terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O RIO DAS PÉROLAS IV


O princípio da compaixão
Foi há cinco anos que isto aconteceu, num cenário que me é, ainda hoje, muito querido. Havia no ar um perfume complexo, feito de jasmim, incenso e óleo de sésamo.
Por instantes, deixei de ouvir o que o padre Januário dizia para tentar descobrir a origem desses odores.

Não foi difícil. Para lá do muro alto, alguém que estava a cozinhar lançara sobre um wok aquecido algumas gotas de óleo com sésamo. O incenso vinha certamente do templo de Kun Iam, que, embora invisível, nos ficava muito próximo — não o grande templo, o Kun Iam Tong, mas o outro, o pequeno Kun Iam Miu. Quanto às flores de jasmim, estavam ali mesmo, à nossa beira, no jardim do padre Januário, um pequeno recinto que verdejava e resplandecia, ignorado, metido no meio de velhas casas. Numa dessas casas vivia o padre; o seu acesso, que era também o do jardim, fazia-se por uma azinhaga retorcida, apertada entre prédios decadentes e muros arruinados. Não darei mais pormenores: aquele minúsculo espaço, oculto num bairro antigo da antiga Macau, é uma relíquia que não desejo ver profanada.
O padre Januário continuava a falar e mencionava agora o nome de Teilhard de Chardin. Virei-me para ele, contemplei a sua esguia figura de asceta, realçada por uma barba ainda negra, esguia também ela, que, não sei porquê, sempre o associava no meu espírito a um sage (sim, a palavra existe em Português) confucionista. E, em resposta às suas últimas palavras, comentei num resmungo:
— Há-de perdoar-me, mas o Teilhard de Chardin não é para aqui chamado, a questão é muito mais simples. E não são precisas tantas subtilezas jesuíticas.
Ele não se formalizou. Replicou-me com risonha tranquilidade:
— É natural, eu sou jesuíta.
Pata na poça, rosnei-me mentalmente. O que eu queria dizer, apressei--me então a explicar, era que a minha perturbação não tinha causas teológicas e sim psicológicas. Bem sei, bem sei, concordou o padre, a minha digressão pelos lados do velho Teilhard foi um desvio, desculpe, não sei como fiz isto. O seu problema, admito, é bem mais terreno e nada tem de teológico: muito prosaicamente, você não consegue habituar-se à ideia de que vai deixar Macau em breve.
— Em breve e para sempre — sublinhei. O seu sorriso abriu-se: — Dizer «para sempre» é uma ousadia um pouco estouvada, não acha? Se cada um de nós soubesse, sequer, o que vai acontecer no próximo minuto... mas desculpe, estou a divagar outra vez. Agora, devo confessar-lhe que sinto algo mais em si do que tristeza ou saudade antecipada e é esse algo mais que me preocupa: você está irritado e ressentido, também. Não quer explicar-me com quem e porquê?
Detive-me a reflectir. Uma boa pergunta, sem dúvida, mas a resposta não era fácil. Deixei escorregar meio minuto, que o padre Januário aceitou em silêncio, e então disse-lhe:
— Não tenho as ideias muito claras a esse respeito. Estou ressentido com o rumo que a minha vida tomou, que me obriga a voltar para a Europa. Estou irritado comigo mesmo, por não ter sido capaz de alterar esse rumo. E estou irritado e ressentido com outras pessoas e outras situações. No entanto, tudo tem a mesma origem, porque foram essas outras pessoas que geraram essas outras situações, que por sua vez me colocaram na circunstância profissional de ter de partir para a Europa. Confesso-lhe que neste momento sinto-me muito pouco amigo do género humano e que ando com uma certa vontade de morder o meu próximo.
Ao fundo do jardim havia um pequeno oratório de pedra com uma imagem de Nossa Senhora das Dores. Foi na sua direcção que ele se encaminhou e eu segui-o. Ao chegar junto da imagem, o padre encarou-me.
— Suponho que não adiantaria recomendar-lhe a oração como alívio.
Tem razão, retorqui-lhe, não adiantaria porque eu já não sei rezar. Não é que me tenha esquecido das fórmulas, aliás isso não teria importância, sei muito bem que poderia improvisar. O que sucede é que já não sou capaz de conseguir o estado de espírito que transforma uma simples reza numa oração.
Ele acenou lentamente com a cabeça. — Muito bem dito. É triste, mas está bem dito... — e depois, num tom de voz diferente:
— Ouça. Eu trouxe-o até aqui porque esta imagem da Virgem é para mim uma fonte constante de inspiração. O que ela me recorda, neste momento, é que sempre associamos (e bem, a meu ver) Nossa Senhora à compaixão e à misericórdia. Os dois termos não serão rigorosamente equivalentes, mas são, pelo menos em grande parte, coincidentes.
Como ele se calou, eu, que não estava decididamente virado para altas conversas e queria apenas — e, ainda assim, em sentido figurado – um ombro sobre o qual chorar, murmurei que também não entendia o nexo entre o meu estado de alma, a compaixão em geral e a Virgem Maria em particular. O padre sorriu novamente.
— Espere, deixe-me continuar. Ao conduzi-lo ao âmbito mais largo desta noção, ia falar-lhe do princípio (quase diria: o arquétipo) da compaixão. O sentimento, a dor que se experimenta perante o sofrimento alheio. E, também, à atitude que daí decorre, a da tolerância e benevolência perante os actos alheios: ou seja, o princípio da misericórdia. Se reflectir, por pouco que seja, nestes dois princípios que se interpenetram, a compaixão e a misericórdia, concluirá, como eu o fiz, que quem os observe tão plenamente quanto possível não deixará de ver alterada a sua atitude perante o mundo e a vida. Aceitará melhor os outros, mas aceitar-se-á melhor a si mesmo, também; e, ainda, aceitará, se não com resignação ao menos com serenidade, as alterações na sua vida que lhe contrariam a vontade. Não direi que eliminará o seu sofrimento, mas poderá superá-lo.
Se o senhor o diz, repliquei, sentindo-me cada vez menos compassivo e misericordioso e cada vez mais irritado com as circunstâncias. Depois, atentei melhor na imagem da Virgem. Então, para mudar o rumo da conversa mas também por curiosidade, observei:
— Senhor padre Januário, esta Nossa Senhora das Dores parece-se estranhamente com a deusa Kun Iam.
O padre assentiu sossegadamente. – Para si, isso não devia ser uma surpresa, você conhece Macau. Quanto a esta imagem, é uma estátua muito antiga. Pelo que sei, veio de uma capela que havia em Pequim, no século XVII. O escultor era com certeza um chinês cristão. E é quase certo que também ele associou, no seu espírito, Nossa Senhora a Kun Iam, a deusa da misericórdia. É até possível que não distinguisse muito bem entre as duas.
Acredito, respondi-lhe. E, para o espicaçar, acrescentei: os missionários da sua ordem, senhor padre, fomentaram docemente essa confusão. Esperava que ele me contradissesse, ao menos por uma questão de princípio, porém desconcertou-me com uma tranquila anuência:
— É verdade. Eu podia, claro, apresentar-lhe uma explicação lógica e aceitável, mas não vale a pena, porque você conhece-a, eu sei que estudou a guerra dos ritos. Em vez disso, chamo a sua atenção para outra coisa...
Neste momento interrompeu-se para tirar do bolso um cachimbo já cheio, que acendeu sem pressas.
— A confusão entre Nossa Senhora e Kun Iam – prosseguiu então – não é canónica, admito, no entanto é particularmente justificável e faz--nos pensar. Porque o princípio da compaixão, longe de ser, digamos, uma inovação cristã (o cristianismo trouxe várias inovações, sem dúvida, mas não essa), está incrustado no homem. Encontramo-lo não só noutras religiões e filosofias como também nos comportamentos espontâneos, aqueles que não são ditados por doutrinas ou ideais. O princípio da compaixão faz parte da natureza humana. E ouça: em grande medida, os sarilhos monumentais que os homens têm arranjado ao longo dos tempos devem-se essencialmente a não reconhecerem este elemento essencial da sua natureza, a não se conformarem com ele.
Pois será, repliquei. Tendemos a desenvolver outros aspectos mais fortes da nossa natureza: a avidez, a inveja, os maus fígados. Esse tal princípio da compaixão, senhor padre, é uma luzinha desmaiada diante do grande sol da nossa sacanice.
Mas, nesse dia, o padre Januário dava sinais de uma inusitada mansidão. Eu mal reconhecia o meu velho compincha de tantas discussões furiosas, em que ele – sobretudo após o quarto cálice de bagaceira velha – me ameaçava com a excomunhão irremissível, «ainda que o Papa me peça que eu desista» (não que a bagaceira o levasse a tal estado de confusão; era apenas uma forma de descarregar o excesso de animosidade).
E agora, o padre Januário, irreconhecível, respondia aos meus deliberados desmandos com uma doçura de anho pascal. O princípio da compaixão, disse, é uma luzinha desmaiada enquanto esquecemos ou contrariamos a nossa verdadeira natureza; uma vez que a aceitemos, os papéis invertem-se e passa ele a ter a força luminosa do sol... para usar a sua imagem, tirando-lhe a sacanice...
— Enfim! – acrescentou – Aonde eu quero chegar com tudo isto é ao seguinte: você, neste caso, não precisa de rezar a Nossa Senhora, nem sequer a Kun Iam. Basta que se abra a si próprio. E verá, garanto-lhe, verá a sua vida, o mundo e o seu próximo numa paisagem muito menos sombria.
— Pelos olhos da compaixão! – rosnei.
— Exactamente. Não lhe custa nada experimentar. Às vezes, nem é preciso esforço, essa natureza impõe-se-nos, quase diria que nos persegue.
Ficámos ambos calados durante um momento, diante do sorriso misterioso e magoado de Nossa Senhora das Dores (e de Kun Iam?). Então, o padre Januário quebrou o silêncio:
— Bom. Há mais alguma coisa a perturbá-lo?
Há, respondi-lhe. Há que, nestes últimos dias, tenho estado a ser seguido e isso é muito desagradável.
Uma vez mais, o padre surpreendeu-me, porque esperava vê-lo franzir o sobrolho e ele ficou impassível.
— Que curioso. Por quem?
Um indiano, expliquei. Ou, pelo menos, um tipo que tinha todo o aspecto de ser indiano. Eu não o havia encarado de frente, mas parecia--me ser ainda muito novo. Não me seguia ostensivamente, mas aonde quer que eu fosse, ele aí estava, sem tentar esconder-se.
O padre Januário encolheu os ombros. Pode ser impressão sua, observou, com um sorriso que achei irritante. Ou pode ser uma visitação, acrescentou, sem reagir ao meu alçar de sobrancelhas interrogativo. Depois, atentando melhor na expressão que fiz (e que, julgo, era altamente crítica), perguntou:
— Você sente que a presença dele é ameaçadora? Incomodativa? Importuna?
Abri os braços em protesto. – Claro que sim. Ou melhor: não é ameaçadora e não posso dizer que me sinto verdadeiramente incomodado. No entanto, é uma presença importuna, como a de uma mosca que anda a esvoaçar à nossa volta e não chega a pousar-nos no corpo mas nós estamos sempre à espera de que o faça.
Ao ouvir isto, o padre Januário riu-se – riu-se para dentro, não sei se me entendem. E logo a seguir mudou completamente de atitude:
— Bem, eu não percebo nada de moscas nem de visitações de moscas. E tenho mais que fazer do que aturá-lo. Ponha-se a milhas, na paz do Senhor e com a minha bênção.
Acompanhou-me enquanto eu entrava em sua casa, atravessava a sala minúscula e chegava à porta que dava para a rua, que ele abriu.
Encontrei-me na viela estreita e retorcida. Percorri-a devagar, remoendo aquele encontro tão estranho e tão pouco satisfatório, até desembocar na rua que fervilhava de gente, carros, barulho, como se tivesse, em poucos metros, viajado de um planeta para outro.
E a primeira pessoa em que atentei foi o indiano, como sempre silencioso, tranquilo, mas bem visível. Ainda pensei em abordá-lo, perguntar-lhe que raio de ideia ou de intenção era a sua. Acontece, porém, que tenho um sagrado horror ao escândalo, portanto desisti, segui caminho.
Como já referi, o pequeno templo de Kun Iam fica muito próximo do retiro do padre Januário: este encontra-se encafuado no meio de um quarteirão e aquele tem porta aberta sobre a rua. Por isso, bastaram-me vinte passos, ou pouco mais, para chegar ao Kun Iam Miu. Entrei, não com a ideia de fazer devoções à deusa, antes para ver o que fazia o meu perseguidor. E, como eu aliás já esperava, daí a dois minutos um vulto humano vestido de branco entrou no recinto. O indiano.
Olhei em volta: o templo, excepcionalmente, estava vazio. Sem dúvida haveria um bonzo, algures, porém não ali. Então, pensei: é agora que vamos esclarecer tudo, meu rapaz.
Caminhei, decidido e deliberado, na sua direcção. Quando me aproximei dele, tive uma pequena surpresa: não era um rapaz. A aparência de juventude mantinha-se, mas somente como aparência. Era uma daquelas pessoas que, pelo seu aspecto, tanto podem ter vinte anos como trinta, ou quarenta, ou cinquenta. No seu caso, lembro-me, pensei: entre os trinta e os noventa. O que, evidentemente, era absurdo.
Isto não me deteve, claro. Olhei-o com cara de poucos amigos e disparei, em português:
— Quem é você? Por que é que anda a seguir-me, já há dias?
O homem não se perturbou. Respondeu-me em forma de pergunta, com uma tranquilidade semelhante à do padre Januário:
— O que o leva a pensar que ando a segui-lo?
Isso tem uma certa graça, retorqui. Há cinco dias que o encontro em todos os lugares aonde vou. E com certeza não está aqui, sendo indiano, para queimar pivetes diante da deusa Kun Iam. Aconselho-o a responder--me, para resolvermos já o assunto.
Duvido, disse ele, que um português se encontre aqui para rezar a Kun Iam. O senhor é uma visita e eu estou em minha casa. Mas tem razão, é melhor resolvermos já o assunto, como diz. Eu não tenho andado a segui--lo, se o senhor me encontra a cada passo é porque me chama constantemente. É possível que não o faça em plena consciência, mas isso não impede que me chame. E eu vou aonde me chamam.
O meu primeiro impulso foi agredi-lo. Mereço alguma compreensão: eu não andava bem disposto e saíra da casa do padre Januário um pouco farto de charadas e dissertações sobre o princípio da compaixão. Aquela troca de palavras exasperara-me por completo. Por isso, levantei a mão.
Não terminei o gesto porque, no último segundo, reparei numa coisa que me deixou paralisado.
O rosto que eu ia esbofetear não era sólido... não totalmente sólido, pelo menos: havia nele um certo grau de transparência e sobrepunha-se ao da imagem de Kun Iam, que estava atrás dele, de modo que os traços dos dois coincidiam.
Deixei tombar o braço. Num sopro, perguntei:
— Quem é você?
O meu nome, respondeu, presta-se a várias interpretações. Enfim, para que não me acuse de fugir à questão, digo-lhe que o nome por que sou chamado é Avalokiteçvara. Isto significa alguma coisa para si?
A questão é que significava. Dei dois passos para trás, depois fugi do templo.
Só parei em casa. A minha casa, já desmantelada, em preparativos de partida. Foi-me preciso desfazer uma das malas que aguardavam o embarque marítimo em contentor. Era bem no fundo, sabia-o, que se encontrava o livro que eu procurava.
Avalokiteçvara: o Compassivo. O bodisatva mais venerado do Mahayana. Considera-se que encarnou em Çakyamuni. Quando o budismo se implantou na China, Avalokiteçvara, que representa essencialmente o princípio da misericórdia, da compaixão, passou a ser representado sob forma feminina, com o nome de Kwan-yin, ou Kun Iam...
O livro escorregou-me das mãos. Enchi os pulmões e libertei o ar com um grito que trouxe os vizinhos até à minha porta, a saber o que se passava.
João Aguiar
António Andrade
The principle of compassion
This happened five years ago in a setting that is, even today, very dearto me. 
There was an intricate aroma of jasmine, incense and sesameoil in the air. 
For a few moments I stopped listening to what Father Januário was saying and tried to think where these smells could be coming from.
It wasn’t difficult. Someone who was cooking on the other side of the high wall had tossed some sesame oil into a hot wok. The incense was bound to come from the Kun Iam temple, which though not visible from here was very close to us – not the big temple, Kun Iam Tong, but the other one, the little Kun Iam Miu. As for the jasmine flowers, they were right beside us in Father Januario’s garden, a small yard that thrived, green and resplendent and inconspicuous, in the midst of old houses. The priest lived in one of those houses; his entrance door gave onto the garden and could be reached through a winding lane wedged tightly between buildings whose walls were decaying or ruined. I won’t go into more detail because that tiny space, hidden away in an old neighbourhood in the old Macau is a relic which I don’t wish to see profaned.
Father Januário kept on talking and now he mentioned the name Teilhard de Chardin. I turned towards him and looked at his slim ascetic face, made even more striking by his still black, long and thin beard. I don’t know why, but in my mind I always associated the beard with that of a Confucian sage (yes, that word exists both in Portuguese and English). And, in response to his last few words, I muttered:
— I’m sorry but there’s no call for Teilhard de Chardin here, the question is much simpler. And there’s no need for so many Jesuit subtleties.
He didn’t take offence. He replied with smiling composure:
— That’s only natural. I am a Jesuit.
Now you’ve put your foot in it, I grumbled to myself. What I wanted to say, I hurried on to explain, was that my confusion arose not from any theological causes but rather from psychological ones. I know, I know, the priest agreed, I was digressing when I spoke of Teilhard, it was a deviation, I’m sorry, I don’t know how it happened. Your problem is, I admit, very much more down to earth and is in no way theological: very simply, you just can’t get used to the idea that you are going to leave Macau soon.
— Soon and forever – I emphasised. His smile broadened: – To say “forever” is a bit reckless and daring, don’t you think? If each one of us even knew what was to happen the next minute ... but I’m sorry, I’m straying from the matter again. Now, I must confess that I feel there’s something more than just sadness or anticipated homesickness involved and it’s that something that worries me: you are annoyed and resentful too. Don’t you want to explain with whom and why?
I stopped to think. A good question, without any doubt, but the answer wasn’t so simple. I let half a minute go by, which Father Januário accepted in silence, and then I told him:
— I’m not very clear about that. I’m resentful about the direction my life has taken which makes me have to return to Europe. I’m annoyed with myself for not being able to change that direction. And I’m annoyed with and resentful about other people and other situations. However, it all comes down to the same thing because it was these other people that created these other situations which in turn put me in the situation in which I have to leave for Europe for professional reasons. I admit that at this moment I feel very unfriendly towards the human race and have an urge to bite my fellow man.
At the end of the garden there was a small stone oratory with a statue of Our Lady of Sorrow. He walked towards it and I followed him. As we drew near the statue, the priest faced me. 
— I suppose there’s no point in my suggesting a prayer to ease your suffering.
You’re right, I replied, there’s no point because I no longer know how to pray. It’s not that I have forgotten the formula, which was of no importance in any case as I knew very well that I might improvise a prayer. It happens that I just can’t find the spiritual grace that turns a simple prayer into an act of devotion.
He slowly nodded his head. – Said very well. It’s sad, but it’s well said ... – and then in a different tone of voice:
— Listen. I’ve brought you here because this statue of the Virgin Mary is a constant source of inspiration for me. She reminds me at this moment that we always connect (and very well too, in my view) Our Lady to compassion and mercy. These two terms don’t mean exactly the same thing, but they are, for the most part, coincidental.
He stopped talking and I, not being at all in the mood for elevated conversations and only wanted – and then only in a figurative sense – a shoulder to cry on, murmured that I too didn’t understand the link between my state of soul, compassion in general and the Virgin Mary in particular. The priest smiled again.
— Wait, let me continue. I was drawing you towards a wider understanding of this idea in order to speak to you about the principle (I’d almost say: the archetype) of compassion. The feeling, the pain that one feels when we see someone else’s suffering. And also the attitude that comes from it, that of tolerance and benevolence towards other people’s actions: in other words, the principle of mercy. If you just thought, even for a moment, about these two interconnected principles, compassion and mercy, you would conclude, as I did, that someone who looks on them as fully as possible cannot but alter their attitude to the world and life. They will accept others better, but they will accept their own selves better too; and they will also accept, if not in a resigned manner at least with serenity, the changes in life that go against their will. I’m not saying it will eliminate suffering, but it might overcome it. 
If you say so, I replied feeling less and less compassionate and merciful and more and more annoyed with the turn of events. Then I took a better look at the Statue of the Virgin, and in order to change the conversation but also out of curiosity, I observed:
— Father Januário, Our Lady of Sorrow here looks strangely like the goddess Kun Iam.
He gently nodded his head. – That shouldn’t come as a surprise for you, you know Macau. This statue is very old. As far as I know, it came from a chapel there once was in Beijing in the 17th century. The sculptor must have been a Chinese Christian. And he too must also have connected, in his mind, Our Lady with Kun Iam, the goddess of mercy. It’s even quite possible that he couldn’t tell the difference between them very well.
I believe you, I replied. And then just to goad him on, I added: the missionaries belonging to your order, Father, quietly encouraged that confusion. I expected him to contradict me, at least on principle, but he took me back when he quietly agreed:
— That’s true. I could, of course, give you a logical and acceptable explanation, but it isn’t worth it, because you know it. I know you’ve studied the war of rites. So, instead of that, I’d like you to draw your attention to something else ...
He paused and took a pipe out of his pocket: it was already filled and he slowly lit it.
— The confusion that arises between Our Lady and Kun Iam – he went on – isn’t canonical, I agree, though it is particularly justifiable and makes us think. This is because the principle of compassion – far from being, say, a Christian innovation (Christianity has undoubtedly introduced a number of innovations, but not this one) - is ingrained in man. We find it not only in other religions and philosophies but it also springs spontaneously in actions that are not dictated by doctrine or ideas. The principle of compassion is part of human nature. And listen: to a great extent, the monumental mess that men have got themselves into throughout the ages is basically because they will not recognise that essential characteristic in their nature, they will not accept it.
That could well be so, I replied. We tend to develop the other, stronger sides to our nature: greed, envy, bad-temper. This principle of compassion, Father, is a tiny light that fades in the vast sun of our wickedness.
But that day, Father Januário showed signs of unusual serenity. I hardly recognised my old friend of so many heated arguments in which he - especially after his fourth brandy - would threaten to excommunicate me forever, «even if the Pope himself should ask me not to» (not that the brandy got him into such a state; it was just his way of releasing his anger)
And now, Father Januário was unrecognisable and replied to my deliberate impudence with the meekness of a sacrificial lamb. The principle of compassion, you say, is a tiny light that pales when we forget or go against our true nature; but the roles change once we have accepted it and so it is this light that has the radiant power of the sun ... to borrow your image, and withdrawing the wickedness from it ...
— Well! – he went on – What I mean to say with all this is the following: you don’t have to pray to our Lady, nor even to Kun Iam. You just have to open yourself up to yourself. And you’ll see, I assure you of that, you’ll see your life, your world and your fellow-man in a far less gloomy light.
— Through the eyes of compassion! – I grumbled.
— Exactly. It won’t hurt you to try. Sometimes it’s even effortless, that force of nature overwhelms us, I’d even say it pursues us.
We were both silent for a moment in front of the mysterious and anguished face of Our Lady of Sorrow (and Kun Iam?). Father Januário then broke the silence:
— Well. Is anything else worrying you?
Yes, I replied. These last few days I have been followed and it’s very unpleasant. 
Once again, he surprised me because I thought he was going to frown and instead his expression remained impassive.
— How strange. Who by?
An Indian, I replied. Or at least, someone who looked very much like an Indian. I hadn’t seen him face to face, but he seemed very young. He wasn’t following me in a very obvious manner, but wherever I went, there he was without trying to disguise it.
Father Januário shrugged his shoulders. It could be just your imagination, he remarked, with a smile I found annoying. Or it could be a visitation, he added, and didn’t react when I raised my eyebrows questioningly. Then, when he’d had a better look at my expression (which was, I think, extremely critical), he asked:
— Do you feel his presence to be threatening? Upsetting? Awkward?
I flung out my arms in protest. – Of course I do. Or rather, not threatening and I can’t really say that I feel all that upset by it. However, it is awkward, like a fly buzzing about us and never actually lands on us but we keep expecting it will.
Father Januário laughed when he heard this – he laughed to himself, I don’t know if you understand what I mean. And then his attitude changed quickly.
— Well, I don’t know anything about flies or visitations from flies. And I’ve got better things to do than put up with this nonsense. Now, get off with you and may the peace of our Lord go with you and my blessing.
He came with me while I went into his house, crossed the tiny room to get to the door to the street and he opened it.
I found myself in the narrow winding alley. I walked down slowly, pondering about that strange and not very satisfactory encounter, until I reached the street that was bustling with people, cars, noise, as if I had, in the space of a few metres, travelled from one planet to another.
And the first person I saw was the Indian, as always silent and still but very visible. I thought for a moment of going up to him and asking him what the hell he was doing. However, I happen to just hate a scandal, so I didn’t bother and went my way.
As I’ve already said, the small Kun Iam Temple is very close to Father Januário’s retreat and is tucked away in the middle of a block of houses with an open door onto the street. So I only had to take about twenty steps or so to reach Kun Iam Miu. I went in, not that I had any intention of praying to the goddess but rather to see what the person following me would do. And just as I had expected, two minutes later a figure in white came in. The Indian.
I looked around: the temple was, for once, empty. There had to be a priest somewhere about but not there though. So I thought: now we’ll sort this out, my boy.
I walked up towards him in a decided manner. As I got close to him, I had a bit of a surprise: it wasn’t a boy. Still youthful-looking, but only in appearance. He was one of those people who can look twenty or thirty, or forty, or fifty. In this case, I remember thinking: between thirty and ninety. This was obviously absurd.
This didn’t stop me, of course. I looked at him in a very unfriendly way and spat out in Portuguese:
— Who are you? Why have you been following me?
The man remained serene. He replied in the form of a question in the same tranquil manner as Father Januário:
— What makes you think I’ve been following you?
— That’s sort of funny, I said. For five days now I’ve seen you everywhere I’ve been. And you, as an Indian, can’t be here to burn a few incense sticks to the goddess Kun Iam. You’d better give me an answer so that we can sort this matter out.
I doubt, he said, that a Portuguese comes here to pray to Kun Iam. You are a visitor here and I am in my home. But you’re right, we’d better sort the matter out, as you say. I haven’t been following you and if you see me wherever you go it’s because you keep calling me. You may not be fully aware of it, but you are calling me. And I go where I’m called.
I first felt like hitting him. I need some comprehension, though: I wasn’t in a good mood and had left Father Januario’s house rather tired of charades and dissertations on the principle of compassion. That conversation had completely exasperated me. So I raised my hand.
I didn’t actually hit him because in a second I noticed something that froze me.
The face I was about to punch wasn’t solid ... not completely solid, at least: it was somewhat transparent and the image of Kun Iam behind him was discernible in such a manner that they seemed to have the same traits.
I let my arm fall. I asked him in one breath:
— Who are you?
My name, he replied, can be said in several ways. But just so that you don’t accuse me of avoiding your question, I’ll tell you that the name I am called is Avalokitesvara. Does that mean anything to you?
The problem was it did. I took two steps back and ran out of the temple.
I only stopped once I got home. My home where everything was packed and ready to go. I had to unpack one of the cases that was waiting to go on board ship in a container. It was right at the bottom, I knew where the book I was looking for was.
Avalokitesvara: the Compassionate. The most beloved bodhisattva in the Mahayana. He is believed to have become incarnate in Sakyamuni. When Buddhism was introduced into China, Avalokitesvara, who represented mercy and compassion, began to be shown in feminine form and called Kuan-yin, or Kun Iam ...
The book slipped out of my hands. I filled my lungs and then let the air go in a shout that brought the neighbours knocking at the door to see what had happened.
I didn’t care. I felt at peace after releasing all that pent-up air.
João Aguiar

Os contos que integram esta edição foram originariamente publicados, durante o ano 2000, nas edições portuguesa e inglesa da III Série da revista MacaU, propriedade do Gabinete de Comunicação Social, 
produzida por Livros do Oriente
These selected short stories were originally published in the Portuguese and English editions of MacaU magazine, III series during year 2000. MacaU magazine - a publication owned by the Government Information Bureau (GCS) of Macau SAR - is produced by Livros do Oriente

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

DIÁLOGOS NUMA NOITE SEM LUA



Não vou revelar-vos como consegui a autorização para passar uma noite inteira na Citânia de Santa Luzia. O que importa é que a consegui.
Quanto aos motivos que ditaram a concepção e a realização desse projecto, eles tornar-se-ão claros, espero, no decorrer desta despretensiosa narrativa — e quem não os entender não merecerá entendê-los. Há realidades inacessíveis aos profanos e assim deve ser.
Para já, basta que diga: a noite era de Verão e cumpria a previsão meteorológica de calmaria e calor. Cheguei por volta das dez horas carregado com a minha escassa bagagem: uma pequena mochila em que metera uma lanterna eléctrica, um pacote de bolachas, uma garrafa térmica com chá quente, um  agasalho para o fresco da madrugada e uma almofada velha. O guarda da Citânia estava à minha espera; não precisámos de falar, tudo fora já combinado. Logo que entrei no recinto, ele fechou o portão à chave e afastou-se.
Entregue a mim próprio, comecei por procurar um local onde pudesse instalar-me com um mínimo de desconforto e que, ao mesmo tempo, oferecesse condições aceitáveis para a minha experiência. Essa busca foi feita à luz da lanterna, porque era tempo de lua nova, um requisito absolutamente indispensável para não aumentar os riscos que iria correr (todos sabem, até os mais ignorantes, que a lua cheia é perigosa). Desgraçadamente, não podia eliminar as luzes eléctricas que desfeavam as proximidades: a proximidade da pousada e os candeeiros de rua eram factores desfavoráveis contra os quais nada podia, a não ser afastar-me o mais possível, esconder-me atrás das velhas pedras afeiçoadas pelos que ali tinham vivido havia tantos séculos. De certo modo, era a voz deles que eu queria ouvir…
Fiz o meu «ninho» dentro do perímetro de uma das casas circulares da citânia. Coloquei a almofada no solo e sobre ela me sentei, com as pernas cruzadas. Um desnível do terreno protegia-me das luzes eléctricas, ocultando-as, de modo que só via, no céu, o vago clarão que a cidade, lá em baixo, atirava para o alto.
E assim fiquei. O que fiz, o que disse, a meia voz, não é da conta de ninguém. Quem sabe, que o cale; quem o ignora, que se resigne.
Muito tempo se passou, não menos de duas horas. Então, uma brisa muito leve e fresca acariciou-me o rosto. Eu tinha os olhos fechados; assim os mantive, até ouvir um riso murmurado e sentir uma presença muito próxima. Enchi-me da necessária coragem, sabendo que podia ser fulminado sem apelo, numa parcela de segundo. E abri os olhos.
Ela estava, como eu sentira, bem próxima de mim, envolvida numa claridade pálida. Malgrado a proximidade, não conseguia distinguir bem os contornos da sua figura, mas isso não me perturbou; a satisfação de ter sobrevivido ao primeiro olhar sobrepôs-se, por momentos, a qualquer outro sentimento ou pensamento.
A sua voz — musical, fazendo pensar num correr manso de água — soou no silêncio, não sei se vibrando no ar, se dentro de mim:
— Bem, isto é uma novidade. Há muito tempo que não me acontecia. Vários séculos, mesmo.
Afoitei-me a responder:
— Tenho uma resposta, mas não sei a quem vou dirigi-la. Quero dizer que não conheço a tua identidade exacta.
O seu rosto tornou-se mais nítido ao falar novamente:
— Ah, vocês são, decididamente, uma fonte de tédio. Não sei por que dão tanta importância às nossas identidades exactas… aliás, eu pronunciei estas duas palavras com aspas, não sei se as ouviste. Isso da «identidade exacta» é muito relativo e muito enganador, quando se trata de nós. E mesmo no vosso caso, pode criar confusões.
Intimamente, eu estava a sentir um imenso espanto com a minha atitude — como podia estar tão tranquilo, perante aquela enormidade, aquele fenómeno impossível de explicar e entender? Compreendi rapidamente que isto era devido à sua própria dimensão e qualidade: perante a impossibilidade de uma reacção verdadeiramente adequada, só me restava a aceitação passiva. Foi, portanto, com aparente naturalidade que repliquei:
— Mas para nós é importante sabermos com quem falamos…
Ela encolheu os ombros num movimento que adivinhei mais do que vi.
— Acautela-te, que podes estar a falar contigo mesmo. Mas faço-te a vontade. Digo-te que tenho como domínio as águas fluviais (enfim, as que não estão demasiado poluídas) e o meu trabalho favorito consiste em…
Interrompeu-se, depois disse: — Deixa-me ver se encontro a expressão exacta…
Eu, porém, já compreendera:
— Tu és psicopompa, não é verdade?
No seu rosto desenhou-se um sorriso um pouco trocista.
— Os vocábulos retorcidos que vocês arranjam. Sim, é isso.
Endireitei as costas e curvei a cabeça numa saudação:
— Nábia. Nábia dos Brácaros, Nábia dos… Vianenses? Como se chamava esta cidade onde estamos?
Ela abanou a cabeça, fez um esgar de rejeição.
— Não importa. Há hoje um tonto que lhe chamou Etóbriga. Mas era só a febril imaginação dele a funcionar. Não foi para saber o nome desta cidade que me chamaste.
Isso era verdade. Contudo, agora, que a tinha ali, à minha frente, estava confuso de mais para formular perguntas… não podia, no entanto, perder aquela oportunidade; fiz um esforço. Impaciente, Nábia insistiu:
— Então? Não posso ficar aqui muito tempo.
— Só um momento, por favor. Tenho uma lista de perguntas. Estou a consultar a memória.
Mal disse isto, a figura imprecisa da divindade tornou-se perfeitamente nítida. Não que se materializasse; eu continuava a ver as pedras da citânia através do seu corpo luminoso.
— Estás num mau sítio para consultar a memória! — disse ela, a rir. — Nas margens do Rio do Esquecimento!
Sim, eu sabia que o Lima, cuja foz se abria lá em baixo, teve essa reputação. Pelo menos, entre os autores antigos. Era um ponto por onde começar: perguntei-lhe se era verdade que lhe tivessem chamado Lethes, além de Límia.
— Talvez, na imaginação literata de alguns romanos, ou gregos — murmurou num tom sarcástico. — Nunca ouvi a gente de cá chamar-lhe assim.
Era tempo de eu passar a uma posição de igualdade.
— Claro que as águas do Lima nunca provocaram o esquecimento — afirmei doutamente.
Nábia concordou com um gesto de cabeça e reforçou:
— Claro que não. A memória do passado é essencial à espécie humana… e não só. O que me leva a colocar a hipótese de o meu superior hierárquico estar disposto a desistir da humanidade.
Como eu a olhasse numa interrogação ansiosa, ela acrescentou:
— Sim, isso mesmo. Afinal de contas, Ele está a permitir que a humanidade actual se esqueça das raízes. E de uma certa sabedoria ancestral.
De início, não entendi todo o significado destas palavras. Estranhamente, ele rebentou-me de súbito dentro da cabeça, com espantosa nitidez. Mas senti-me na obrigação intelectual de objectar:
— Salvo o respeito devido a uma divindade tradicional: foi essencial, para os homens, voltar as costas a um conhecimento antigo que nos impedia qualquer avanço. Sem isso, não haveria investigação científica. Sentimos a imperiosa a necessidade de poder, livremente, formular hipóteses e tirar conclusões, ainda que provisórias, a partir delas e das observações feitas, quer no meio natural quer em laboratório, sem sofrer interditos tribais nem ser alvo de travões eclesiásticos e perseguições inquisitoriais.
Contra o que eu esperava, ela não se indignou, até fez um pequeno gesto de concordância e disse:
— Isso é verdade, meu caro amigo. É verdade, mas. É uma pena: com os homens há sempre um «mas». Esse movimento ultrapassou os limites de um necessário equilíbrio dinâmico que deve existir no vosso mundo, ou para o qual, pelo menos, a humanidade deveria tender. E levou a um divórcio: entre as ciências chamadas exactas e as humanidades; entre cientistas cada vez mais especializados e o mundo real que os cerca. Entre o mundo fechado de onde saem grandes avanços científicos e tecnológicos e o resto do planeta.
Discurso inesperado na boca de uma divindade das águas fluviais. Porém não tive tempo para espantar-me, porque já o meu pensamento formulava um desabafo quase involuntário:
— Pois. É uma chatice. Veja o caso desta antiga Lusitânia: temos, de um lado, os cientistas, académicos, doutores, engenheiros, físicos, arquitectos, que dão pontapés na gramática, que não conseguem articular um discurso claro na sua língua natal; gente alheia aos valores espirituais, mesmo porque não acredita no espírito. Gente para quem as finanças, a economia e a investigação não são meios e sim fins. Mas, do outro lado, temos gente de muitas palavras (nem todas correctas, aliás, porque a qualidade da cultura, em Humanidades, está a perder-se) e que vive, faz política e actua, de um modo geral, sem se preocupar muito em saber se é a Terra que gira em volta do Sol ou vice-versa; que estabelece os seus raciocínios e as suas concepções ignorando altivamente os dados fornecidos pelas ciências, dados que, em muitos casos, são essenciais — não direi, sequer, para as conclusões a tirar, mas para a simples formulação de hipóteses de trabalho.
E não me contive que não acrescentasse:
— No meio, há uma grande massa inerte que só pensa futebol, só vê televisão e reage docilmente aos estímulos da publicidade e da propaganda. É tramado. A propósito: tem algum  clube preferido?
Uma nuvem de denso vapor envolveu a aparição de Nábia e ocultou-a. Eu tinha-a ofendido, pela certa. Quem me mandara falar de futebol a uma deusa psicopompa? Fiquei ofuscado pela minha própria estupidez. Perdera uma oportunidade única para desvendar segredos fundamentais.
Mas a nuvem brilhante não desaparecera, pelo contrário: olhando-a de frente, vi novamente um delicado rosto definir-se em luz e sombra, ganhar forma etérea. Já não era Nábia, ou esta transformara-se… não, não era Nábia.
Estremeci de temor e respeito ao ver aquela figura resplandecente vestida de branco e azul forte. E murmurei:
— Perdão, Senhora, perdão. Sou um pecador, eu sei.
A sua voz era infinitamente suave:
— A que Senhora estás a dirigir-te, posso saber?
Interdito, gaguejei:
— Mas… dirijo-me a vós!
De novo aquela voz leve, doce, que evocava o perfume do jasmim:
— Eu tenho muitos nomes e cada um desses nomes é todo um programa de fé e de vida. Em tempos, imagina tu, chamei-me Nábia. E Atégina. Mas isso é passado remoto. Aqui, nesta cidade, já me chamei Soledade, sabias?
Eu abandonara a minha pose ióguica, de pernas cruzadas, para apoiar os joelhos sobre a almofada. Foi assim, ajoelhado, que repliquei:
— Sabia. Mas… nesta cidade?
Ela olhou em volta enquanto dizia:
— Bem, não exactamente. Esta é a Cidade Velha, ou assim lhe chamavam. Enfim, não haverá grande diferença nas pessoas, bem feitas as contas. De qualquer modo, eu era Soledade… além.
Apontou numa direcção. Nem olhei para lá, seria inútil, de noite, sem lua, e no local onde me encontrava. Mas compreendi, sem ter dúvidas, que apontava para o pequeno morro da Senhora da Agonia. Curvei-me em humildade e respeito profundo.
— Qual a vossa mensagem?
Um riso transparente respondeu-me.
— As mensagens não são comigo. Nesta manifestação, quero dizer; se estivéssemos em Fátima, o caso mudava de figura. Não, não tenho mensagem; mas tenho um pedido.
— Senhora…
— Ouve. Também se relaciona com a memória. Como te disse, já ali me chamei Soledade, antes de ser Agonia. Nomes tristes, não achas? Dizem as pessoas que eles estão ligados às angústias das mulheres e das crianças que do morro viam os pescadores naufragar.
Arrisquei a pergunta: estariam as pessoas erradas, afinal?
A Senhora deu-me um sorriso triste.
— Não, que ideia. Mas é uma explicação muito incompleta. Por esquecimento. Aquele alto já se chamou Cerro dos Enforcados. Entendes?
— Entendo. Era ali que…
— Que executavam os condenados, exactamente. Então, que outro nome poderia eu ter naquele cerro, senão Agonia? Mas foi preciso chegar ao vosso século dezoito para isto ser entendido. Adiante, que se faz tarde: eis o meu pedido. Seria simpático que, ao menos durante as festas de Agosto, houvesse uma oração, um pensamento, uma vela acesa por todos os que ali foram enforcados. Alguns com razão, é certo, mas é uma questão de piedade e solidariedade humana. E depois, há gente pior que eles que continua a escapar à forca. Quando penso em alguns ministros do vosso Governo, por exemplo…
Achei melhor adverti-la: convinha ter cuidado. Já lá ia o tempo em que podíamos criticar o poder sem sermos democraticamente lixados.
— Talvez tenhas razão, meu filho. Mas há que arriscar. E o pedido está feito.
Subitamente, fiquei mergulhado em escuridão. Os meus olhos, ainda deslumbrados pela luz da aparição, precisaram de uns minutos para se adaptar e pude então ver uma vaga claridade no céu.
E um galo cantou.
João Aguiar
J. Sousa - Anta - Óleo sobre tela, 60x60 - 2007

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O RIO DAS PÉROLAS III


Sinal nove
Esta história, embora simples e breve, compreende três capítulos.
O tempo do primeiro remonta há vários anos, mais de dez, e o local da acção é o Porto Interior de Macau. As personagens: um jovem fotógrafo, um velho marinheiro, patrão de um junco, e uma rapariga de profissão inconfessável.
O jovem fotógrafo era eu; tinha recebido uma encomenda, captar imagens de toda a costa de Macau, incluindo as ilhas. O patrão de junco era o meu amigo Cheong-Pac, que me viu crescer e muitas vezes me levou consigo em navegações à procura dos piratas – como ele dizia, para falar à minha imaginação. Diante da tripulação eu chamava-lhe A-Pac, mas quando estávamos sós era vulgar chamar-lhe Tio Pac. Só o fazia quando estávamos sós porque era um hábito da infância que não queríamos partilhar com ninguém.
O Tio Pac ia oferecer-me nesse dia a pequena circum-navegação exigida pela minha reportagem fotográfica. O seu junco era o Dragão Contente – não que este fosse o verdadeiro nome, mas sim o que eu lhe pusera em miúdo, e nunca lhe chamei outra coisa.
Quanto à rapariga, andava com outras colegas de profissão à cata de turistas na zona do Porto Interior. Pelo menos, foi o que me pareceu e havia razões para chegar a essa conclusão: estava integrada num grupo de graciosas profissionais que se metiam descaradamente com todos os homens que passavam. Nesse tempo, se bem me lembro, aquela não seria uma das principais zonas de caça, porém a polícia havia feito, na véspera, uma rusga nas áreas operacionais e os agentes ainda andavam por lá.
Eu e o Tio Pac seguíamos a pé, a caminho do junco, e a nossa rota cruzava o enxame. Ao ver aquela barragem sexual, ele desviou-se, o que o obrigou a abandonar o passeio, e eu segui-lhe o exemplo. Foi então que a rapariga veio ter connosco. Por acaso – não; porque era muito bonita, o que me chamou a atenção –, eu estivera, segundos antes, a olhá-la e reparara que não se comportava como as outras peripatéticas.
(Peripatéticas, isto é: as que funcionam em movimento, as que fazem o trottoir. É um eufemismo francês de origem grega. Encontro-lhe grandes méritos poéticos e filosóficos.)
Dizia eu que a rapariga não se comportava como as outras: no meio daquele pequeno bando barulhento e desavergonhado, mantinha-se muito calada e quase quieta.
Isto até ao momento em que nos viu, ao A-Pac e a mim, passando na rua, manobrando para ficarmos equidistantes do passeio e da fila de carros que desfilavam com o costumado ímpeto. Nessa altura, avançou num passo decidido, veio ter connosco e abordou sem cerimónias o meu companheiro, em cantonense:
— A-Pac, vais embarcar com este teu jovem amigo?
Como é evidente, não consegui dominar uma gargalhada que me subiu, alegre, pela garganta: o velho Pac, o Tio Pac, andava tu cá tu lá com as peripatéticas. Mentalmente, logo compus um discurso sobre vigor sexual e maroteira, que lhe reservava para quando nos encontrássemos a bordo.
Mas o Tio Pac olhou-a com profunda surpresa e perguntou-lhe quem ela era e como o conhecia. A moça respondeu: – Toda a gente te conhece no Porto Interior. E já me viste muitas vezes, mas nunca reparaste na minha cara. Aqui, no sítio onde nos encontramos, o meu nome é Jasmim.
Claro, havia de ser um nome de guerra. A sua revelação não pareceu iluminar o A-Pac, que lhe perguntou, desconfiado, o que queria dele.
— Quero embarcar contigo e com o teu amigo – respondeu, olhando--me. Já não era sem tempo que o fizesse, murmurou a minha vaidade.
— Embarcar? – o A-Pac soltou um risinho. Nada disso, o seu junco não era um barco de flores. Não sei se ele era suficientemente velho para ter visto um desses bordéis flutuantes, mas talvez lhe tivessem contado sobre eles.
Depois da negativa, olhou-me de soslaio e cedeu, de modo comovente, a uma fraqueza, que era a sua amizade por mim: – A não ser que tu queiras... – murmurou.
Abanei a cabeça, repliquei: – Tenho trabalho, muito trabalho à minha frente... – e depois completei em português, tão depressa que nem a Jasmim nem o Tio Pac poderiam entender-me: – Desculpa lá, filha, mas hoje não.
Era um aparte ligeiramente ordinário. O Tio Pac não o entendeu, certamente; ela, não sei. Disse-me, com um sorriso rápido:
— Fica para outra ocasião. Mas há-de acontecer.
E afastou-se. E assim termina o primeiro capítulo.
O segundo capítulo passa-se alguns anos mais tarde. O início da acção é quase igual, porém as diferenças são muitíssimo importantes.
Uma vez mais, estávamos no Porto Interior, A-Pac e eu, a caminho do seu junco. Agora, vamos às diferenças: eu não ia fazer reportagem alguma, eu estava – por vias de coisas diversas que me tinham acontecido nos últimos tempos – a ir muito seriamente pela retrete a baixo, pronto a puxar o autoclismo atrás de mim (forma rendilhada e literária de dizer que sofria de aguda depressão).
Cheong-Pac fora procurar-me nessa manhã, fazendo o seu ar zangado, com que me metia medo quando eu era criança, e dissera-me: vens comigo, nem que seja à força. Vamos navegar. Hoje não saímos para a pesca, saímos só para navegar.
Mas vem aí um tufão, objectei. E era verdade; uma outra diferença, em relação ao primeiro capítulo da história, está na época do ano – o mês, agora, era Agosto, o ar carregava em suspensão quase tanta água como o Rio das Pérolas, o termómetro não parava de subir. E no mastro da Guia estava içado, desde as seis horas, o Sinal Um de tufão.
A minha objecção, evidentemente, não comoveu um velho nauta como ele. – O Sinal um, o que é o Sinal Um? – repontou. – Toca a andar!
E assim nos encontrávamos, uma vez mais, cruzando o Porto Interior em demanda do Dragão Contente. Havia menos gente na rua, não por causa do Sinal Um mas por causa da chuva, que caía miudinha porém com entusiasmo, tanto assim que estávamos já encharcados de água morna.
Então, tal como sucedera anos antes, uma rapariga veio ter connosco, abordou o Tio Pac, disse-lhe que queria embarcar no seu junco.
Não veio de um bando de peripatéticas, pois no passeio pouca gente havia. Naturalmente, estava tão encharcada  como nós, o cabelo colava-se-lhe à cara. Mas não me custou reconhecê-la, porque não esquecera o seu rosto. E o Tio Pac provou que a idade não lhe roubara as faculdades:
— Por onde tens andado, Jasmim? – perguntou com um risinho malandro.
Isso não interessa, respondeu ela; o que interessa é que eu quero ir com vocês.
Preparei-me para ouvir uma recusa enfática, porque o Tio Pac é muito selectivo quanto às pessoas que admite a bordo do seu junco. Portanto, fiquei altamente surpreso ao ouvi-lo dizer que sim, podia vir. Uma olhadela lançada na minha direcção revelou-me o fundo do seu pensamento: era, no entender do velhote, uma sábia terapia para o negrume que me ia na alma.
— Mas, A-Pac, olha que não é preciso... – comecei eu a murmurar, porém ele interrompeu-me: – Ta-ta-ta! Já disse! Quem manda são os velhos.
Dez minutos mais tarde, o Dragão Contente abandonava o Porto Interior. Levava pouca gente a bordo: o Tio Pac, Chen-Lo – um dos homens da tripulação e seu grande amigalhaço –, Jasmim e eu. O junco, interessará dizer, estava equipado com um motor e saímos do porto com ele a funcionar, as velas ficaram recolhidas.
E ainda bem que assim ficaram. Quando Cheong-Pac tomou a direcção da Taipa, subia, na Doca D. Carlos I, na Guia e na Fortaleza do Monte, o Sinal Três de tufão. Isto eu só o soube pouco depois, porque na altura estava distraído a ver a água revolta e a agarrar-me para não perder o equilíbrio. Chen-Lo ocupava-se do leme, com o Tio Pac a seu lado, e Jasmim, a bela Jasmim, que ainda não abrira a boca desde que embarcara, postara-se à proa, sem dificuldade aparente, apesar do balanço, que se tornava cada vez mais forte. Parecia uma carranca de navio antigo – uma carranca particularmente graciosa, acrescentarei.
De súbito ouvi, trazida pelo vento, a voz do velho rádio de pilhas que estava... onde estava ele, a propósito? Não sei bem. De qualquer modo: estava ligado e sintonizado, claro, para a emissão em cantonense. A recepção era deficiente, mas chegou para eu perceber que a locutora anunciava a passagem de Sinal Um a Sinal Três e fazia as recomendações habituais. Virei-me para os meus anfitriões e gritei:
— A-Pac! Sinal Três! É melhor voltarmos!
Sucedeu então o primeiro prodígio daquele dia: o Tio Pac largou uma larga gargalhada e respondeu:
— Do que tu precisas é deste vento, para te limpar dos espíritos malfazejos!
E manteve a rota. O trânsito na ponte da Taipa (à época só havia uma) fazia-se com especial lentidão – lentidão maior, ao que me pareceu, do que era habitual com o Sinal Três. Mas talvez fosse impressão minha. Tentei dar atenção ao que dizia a rádio, porém agora só conseguia ouvir um cacarejar indistinto.
O Dragão Contente cavalgava as ondas. Parecia-me cada vez menos contente, é certo, porque rangia como nunca, num lamento ruidoso. Agarrado como lapa à sua madeira e a uma corda, reflecti então que o Tio Pac, na sua aparente loucura, me aplicara a terapia certa: naquele momento, os meus fantasmas interiores iam longe, varridos pelo vento cuja força crescente cavava precipícios na superfície das águas. Naquele momento, a vida, a vida e a sua conservação, pareciam-me os bens supremos, ao lado dos quais todos os meus conflitos e preocupações e problemas faziam figura insignificante.
A questão, agora, pensei, é ver se consigo voltar a terra com estes bens cuja noção vim buscar ao mar encapelado. Mas não, reagi, estou a fazer drama em excesso: nem a situação é assim tão grave nem estamos, sequer, no mar, isto é ainda a foz do Rio das Pérolas.
Olhei à minha volta, tanto quanto a chuva me permitia abrir os olhos. Jasmim mantinha-se à proa, bem agarrada ao cordame. O Tio Pac substituíra Chen-Lo ao leme. E o seu rosto estava agora claramente apreensivo e não tardei a perceber que ele tentava, em vão, modificar a rota do junco, tentava, em vão, o regresso.
Passáramos muito além de Coloane. Ainda julguei ver, ao longe, o mastro do posto da Polícia Marítima, onde dançava loucamente o Sinal Nove de tufão, mas isso é impossível, não posso tê-lo avistado àquela distância e na posição em que nos encontrávamos.
Não sei por quanto tempo navegámos, se é que se pode chamar navegação àquela luta inglória. O tempo pode ser uma noção subjectiva.
Mas não podiam ser minutos somente, nem sequer meia hora, porque as minhas mãos, os meus braços, as minhas pernas acusavam já um cansaço crescente. E não podia dar-lhes repouso, pois se o fizesse voaria borda fora...
Como voou borda fora o rádio de pilhas, vindo não sei de onde, apenas sei que o vi passar e perder-se nas ondas. Aquele vento não era, definitivamente não era já um vento de Sinal Três.
E, de repente, pareceu redobrar a sua força. Agora, o junco todo empinava-se a cada vaga, depois apontava a proa às profundezas.
— A-Pac! – gritei. Ele não me respondeu, muito provavelmente não me ouviu. Olhei-o, estava de cabeça erguida ao céu e gritava o que me pareceu ser uma oração, mas não entendi o que dizia, o vento levou-lhe as palavras. Então, ao virar a cabeça na direcção da proa, veio-me um aperto ao estômago, porque Jasmim desaparecera.
Não havia a mínima possibilidade de ter abandonado a sua posição para se abrigar; ninguém seria capaz de dar um só passo, fazer um só movimento sem ser arrastado pelo vento e pelas vagas. Jasmim fora arrastada.
Mais uma vez, gritei por A-Pac. Ele continuava a orar, de cabeça virada ao alto, enquanto Chen-Lo lançara também as mãos ao leme para tentar estabilizar o junco. Um ruído seco: o mastro grande quebrou-se como um palito.
A-Pac gritou mais alto. E então, deu-se o segundo prodígio do dia.
Não serei capaz de o descrever em pormenor, as minhas recordações são confusas. Direi que à nossa volta uma vaga imensa ergueu-se. Foi uma cortina de água que se levantou, que rodeou completamente o junco. E no espaço assim delimitado o vento deixou de soprar; a embarcação tombou pesadamente sobre um leito liso e ficou imóvel, por instantes. Depois, ouvi o motor ronronar com pachorra e o Dragão Contente começou a navegar a direito, sem balanços...
Quem o conduzia, não sei. Porque Cheong-Pac e Chen-Lo haviam largado o leme, estavam ambos prostrados sobre as tábuas, como em adoração.
Eu também dei finalmente descanso a mãos e braços, mas não me lembro do que fiz. Não terei feito nada, nem um gesto, estava em choque, cansado de mais, espantado de mais para ser capaz de qualquer reacção. Sobre nós caía uma chuva grossa, ininterrupta, porém tombava a direito como se não houvesse já vento – e no entanto eu ouvia-lhe o mugido, além da cortina de água que nos protegia.
Quando ela se desfez, quando a água se abateu e pudemos observar a nossa posição, estávamos em Macau.
Ou melhor, à entrada do Porto Interior. À nossa frente, podíamos ver as destruições causadas pelo tufão – não muitas, porém espectaculares. Sentimos de novo o vento, mas era já fraco. E o junco avançava, com o motor sempre a ronronar – alegremente, quase poderia jurá-lo. Chen-Lo deitou as mãos ao leme, para a manobra.
E, a partir de então, eis a única coisa de que me recordo: quando finalmente a âncora foi lançada, surgiu do porão a figurinha frágil de Jasmim. Ao vê-la, soltei um grito (gritei muito, nesse dia). Ela olhou-me, sorriu.
— Que tens tu? Já não há razão para te assustares – disse-me numa troça amável. – De vez em quando, convém renovar os prodígios, se não as pessoas confundem-nos com as lendas.
Foi nessa altura que a febre tomou o meu corpo e não me lembro de mais nada.
O terceiro e último capítulo desta história passa-se no dia seguinte. Eu acordei muito cedo e tive a enorme surpresa de ver que estava em minha casa, na minha cama. Poderia facilmente julgar que tudo aquilo fora um pesadelo; no entanto, o tufão deixara o seu rasto em Macau. Reuni as forças ganhas durante o sono. Saí de casa e fui à procura do Tio Pac, porque tinha algumas perguntas muito importantes a fazer-lhe.
Não o encontrei nos lugares habituais. Finalmente, um garoto que era seu vizinho disse-me que ele devia encontrar-se no templo da Barra e foi para lá que me dirigi.
Vi-o logo, a colocar um gordo molho de pivetes diante da imagem da deusa A-Mah. Aproximei-me, abri a boca para falar-lhe, ele calou-me com um «Chut! Estou a rezar!».
Esperei durante uns bons cinco minutos. Por fim, já não podia conter-me:
— A-Pac – murmurei – meu querido Tio Pac. O que é que nos aconteceu ontem? E quem será aquela rapariga, chamada Jasmim?
Ele atirou-me um olhar impaciente.
— Ainda perguntas quem é? Ainda perguntas?
Recolheu-se de novo em oração. De facto, pensei, esta pergunta é estúpida.
Fui então comprar um molho de pivetes tão grande como o dele, acendi-os e coloquei-os diante da estátua de A-Mah...
João Aguiar
Joaquim de Sousa
Typhoon Signal N.9
    This story, though short and simple, consists of three chapters.
The first chapter begins some years ago – over ten – and takes place in the Inner Harbour in Macau. The characters are a young photographer, an old seaman who owns a junk and a girl with an unmentionable trade.

The young photographer was myself; I had been commissioned to photograph the whole coast of Macau as well as the islands.  The owner of the junk was my friend Cheong-Meng.  He had known me as a child and would often take me with him on expeditions in search of pirates – as he said to get my imagination going.  When we were with the crew, I called him Cheong-Pac. On our own, I usually called him A-Pac, but only when we were alone because it was a childhood habit and we didn’t want to share it with anyone.
A-Pac had offered to take me that day on the short excursion I needed to go on for my photographic work.  His junk was called the Happy Dragon – not its real name but the one I had given it when I was a child and was never to call anything else.
As for the girl, she was with her fellow pros on the game prowling for tourists in the Inner Harbour area.  At least, that was what it seemed to me and I had reasons to reach that conclusion: she was part of a group of lovely professional ladies who openly accosted every man who passed by.  Although it was not, if I remember well, one of the main hunting grounds at the time, the police had raided it the day before and some of their men were still around.
A-Pac and I were walking to the junk when we came across the throng of girls. When he saw this sexual barrier, he changed course and had to step off the pavement with me following suit.  It was then that the girl came up to us.  Not by chance  – no; she was very pretty and had already caught my eye  – , I had seen her a few seconds before and noticed she didn’t act like the other “peripatetic girls”.
(“Peripatetic girls”, that is to say: those who work while in motion, street-walkers.  It’s a French euphemism of Greek origin.  I find the word to be of great poetic and philosophic significance.)
As I was saying, the girl didn’t behave like the others: in the middle of that noisy, shameless horde, she remained very quiet and almost still.
That is until she saw us, A-Pac and I, as we passed by on the street and manoeuvred ourselves halfway between the pavement and the traffic that sped past at its usual speed.  She then approached us in a decided manner and spoke without any sign of formality to my friend in Cantonese:
— Cheong-Pac, are you going to get on your boat with your young friend?
Of course I just couldn’t help bursting with laughter: so the old Cheong-Pac, A-Pac,  was on these close and easy terms with the peripatetics.  I immediately started to get ready a speech in my mind about sexual vigour and naughtiness that I would give him when we were on board.
But A-Pac looked at her in great surprise and asked who she was and how she knew who he was.  The girl replied:  – Everyone in the Inner Harbour knows you.  And you’ve seen me lots of times, but you’ve never noticed me.  Here, in this place, my name is Jasmin.
It was obviously her working name, her nom de guerre.  It didn’t seem to mean anything to A-Pac, who, suspicious, asked her what she wanted of him:
— I want to go on board with you and your friend – she replied as she looked at me.  And it’s about time you did, murmured my vanity.
— Go on board? – A-Pac chuckled. Nothing doing, his junk was not a flower boat.  I don’t know if he was old enough to have ever seen one of those floating brothels, but maybe he had been told about them.  
After saying no to her, he then glanced sideways at me and rather touchingly gave in to a weakness, his friendship for me:  – Unless you want to ... – he muttered. 
Shaking my head, I replied: - I have work to do, a lot of work ... - and then I said in Portuguese but so quickly that neither Jasmin nor Cheong--Pac could understand: – Sorry, love, not today.
It was a slightly rude remark.  A-Pac certainly did not understand; I don’t know about her.  With a quick smile, she said to me:
— Another time.  But it will happen.
And she walked away.  And the first chapter ends here.
The second chapter opens some years later.  It begins in nearly the same way though the differences are extremely important.
Once again, we were in the Inner Harbour, A-Pac and I, and on our way to his junk.  Now, let’s take a look at where it’s different: I was not doing any kind of reporting work, I was – as a result of various things that had happened to me in the recent past – rapidly going down the drain and was about to flush the toilet after me (an ornate and literary way of saying that I was profoundly depressed).
Cheong-Pac had come to fetch me that morning.  He had his cross face on, which used to frighten me when I was a child, and he told me: you’re coming with me even if I have to make you.  We’re going out on the boat.  We’re not going fishing today, we’ll just go out on a trip.
But there’s a typhoon coming, I objected.  Which was true; another difference between the first chapter and this one is the time of year – the month was now August, and there was almost as much water hanging in the air as in the Pearl River and the thermometer kept climbing.  And Sign One of the typhoon warnings had been hanging from the Guia mast since six o’clock that morning.
My objection evidently failed to impress an old sea dog like him. – Signal One, and what is Signal One? – he replied. – Now get moving!
So once again we found ourselves crossing the Inner Harbour on our way to the Happy Dragon.  There were less people on the streets, not because of the Signal One but because of the rain, which was light but fell with such enthusiasm that we were soaked in warmish water.
Then just as she had done some years before, a girl came up to us and spoke to A-Pac telling him she wanted to go on board his junk.
She was no longer part of a band of peripatetics, there were few people on the pavement. She was just as soaked as us naturally, her wet hair clinging to her face.  I easily recognised her as I had not forgotten how she looked.  And A-Pac showed that age had not robbed him of his faculties:
— Where have you been, Jasmin? – he asked with a knowing laugh.
That’s of no matter, she replied: what matters is that I want to go with you.
I expected to hear a flat refusal as A-Pac was very particular about the people he let on board his junk.  However, I was highly surprised to hear him say yes, she could come.  He quickly glanced at me and I realised what he was up to:  in the old man’s understanding, this would be a sensible form of therapy to get me out of the black depths of my despondency.
— But, A-Pac, look, there’s really no need ... – I began to murmur but he interrupted me: – Shush! I’ve already said it!  It’s the old who give the orders.
Ten minutes later, the Happy Dragon had left the Inner Harbour.  There weren’t many people on board:  Cheong-Pac, Chan-Lo – one of the crew and a close pal of his – , Jasmin and me.   The junk, by the way, had a motor and we left the harbour with it working and the sails taken in.
And it’s just as well they were.  When Cheong-Pac steered the junk in direction of Taipa, Signal Three of the typhoon was being hoisted in the Dom Carlos I docks, Guia hill and Fortaleza do Monte.  I was only to know this later because at that time my attention was absorbed watching the waves and holding on to keep my balance.  Chan-Lo was at the helm with Cheong-Pac beside him, and Jasmin, the beautiful Jasmin, who had not opened her mouth since she had come on board, was standing on the prow without any apparent difficulty despite the increasing swell of the water.  She was like the figure-head of some ancient ship – a particularly lovely figure-head, I must add.
All of a sudden, I caught the sound, carried by wind, of the old portable radio which was ... where was it, in fact?  I’m not sure.  In any case, it was tuned in to a station in Cantonese, of course.  The reception was bad but I understood them announce that the Signal One had changed to Signal Three and then the usual advice.
I turned to my hosts and shouted:
— Cheong-Pac! Signal Three!  We’d better get back!
The first of the marvellous incidents of the day then occurred:  A-Pac burst out laughing and replied:
— What you need is this wind to clear your head of all those low spirits!
And he kept on course.  The traffic on the Taipa bridge (there was only one at that time) was especially slow – it seemed even slower that normal for a Signal Three.  But perhaps it was just my impression.  I tried to focus on what the radio was saying but now all I could hear was the sound of crackling.
The Happy Dragon rode the waves.  She seemed increasingly unhappy about it, that’s true, because she groaned as never before in one noisy lament.  Clinging like a leech to the wood and a rope, I reflected that A-Pac, in his seeming madness, had applied the right therapy: at that moment, my inner phantoms were well gone, blown away by the wind that was sweeping with growing force huge craters on the surface of the water.  At that instance, life, life and keeping it, seemed to me supreme blessings, next to which all my conflicts and worries and problems paled in significance. 
The question now was, I thought, how I would manage to get back to land with these blessings – the concept of which I had grasped in the rough seas.  But no, I countered, I am making too much of a drama about it: the situation isn’t that serious and neither are we in fact on the high seas,  this is still the mouth of the Pearl River. 
I looked about me as much as the rain allowed me to keep my eyes open. Jasmin was still at the prow, holding on tightly to the rigging.  Cheong-Pac had taken over from Chan-Lo on the helm. He clearly looked concerned and I soon realised that he was trying, in vain, to change course; trying, in vain, to return.
We had passed a long way beyond Coloane.  I thought I could still see from afar the mast of the Maritime Police station with typhoon Signal Nine swinging wildly from it, but that would have been impossible, I could not have seen it from that distance and not from where we then were.
I don’t know how long we spent navigating - if that’s what one could call this horrifying struggle.  Time can also be viewed subjectively.
But it could not have been just a matter of minutes or even half an hour, because my hands and arms and legs were feeling more and more tired.  And I could not rest them as I would then have flown overboard ....
Just as the radio flew overboard coming from I don’t know where.  I just know I saw it go past and into the waves.  That wind was no longer, definitely no longer, a Signal Three wind.
And then suddenly it seemed to grow twice as strong.  Now the whole junk reared up at each wave only to point straight down to the depths afterwards.
— Cheong-Pac! – I screamed.  He didn’t answer, most probably he couldn’t hear me.  I looked at him.  His head was raised up to the sky and he was shouting what seemed to be a prayer but the wind blew the words away and I didn’t hear them. I turned towards the prow and my heart fell because Jasmin had disappeared.
It was impossible for her to have left the prow to seek shelter; nobody could have taken a step or made the least movement without being dragged away by the wind and the waves.  Jasmin had been dragged away.
Once again, I shouted at Cheong-Pac.  He kept on praying, his head tilted upwards while Chan-Lo was also at the helm trying to keep the junk steady.  A dull noise and the main mast broke like a stick.
A-Pac shouted even louder.  And then, the second marvel of the day happened.
I’m unable to describe it in any detail as my memory is hazy. I’d only say that a huge wave arose around us.  It was a curtain of water that rose up and completely encircled the junk. And the wind died down in this confined space;  the junk fell heavily onto the flat surface and remained still for some moments.  Then, I heard the motor calmly spluttering away and the Happy Dragon set off steadily, without swaying ...
I don’t know who was steering her. Cheong-Pac and Chan-Lo had let go of the helm and were both lying flat on the deck as if in adoration.
I too let my hands and arms relax at last, but I can’t remember what I did.  I probably did nothing at all, not even move, I was in a state of shock, too tired and too astonished to have any reaction at all.  All around us a heavy and constant rain fell, but it came down straight as if there were no wind - and yet I could hear it howl beyond the curtain of rain that protected us.
When the curtain dispersed, when the water came down and we could see where we were, we were in Macau.
Or rather, we were at the entrance of the Inner Harbour.  We could see right in front of us the devastation the typhoon had wreaked – it was not much, but it was spectacular.  We felt the wind again but it was gentle now.  And the junk sped on, her motor spluttering away – happy, I would almost swear.  Chan-Lo came to the helm to steer her.
From this moment on, this is the only thing I can remember:  when we finally dropped anchor, the delicate figure of Jasmin came out from the hold.  When I saw her, I screamed (I screamed a lot that day).  She looked at me and smiled.
— What’s the matter with you?  There’s no reason for you to be frightened now – she said teasingly but kindly. – Every so often, marvels have to happen again so that people don’t confuse them with legends.
That was when my whole body came down in a fever and I remember nothing else.
The third and last chapter of this story takes place the following day.  I woke up very early and was amazed to find myself in my own home, in my own bed.  I could easily have believed that everything had just been a nightmare; however, the typhoon had left its mark on Macau.  I gathered together my strength which I had regained during my sleep.  I left home and set out to look for Cheong-Pac because I had a few very important questions to ask him.
I didn’t find him in the usual places.  Eventually, a young boy who was his neighbour told me that he was most probably at the Barra Temple and so that’s where I went.
I saw him immediately just as he was placing a large bundle of joss-sticks at the feet of the statue of the goddess A-Mah.  I walked up to him, opened my mouth to speak and he shut me up with a “Hush!  I’m praying!”
I waited a good five minutes and then I could no longer stop myself:
— Cheong-Pac – I murmured,  – my dear A-Pac.  What happened to us yesterday?  And who could that girl Jasmin have been?
He threw me an impatient look.
— You still ask who she was? You still ask?
He went back to his prayers.  It was, in fact, a stupid question, I thought.
So I went off to buy joss-sticks in just a big a bundle as his, and I lit them and placed them in front of the statue of A-Mah.
João Aguiar