfitrião soou muito perto de mim:
— Infelizmente, há poucos portugueses, além do senhor. Quase todos aqueles que podiam estar aqui já partiram. E a sua presença é um caso excepcional, meu caro amigo. Só se deve a um facto que talvez seja obra de puro acaso: durante o dia de hoje, o senhor visitou Nossa Senhora na igreja de São Domingos, A-Mah no templo da Barra, a capela de São Francisco Xavier em Coloane e foi ainda ao Kun Iam Tong. Tinha algum propósito ou andava a fazer turismo?
Respondi-lhe, num resmungo, que já visitara Macau várias vezes e já fizera todo o turismo que havia para fazer.
— Foi o que eu pensei — replicou o velho — e aí tem a razão por que está aqui, apesar de nunca ter vivido nesta terra. Agora venha: a hora chegou.
— Que hora?
Ele envolveu-me num olhar longo e triste.
— A hora da transferência. A verdadeira, não aquela que preparam lá em cima, à superfície.
Pela segunda vez, não tive palavras com que dar uma resposta — o que, em mim, é raro.
— Venha! — insistiu ele.
Conduziu-me até ao centro da sala. Surpreendentemente, os outros não pareceram dar pela sua presença, continuaram a orar e a acender molhos de pivetes de incenso e a curvar-se perante as imagens.
O velho abriu os braços. Eu esperava ouvir uma longa invocação e assistir a um complicado ritual, mas enganei-me. O que ouvi da sua boca foi isto:

Nós somos aqueles que se deram a esta terra. Que nunca a roubaram nem a violentaram.
Que não deram o seu corpo ao jogo nem a sua alma ao lucro.
Que deixaram em paz a árvore das patacas sem a regar de mentiras e embustes e traições.
Nós somos o calor, o perfume e o coração da terra.
Somos Macau e Ou-Mun.
Nós somos o fumo do incenso e o cantar das aves. O tufão e a brisa. A chuva e o Sol.
Somos isso e nada mais.

Calou-se. O eco da sua voz flutuou por instantes, em torno das cabeças dos santos e das divindades, e depois extinguiu-se.
Mal ele se extinguiu, toda a sala ressoou, tremeu ao som cavo de um gong. E eu ressoei e tremi com a sala, ao mesmo tempo que as imagens, todas as imagens se fendiam de alto a baixo num estertor de ruídos secos e mortais.
Entontecido, atordoado, olhei em volta e vi-me só.
Ah, sim, os devotos ainda lá estavam, porém tinham substituído as imagens quebradas: haviam-se transformado em estátuas de terracota, como os soldados que guardam desde há séculos o túmulo de um imperador chinês. Em minha frente, o velho da túnica, o que me trouxera, mantinha-se imóvel, de braços abertos. Fui vê-lo de perto. Os traços do seu rosto de terracota conservavam o mesmo sorriso reconfortante e triste.
Só, terrivelmente só, subi a escada interminável.
Interminável é o termo exacto: não cheguei a atingir o topo. Encontrei-me de repente à entrada do Beco da Carpideira, envolvido pelo ar morno da tarde e pela luz dourada do crepúsculo.
Cinco minutos depois, no Largo do Senado, ao cumprimentar um amigo com quem me cruzei, ainda tremia. Ele percebeu e perguntou-me:
— Não te sentes bem?
— Um toque de gripe — respondi.

João Aguiar

sábado, 24 de agosto de 2013

PEQUENOS TEXTOS


O ITINERÁRIO DO SORRISO
 
Depois de tudo o que se tem dito e escrito sobre Os Lusíadas, cabe perguntar humildemente: restará alguma coisa para dizer ou escrever?
A resposta a esta pergunta será, evidentemente — Sim.
Não há aqui quebra de humildade. O mérito da resposta pertence bem mais a Camões do que a nós, que o estudamos. Penso que esta é, aliás, uma das características mais notáveis do poema, a par da sua incomparável beleza formal: conter uma riqueza e uma densidade tais que após quatro séculos de leitura ainda nos é possível explorar esse universo

encantado de palavras, imagens, ideias, ritmos — e quase diria também cores, odores e sons — e, ao explorá-lo, encontrar nele novas aventuras, novas terras, novos rios. Ainda que outros por lá hajam passado e deixado o seu padrão e desenhado cartas de marear. Porque é-nos sempre possível implantar novos padrões e traçar novas cartas, segundo a nossa maneira de ver e de «respirar» Os Lusíadas.
A carta de navegação que aqui proponho não é mais do que um esboço e, seria escusado dizê-lo, não relata um verdadeiro descobrimento, pois muitos outros hão-de ter seguido o mesmo itinerário, porém não me recordo de o ver exposto de forma sistematizada e nítida. Ainda que tal sistematização exista, não é certamente das mais conhecidas.
Uma coisa posso garantir: não encontrei este itinerário nos bancos da escola, quando me ministraram Os Lusíadas como se de um remédio amargo e particularmente indigesto se tratasse, uma leitura atravancada com a divisão de orações e os complicados nomes das figuras de linguagem - zeugmas, anástrofes, apóstrofes, hipérboles, sinédoques, prosopopeias... enfim, o bastante para levar qualquer adolescente a erguer à sua volta as barreiras defensivas da rejeição: Camões nunca mais, não gosto e não quero.
Pela parte que me toca, após haver completado o antigo liceu, precisei de sete anos para reencontrar Os Lusíadas e para me reencontrar, finalmente seduzido, em Os Lusíadas.
A abordagem que pretendo esboçar não teria esse inconveniente. Ela teria, estou certo, efeitos bem diferentes, pois ofereceria uma iniciação mais fácil, mais segura e capaz de criar entre os jovens iniciados e o poema um laço duradouro, porque afectivo.
É a abordagem pelo humor (que, espero torná-lo claro, depressa se transforma em abordagem pelo amor).
Chamo-lhe «itinerário do sorriso». Porque o humor, na sua forma mais inteligente e nobre — aquela que, justamente, encontramos em Os Lusíadas —, não tem de fazer rir a bandeiras despregadas. Essa é a função da farsa, igualmente nobre, porém diferente. O humor é sobretudo sorriso, alusão velada, insinuação.
Uma primeira observação: em Os Lusíadas, poema épico, o humor encontra-se, não poucas vezes, associado ao erotismo, mais do que ao heroísmo. O que, aliás, é compreensível, dado a sua natureza ser de certo modo idêntica à natureza do erotismo: se o humor tem pouco a ver não só com a farsa mas também com o riso desbragado e truculento, o erotismo, ao contrário do que parece julgar uma brutal concepção contemporânea, pouco ou nada tem a ver com pornografia. O humor sorri apenas; e o erotismo apenas sugere. Deixa entender mais do que afirma, entreabre portas sem as escancarar.
E, para o caso que nos interessa, ele é um poderoso atractivo suplementar que o Itinerário do Sorriso oferece como iniciação destinada à juventude. Não cabem aqui, penso eu, escrúpulos moralistas, pois a juventude, nos nossos dias, é bombardeada desde a mais tenra e inocente idade não apenas com mensagens eróticas mas até com outras que transportam a mais clara pornografia. Nas circunstâncias actuais, o humor erótico de Camões será, sem a menor dúvida, uma saudável sublimação e mesmo uma pedagogia.
Consideremos, antes de mais, esta célebre passagem (Canto II, 36):

Os crespos fios de ouro se esparziam
Pelo colo, que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava e não se via
Célebre, referi acima. Pelo menos, na memória juvenil de toda uma época. Duvido que entre os estudantes da minha geração — e das seguintes — houvesse um só que desconhecesse estes versos, a cena em que Vénus vai suplicar a Júpiter, rei dos deuses, protecção para a armada de Vasco da Gama. E no entanto, esse trecho nunca era lido nas aulas, nem sobre ele se praticava a divisão de orações.
É certo que não se encontra aqui uma alusão propriamente humorística, porém o exemplo serve para mostrar como é possível, começando pela «leitura acanalhada» que, fatalmente, será a primeira que os adolescentes de hoje — tal como os de ontem — hão-de fazer, passar a outras leituras. Porque a irresistível beleza dos versos não deixará de, com a ajuda inteligente do professor, exercer a sua magia.
Quanto ao humor, ele está bem presente nesta mesma cena protagonizada por Vénus e Júpiter:

C'um delgado cendal as partes cobre
De quem vergonha é natural reparo,
Porém nem tudo cobre nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, para que o desejo acenda e dobre,
Lhe põe diante aquele objecto raro.
(Canto II, 37)

Há certas divergências quanto ao significado da expressão «roxos lírios», de que o véu de Vénus é pouco avaro. Porém, seja ele a pele avermelhada das partes pudendas, como pensa Afrânio Peixoto, seja antes o roxo das pontas dos seios, este jogo do «nem tudo cobre nem descobre» apela, inegavelmente, ao sorriso.
E o sorriso regressa mais adiante, quando Júpiter, comovido mas sobretudo seduzido, consola a deusa do amor:

As lágrimas lhe alimpa, e acendido
Na face a beija, e abraça o colo puro;
De modo que dali, se só se achara,
Outro novo Cupido se gerara.
(Canto II, 42)

Depois, no Canto VI, quando Neptuno convoca as divindades marinhas, eis como surge retratada a sua belíssima esposa:

Vestida ua camisa preciosa
Trazia, de delgada beatilha,
Que o corpo cristalino deixa ver-se,
Que tanto bem não é para esconder-se.
(Canto VI, 21)

Também será difícil não sorrir na cena em que Vasco da Gama, ao entrar no palácio do Samorim, admira as esculturas do portal e nelas vê
Mui grande multidão da assíria gente,
Sujeita a feminino senhorio
Dua tão bela como incontinente;
Ali tem, junto ao lado nunca frio,
Esculpido o feroz ginete ardente
Com quem teria o filho competência.
Amor nefando, bruta incontinência!
(Canto VII, 53)

Esta passagem merece uma atenção especial. Primeiro porque o professor que a quisesse descodificar e analisar em plena aula poderia fornecer aos seus alunos alguns dados históricos e lendários que em tempos fizeram parte da nossa cultura geral e cujo regresso ao conhecimento dos jovens portugueses seria talvez uma interessante contribuição para a riqueza do seu espírito, mesmo que não conste dos programas oficiais do ensino. O professor explicaria, pois, que a «bela incontinente» é a tão cantada Semiramis, rainha da Assíria, a quem é atribuída a construção dos célebres jardins suspensos de Babilónia (aqui entraria uma pequena divagação sobre Assírios, Caldeus, a Mesopotâmia em geral...) e cuja luxúria era tão intensa e aberrante que teria mantido relações íntimas com o próprio filho — e com um cavalo, o tal «feroz ginete ardente» que Camões ali coloca junto ao lado «nunca frio» da rainha. Também não faria mal acrescentar que Semiramis inspirou pelo menos duas óperas, uma de Rossini e outra de Marcos Portugal, compositor que no seu tempo foi famoso em toda a Europa (e que nós hoje relegamos para a apagada e vil tristeza do esquecimento).
Em segundo lugar, porque nesta mesma passagem se descobre a vontade clara, consciente e deliberada do poeta: ele quer o sorriso do leitor, nesta cena. Para isso introduz nela uma descrição que não tem justificação aparente, seja histórica, dramática, narrativa ou outra. A justificação está, precisamente, em fazer-nos sorrir com a evocação de Semiramis e do seu lado nunca frio e do seu amante equino.
Finalmente, no episódio erótico por excelência, o da Ilha dos Amores, vamos encontrar a tripulação da armada explorando os bosques à procura de caça e avistando, em vez de animais, as ninfas e deusas que Vénus ali reuniu para deleite dos navegantes...

Dá Veloso, espantado, um grande grito:
— «Senhores, caça estranha — disse — é esta!
(Canto IX, 69)

E logo a seguir, entusiasmado:
Sigamos estas deusas e vejamos
Se fantásticas são, se verdadeiras!»
Isto dito, velozes como gamos,
Se lançam a correr pelas ribeiras...
(Canto IX, 70)

O que depois se passa é conhecido e não faz parte do objecto desta simples exposição. Mas como não encontrar aqui, novamente, um sorriso feito de malícia e de alegria?
Permita-se-me agora uma curta divagação para prestar homenagem, também ela sorridente, a... um censor do Santo Ofício, imagine-se. Mais concretamente, a Frei Bartolomeu Ferreira, o autor do parecer que tornou possível a publicação de Os Lusíadas. Pelos seus olhos inteligentes ou demasiado distraídos — possibilidade esta que não me parece crível — passaram todos estes versos, todas estas imagens, os roxos lírios de Vénus, o quase incontido desejo sexual de Júpiter, o corpo magnífico de Tétis, Semiramis e o seu ginete, os gracejos de Veloso. E depois de ter lido tudo isto, o que ele escreveu sobre o poema foi: Vi por mandado da santa & geral inquisição estes dez Cantos dos Lusiadas de Luis de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizerão em Asia & Europa, e não achey nelles cousa algua escandalosa nem contrária â fe & bõs custumes...
Excelente Frei Bartolomeu. Limitou-se depois a advertir o leitor a propósito da constante intervenção dos deuses pagãos, mas logo explicou que isto he Poesia & fingimento (...) e por isso me pareceo o liuro de se imprimir.
A censura do Estado Novo não seria talvez tão tolerante para com um novo Camões — e não o seria, de certeza, se ele em vez de escrever um poema houvesse realizado um filme.
Todavia, não é só no seu componente erótico que o poema segue o itinerário do sorriso.

Vereis o Mar Roxo, tão famoso,
Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado,

Declara Júpiter a Vénus no Canto II (49). E depois, no Canto V (35), encontramos a cena em que todos certamente pensam quando se fala de humor em Os Lusíadas. Ela faz parte do célebre episódio do marinheiro Fernão Veloso — justamente aquele que, mais tarde, bradará: «caça estranha é esta!».
O meu propósito não é narrar o episódio, sobejamente conhecido. Recorde-se apenas que quando a armada do Gama se encontra na baía de Santa Helena, os navegadores portugueses entram em contacto com os indígenas; e que Veloso, espírito aventureiro e não pouco gabarola, acaba por pedir autorização para os acompanhar: ir com eles ver a povoação que tinham, pera trazer algua mais notícia da terra do que eles davam, como conta João de Barros na primeira Década da Ásia. Acaba por regressar a correr, perseguido pelos naturais, e tem de ser recolhido à pressa pelo batel enquanto se trava uma refrega em que o próprio Vasco da Gama é ferido. Já ao largo,

Disse então a Veloso um companheiro
(Começando-se todos a sorrir):
— «Olá, Veloso amigo, aquele outeiro
É melhor de decer que de subir...»
— «Sim, é, — responde o ousado aventureiro —
Mas, quando eu para cá vi tantos vir
Daqueles cães, depressa um pouco vim,
Por me lembrar que estáveis cá sem mim.»

Eis, numa penada, todo o quotidiano da vida de bordo, os gracejos, a camaradagem alegre — e, novamente, o sorriso...
No canto seguinte, é Baco o alvo de Camões, que o descreve a penetrar nos domínios de Neptuno para incitar este contra os Portugueses. O deus do mar, avisado

Da vinda sua, o estava já aguardando.
Às portas o recebe, acompanhado
Das Ninfas, que se estão maravilhando
De ver que, cometendo tal caminho,
Entre no Reino da água o rei do vinho.
(Canto VI, 14)

E atente-se, no decurso deste mesmo episódio, à forma como Camões descreve Tritão:

Os cabelos da barba e os que decem
Da cabeça nos ombros, todos eram
Uns limos prenhes de água, e bem parecem
Que nunca brando pente conheceram;
Nas pontas pendurados não falecem
Os negros mexilhões, que ali se geram.
Na cabeça, por gorra, tinha posta
Ua mui grande casca de lagosta.
(Canto VI, 17)

Finalmente, gostaria de referir uma outra passagem do Canto VI (65), integrada no Episódio dos Doze de Inglaterra:

Algum dali tomou perpétuo sono,
E fez da vida ao fim breve intervalo;
Correndo algum cavalo vai sem dono
E noutra parte o dono sem cavalo.

Uma vez referenciadas todas estas estações do nosso itinerário, que mais resta para dizer?
Apenas importa, julgo, salientar a forma como o sorriso que ele propõe nos aproxima de Os Lusíadas e do seu autor.
Pelo seu estro épico, pela característica ímpar de ser o grande poema nacional — e de o ser com qualidade literária também ímpar —, a obra, como é evidente, está-nos indissoluvelmente ligada, a nós, Portugueses, pelo menos enquanto quisermos ser um povo, uma nação e um país. Porém essa ligação é, digamos, colectiva e portanto impessoal. É uma ligação profunda e importante, mas não podemos, enquanto indivíduos, transportá-la permanentemente na nossa consciência, porque ninguém consegue viver — e ainda bem — em permanente estado de exaltação heróica, seja ela nacional (isto é, patriótica) ou internacionalista. Esse era o sonho, aliás não-inocente, dos regimes totalitários, de direita e de esquerda, que assolaram o nosso século XX.
Contudo, enquanto indivíduos, um outro laço pode ligar-nos a Camões e a Os Lusíadas de uma forma permanente, como sentimento afectivo pessoal, vivo e actuante em cada um de nós. Direi mesmo que esse laço revelar-se-á natural, quase inevitável, desde que estejamos dispostos a seguir o Itinerário que proponho. Porque então, Camões, que nos é distante pelo génio, há-de revelar-se-nos tão próximo como um irmão, pelo espírito, a vivacidade, o humor portugueses.
Não há sequer moralismo na sua ironia, não se trata de aplicar a máxima castigat ridendo mores. É antes malícia alegre e pura, daquela que ainda hoje, em termos apenas diferentes mas ainda coincidentes, encontramos em nós mesmos, no dia a dia.
Quando Tétis aparece vestida com uma camisa de delgada beatilha, ele acrescenta: Que o corpo cristalino deixa ver-se, / Que tanto bem não é para esconder-se. O que corresponde, evidentemente à moderna chalaça: «O que é bom é p'ra se ver».
O grito de Veloso, Senhores, caça estranha é esta! podia, com palavras menos elegantes mas não muito diversas, ser repetido por um qualquer galã de praia moderno ao deparar com um grupo de raparigas tomando banho de sol numa duna.
O Mar Vermelho que fica amarelo, de enfiado ao ver as vitórias portuguesas, eis uma imagem que nos parece muito próxima da que hoje seria usada.
Passarei sem me deter no episódio em que Fernão Veloso foge a bom fugir dos Africanos na baía de Santa Helena, pois a cena — sobretudo a resposta que ele dá aos companheiros — encontra tão claro eco em várias anedotas contemporâneas que me parece inútil dizer mais do que já disse. E o mesmo é válido para a descida de Baco aos fundos marinhos, esse momento em que as Ninfas se espantam que entre no Reino da água o rei do vinho.
Mas atente-se na forma como é descrito Tritão: Os cabelos da barba e os que decem / Da cabeça nos ombros, todos eram / Uns limos prenhes de água, e bem parecem / Que nunca brando pente conheceram; / Nas pontas pendurados não falecem / Os negros mexilhões, que ali se geram. / Na cabeça, por gorra, tinha posta / Ua mui grande casca de lagosta...
Este Tritão desmazelado e feio, que nunca se penteia e que se passeia pelos mares com uma casca de lagosta na cabeça: não corresponderá ele ao que poderia gerar a imaginação jocosa de um adolescente (ou não poderá ser ele também o auto-retrato humorístico do próprio adolescente?)
É neste contexto, neste ambiente familiar em que há calor humano e alegria, que podemos encontrar, como sugeri, uma nova aproximação a Os Lusíadas. E se acaso, seguindo este itinerário, os estudantes de hoje saírem da escola apaixonados pelo poema, transportando-o na memória e no coração, ter-se-á dado um grande passo na educação da juventude.
 
                                             João Aguiar

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

VIAGENS NA HISTÓRIA - 25


A OCULTAÇÃO

Desta vez, a viagem na História — ou melhor: as viagens, pois que são várias, reduzem-se a simples e breves menções que servirão somente para ilustrar um tema. E aqui estão elas:
Reinado de D. Afonso II (1211 – 1223): o rei — que convoca as primeiras cortes de que há notícia no país — inicia uma política de centralização inspirada no direito romano: tudo e todos (incluindo o próprio soberano) devem estar subordinados à lei e à coroa, ou seja, ao Estado. É uma ideia singularmente moderna e praticamente desconhecida na Europa feudal. Reinado de D. Dinis (1279 – 1325): ao contrário do que sucede em boa parte da Europa continental, os cavaleiros templários, perseguidos pelo Papa e pelo rei de França, são protegidos pelo rei de Portugal, que para eles cria a Ordem de Cristo. 1383 – 1385: eclosão e triunfo em Portugal que uma revolução que coloca o país na vanguarda da evolução política e social europeia.
Podia continuar com estas «viagens», mas não será preciso. Importa, agora, verificar que todos os factos apontados, por significativos e importantes que sejam, e são, mantém-se larguissimamente ignorados dos europeus em geral e até mesmo os portugueses não os conhecem bem — bastará dizer que hão-de conhecer muito melhor o número de calos nos pés de Cristiano Ronaldo.
Chegados aqui, vamos considerar brevemente um texto de Gilbert Durand, um conhecido e respeitado autor francês, filósofo, antropólogo, estudioso do imaginário e da mitologia. Num texto apresentado em 1987, num colóquio em Nova Deli, Durand referia a «estranha ocultação» da importante presença em Portugal das teorias do famoso abade calabrês Joaquim de Flora (1132 – 1202) — que, apesar de terem sido condenadas pela Igreja, tiveram entre nós grande aceitação, pois que delas se originou o culto popular do Espírito Santo, que ainda hoje tem manifestações em Tomar, Sintra e Açores. Gilbert Durand espanta-se porque nenhum dos grandes especialistas europeus sobre o assunto, de René Guénon ao padre Henri de Lubac, mostram conhecer o «caso português».
Ora bem: essa lacuna não me espanta, a mim, que já conheço as que atrás referi e muitas outras ainda. De certo modo, os países pequenos sofrem essa desatenção: para a maior parte  das pessoas, César Franck, André Cluytens e Johnny Hallyday (!) são franceses, quando, na realidade, são belgas, pelo menos de origem.

Nave central do Mosteiro de Alcobaça
A França, note-se, também nacionalizou unilateralmente Vieira da Silva. E a verdade é que, com Portugal, a amnésia ou a ignorância do mundo são piores; porque o que conta no mundo é o poderio económico e/ou militar e assim só as grandes potências têm estrelas no seu firmamento.
Todavia, eu pergunto-me: serão hoje estas duas razões, pequenez de território e fraqueza económico-militar, as únicas, para nós? Quer-me parecer que não. A verdade é que estamos em período de autonegação e de masoquismo endémico; para além da selecção nacional de futebol, nada nos entusiasma e a nossa afirmação como povo e país parece-nos coisa ridícula ou, pior, fascista.
Claro, se assim fosse, toda a Espanha seria
fascista e o mesmo, ou mais, seria verdade para os Estados Unidos.
Mas o mais grave de tudo, julgo eu, é que os méritos que apontei e que o mundo ignora sobranceiro — também nós os ignoramos. Não que sejamos sobranceiros: apenas ignorantes.

João Aguiar

Charola do Convento de Cristo - TOMAR


quarta-feira, 26 de junho de 2013

VIAGENS NA HISTÓRIA - 24

CIDADES SOBREPOSTAS

É uma verdade que, de tão evidente, acaba por ficar oculta, porque ninguém pensa nela: a vida de uma cidade não é apenas aquilo que nós vemos, as casas, as pessoas, os carros a passarem, aqui e agora; é também o que nela aconteceu no passado — sobretudo, em certos lugares especiais, que por esses acontecimentos ficaram ligados à sua história. Uma cidade é, no fundo, a sobreposição de várias cidades.
O que vos proponho é um breve passeio por Lisboa, parando em certos lugares que ficaram marcados por sucessos históricos — embora, hoje, pouco reste dessas marcas.
Evitemos os sítios óbvios, como o Terreiro do Paço (início da Restauração de 1640, aclamação de D. João IV, etc.) e o castelo de S. Jorge, que, esse, é toda uma enciclopédia. Mas, não longe do castelo, fica o Limoeiro, onde hoje funciona o Centro de Estudos Judiciários e onde, durante longos anos, funcionou o mais conhecido estabelecimento prisional de Lisboa. Aí se encontram ainda os vestígios de um paço real e era nele que se encontravam D. Leonor Teles e o conde Andeiro quando, a 6 de Dezembro de 1383, o Mestre de Avis lá entrou para matar o favorito da rainha regente. Foi, pois, nesse lugar que se juntou depois o povo de Lisboa, levantado por Álvaro Pais, para aclamar o Mestre e insultar a rainha — ou seja, foi nesse lugar que se deu o primeiro episódio decisivo da revolução que colocou no poder uma nova dinastia.
Mas, descendo um pouco, chega-se à Sé; e, nesse mesmo dia 6 de Dezembro, pouco após a morte do Andeiro, aí se juntou também a multidão enraivecida, porque o bispo de Lisboa, D. Martinho, não mandara repicar os sinos, como exigiam os populares, que forçaram as portas. O bispo, que, azar o seu, era castelhano, refugiou-se numa das torres e de lá o atiraram para a rua, com grande soma de gritos e de insultos — os insultos ainda hoje se podem ouvir, mas trocam-se entre automobilistas.
Vamos agora às proximidades do mosteiro dos Jerónimos, que, esse, é um dos tais lugares óbvios, de modo que, de momento, não entremos; em vez disso, vamos aos pastéis de Belém. Ora, a casa mais conhecida que os vende está construída em terreno maldito — ou, pelo menos, era isso o que o marquês de Pombal havia decidido. Mesmo ao lado da pastelaria, encontra-se o Beco do Chão Salgado; entrando nele, depara-se com um marco de pedra no qual está escrita a maldição pombalina. Isto porque em todo aquele terreno, hoje coberto de construções — com excepção do beco — se erguia, no século XVIII, o palácio dos duques de Aveiro. Ora, como se sabe, o duque de Aveiro, D. José de Mascarenhas, foi considerado culpado no caso do atentado contra D. José I e executado publicamente em Belém. O seu palácio foi arrasado e o chão coberto de sal — daí o nome do beco — e colocou-se ali o tal marco, anunciando que naquele terreno jamais se poderia construir. O que não se cumpriu, como pode ver quem lá vá; porém, o marco e o beco ainda evocam a tragédia.
Enfim, o último lugar cuja visita hoje proponho é a zona do Arco do Cego ou, mais precisamente, as proximidades do antigo liceu (hoje escola) D. Filipa de Lencastre. Aí havia uma lápida, que mais recentemente foi deslocada — sem cerimónia — para o pequeno jardim que fica junto do gigantesco edifício da Caixa Geral de Depósitos.
Essa lápida comemora a intervenção da rainha Santa Isabel, quando as tropas do rei D. Dinis e as do seu herdeiro, o futuro Afonso IV, se defrontavam no início de uma batalha de Alvalade que não chegou a realizar-se, porque a rainha, que fora avisada, veio de Odivelas, onde se encontrava, e meteu-se, sozinha, entre os dois exércitos, forçando-os a baixar as armas.
Termino assim esta peregrinação por outros tempos da cidade de Lisboa, porque é bonito rematar com um acto de paz.

João Aguiar

"Este Padrão, que é Património do Estado, recorda a acção pacificadora da Raínha Santa Isabel, na primavera de 1323, quando duas facções de portugueses iniciavam um combate fratricida, ela acorreu ao lugar de Alvalade e, caminhando entre as fileiras inimigas foi onde el rei estava, e donde el rei estava tornou ao infante, e por vezes, vindo de uma parte para outra tratou entre eles por tal maneira que o infante fosse beijar as mãos de seu pai, e el-rei benzesse seu filho, e partiram dali amigos."