terça-feira, 31 de janeiro de 2012

PEQUENOS TEXTOS


Primeiro Romance / Primeira Sinfonia
Sinto dificuldade em acreditar que se tenham passado 14 anos desde que recebi, por intermédio da minha editora, uma carta escrita por um jovem compositor chamado Jorge Salgueiro que me dizia ter acabado a sua primeira sinfonia e que esta lhe fora inspirada pelo meu primeiro romance, A Voz dos Deuses.
Se bem me lembro, além de me informar, ele perguntava-me se eu me opunha a que o título do meu livro fosse também dado à sua obra. Tal pergunta era, em termos práticos, inútil porque, juridicamente, não podia haver qualquer objecção da minha parte; Salgueiro «só» levantou a questão por escrúpulo e por delicadeza de sentimentos — e escrevi «só» entre aspas porque o escrúpulo e a delicadeza de sentimentos ganham, a meu ver, um muito especial sentido neste mundo-cão em que hoje vivemos, o mundo do cada-um-por-si-e-ninguém-por-todos. Como é fácil de calcular, eu, além de não ter a mínima objecção, senti-me, mais do que lisonjeado, comovido. Nessa altura, o meu livro levava já oito anos de publicação e era-me muito grato saber que, num tempo de coisas rapidamente descartáveis como é o nosso, A Voz dos Deuses tinha ainda força para levar um jovem a compor uma sinfonia. Não é dizer pouco.
Recentemente, Jorge Salgueiro enviou-me uma cópia da partitura e um CD com a maqueta musical desta sua obra. Voltamos à questão dos sentimentos: em termos práticos, ele sabe que eu sou, musicalmente falando, um leigo incapaz de ler a partitura. Era «só» (mais uma vez, entre aspas) um gesto de amizade e delicadeza, ao qual se aplica inteiramente o que atrás escrevi a propósito da sua carta de 1992.
Foi como leigo que escutei a maqueta da sinfonia. Mas, afinal, a música é essencialmente composta para os leigos, que formam a grande maioria do público. Além disso, a par da minha qualidade de leigo, tenho — perdoe-se-me o convencimento — tenho alguma capacidade de imaginação. Certamente que, em relação à partitura, baralhei dentro da minha cabeça cordas com metais; mas, seja como for, ao escutar a maqueta, vesti-a com a roupagem da orquestra sinfónica. E achei que o resultado era algo de magnífico, de empolgante: deixei-me arrastar pela música, o que só me acontece quando gosto muito de uma peça. Que mais posso dizer, eu que de música nada sei e somente sou capaz de sentir?
Sim, ainda posso, e devo, dizer uma coisa: que para mim é muito urgente ouvir esta sinfonia executada por uma orquestra. E é igualmente urgente ver (e ter!) a gravação em disco. Virá com um atraso de 14 anos, mas, quando vier, nada se terá perdido.

Oeiras, 29 de Janeiro de 2006
João Aguiar

Jorge Salgueiro - compositor

domingo, 29 de janeiro de 2012

PEQUENOS TEXTOS

João Aguiar por J. Sousa - Acrílicos obre tela- 2008

“OFICINA DE POESIA”

    Escrever poesia é um impulso que  quase todos nós sentimos nalgum momento da vida. Enchemos folhas e folhas de versos, lamentos, angústias, declarações de amor, gritos de infelicidade e solidão.
    Essa escrita ajuda-nos a arrumar galopes e vendavais que nos vão no peito. Ajuda-nos  a conviver com sentimentos desavindos. Ajuda-nos a crescer. Muitas vezes a vida de todos os dias acaba por abafar esse impulso  e a poesia deixa-se secar e fica por aí.
  Algumas pessoas continuam. Persistem. E embrenham-se no ofício das palavras. Digo ofício porque sempre acreditei que a poesia, a grande poesia,  não é fruto da inspiração de um momento mas de um trabalho persistente de pesquisa ao nível da rima, do ritmo, do sentido, da expressão, da metáfora, desse baile  maravilhoso que é o da música das palavras.
João Aguiar

sábado, 28 de janeiro de 2012

PEQUENOS TEXTOS



UM MISTÉRIO IGNORADO…
       A quem se rir de mim por causa deste título, dizendo: «Se é mistério, claro que ninguém o conhece», respondo desde já: é verdade, mas perante um mistério importa, antes de mais, saber que ele existe. O que, cuido eu, não se passa com este de que vos quero falar.
Gil Vicente: não é tema novo nestas crónicas, já há tempos lhe prestei sentida homenagem. Hoje, porém, pretendo abordar esta figura histórica na perspectiva das ideias que transparecem nos seus autos. Porque, tendo em conta a época em que viveu (ou a imagem que temos dessa época), essas ideias são perturbadoras, sobretudo no domínio da… «filosofia religiosa», chamemos-lhe assim.
No «Auto da Barca do Inferno», a alma do Fidalgo argumenta o seu direito a embarcar para o Paraíso: «… Que deixo na outra vida / quem reze sempre por mi». E o Diabo responde-lhe: «Quem reze sempre por ti? / Hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi!». Depois, é o Sapateiro que se espanta por ir parar ao Inferno «confessado e comungado». E também a Alcoviteira, «a que criava as meninas / para os cónegos da Sé».
No «Auto da Feira», um anjo enviado por Deus proclama: «à feira, à feira, igrejas, mosteiros, / pastores das almas, Papas adormidos! / Comprai aqui panos, mudai os vestidos»… e continua explicando à comunidade eclesiástica que é preciso voltar à simplicidade e à pobreza dos primeiros tempos.
Não sobra espaço para muitos mais exemplos; bastará referir que eles são abundantes. O ideal religioso de Gil Vicente é o de uma Igreja simples e despojada, sem hierarquias complicadas, uma religião de amor e de virtude, ligada à Natureza, como se lê no belíssimo vilancete que Abel canta no «Auto da Feira»: «Adorai, montanhas, / o Deus das alturas, / também as verduras»… ao mesmo tempo, e com inatacável lógica, Mestre Gil critica — com a ironia corrosiva que lhe é conhecida — a venda de indulgências, questão que era então muito discutida; e, de um modo geral, mostra-se extremamente severo para com a Roma pontifical.
Em suma: Gil Vicente, bom católico, bebeu na fonte franciscana e, sobretudo, naquilo que essa fonte tivera de subversivo: afastamento em relação à hierarquia, elogio da pobreza, recusa das devoções puramente formais. Por isso não valem ao Fidalgo as orações pela sua alma nem ao Sapateiro o ter-se confessado e comungado antes de morrer, pois passara a vida a enganar o próximo. Atenção a este último ponto: negar o valor absoluto, «per se», da confissão e da comunhão ainda era subversivo, pelo menos, no século passado.
Além da influência franciscana, nota-se nele uma clara influência de Erasmo, cuja ortodoxia católica era algo duvidosa.
E agora, perguntar-se-á: onde reside, afinal, o mistério?
O mistério, a que podemos ou não colocar aspas, reside no facto de Gil Vicente, como sabemos, ter sido um escritor da corte, honrado e protegido por D. Manuel I e por D. João III. O que, atrevo-me a pensar, deverá levar-nos a reconsiderar as ideias feitas acerca destes dois reis, ainda que eu não veja a forma de engolir a entrada da Inquisição em Portugal.
Mesmo com este gigantesco senão, deveríamos tentar olhar melhor aquela época. Julgo que, pelo menos, se alteraria um pouco a opinião vagamente desagradável que conservamos de D. Manuel I.
Enfim, como diz o povo: isto é só a gente a falar.
João Aguiar

Catedral estilo gótico de Cantão - China