terça-feira, 30 de novembro de 2010

UMA PEQUENA SEMENTE, PODE GERAR UMA GRANDE ÁRVORE

J. Sousa - Grafite H sobre papel

O «MISTÉRIO» DE MACAU

Na cidade e no território de Macau — que, desde 1999, constitui uma região administrativa especial da China —, há um pequeno mistério que persiste, apesar de o progresso e as transformações da vida moderna lhe terem roubado muito do velho fascínio, apesar de se ter apagado quase totalmente o velho encanto, à medida que as antigas casas e ruelas foram desaparecendo.
Em que consiste esse pequeno mistério? No facto seguinte: cada vez mais, Macau se vira para uma única actividade, que é o jogo; cada vez mais o perfil da cidade e das suas ilhas adjacentes, a Taipa e Coloane, se altera com a construção de mais e mais hotéis, mais e mais casinos; o pequeno comércio tradicional desaparece gradualmente; e tanto a principal ocupação como a principal preocupação das pessoas parece ser a de ganhar dinheiro pelo jogo — quer jogando, quer trabalhando nas várias estruturas de apoio ao jogo; é, portanto, um ambiente essencialmente materialista aquele que predomina. No entanto, se há espaços que se têm mantido intocados (ou quase) pelo avanço dos arranha-céus (diante dos quais tudo o mais parece recuar) são aqueles a que poderemos chamar os «espaços sagrados». Isto é, os espaços reservados aos cultos, muito especialmente, e como seria de esperar, o budista e o cristão, neste caso, sobretudo, o católico.
No que se refere a este último, talvez um dos motivos para essa «resistência» espiritual resida na comunidade filipina. Porque em Macau existe, de facto, uma comunidade filipina com certa importância; discreta mas visível. As mulheres são, em grande maioria, empregadas domésticas, enquanto que os homens trabalham, muitos deles, em empresas de segurança; mas há também numerosos conjuntos musicais formados por filipinos, que se exibem em hotéis, clubes nocturnos, restaurantes, etc. Assim, naquele pequeno território chinês, que durante cerca de 500 anos foi administrado por Portugal, a presença filipina é muito sensível. Ora, esta comunidade tem, evidentemente, as suas necessidades espirituais. E não custa a crer que se por um lado os filipinos usam os espaços católicos e deles usufruem, por outro lado darão forçosamente à comunidade católica uma nova força e um novo dinamismo, que há-de contribuir para a vitalidade e a resistência desses mesmos espaços.
Macau oferece-lhes, nesse domínio, algumas peças verdadeiramente preciosas. Se a catedral e a igreja da Penha, por exemplo, são, sob o ponto de vista arquitectónico, perfeitamente vulgares, já a igreja de São Domingos é uma autêntica jóia, resplandecente num barroco invulgar, porque nele as talhas douradas foram substituídas por estuques brancos. Quanto à capelinha de S. Francisco Xavier, em Coloane, é outra peça de grande beleza, na sua simplicidade.
E se os filipinos têm assegurados os seus locais de culto, também os imigrantes tailandeses e os chineses que seguem a fé budista continuam a possuir os seus lugares sagrados. Aliás, a deusa Kun Iam (Kwan Yin, em mandarim) domina o centro da cidade, com uma bela estátua monumental que remata o Centro Ecuménico, ainda construído sob a administração portuguesa. Kun Iam, convém dizer ou recordar, é a deusa da misericórdia, o que, em séculos passados, a aproximou singularmente de Nossa Senhora, numa China imperial onde o cristianismo entrara havia pouco… pois bem, Kun Iam tem dois templos na cidade, enquanto outra deusa, A-Mah, possui, além do famoso Pagode da Barra, um novíssimo e grande templo em Coloane.
Não, a fé não morreu em Macau — apesar da roleta…

João Aguiar




























sábado, 27 de novembro de 2010

A ARTE DE ESCREVER POESIA


Movimento e  poesia
J. de Sousa - Sanguínia sobre papel

O ponto de partida sabemos. É fácil. Trata-se de embarcar nesse barco chamado  poesia, essa forma de nos entendermos com tudo o que nos perturba ou nos maravilha. Uma maneira mais intensa de nos relacionarmos com o universo e com a humanidade. Uma forma de nos tornarmos melhores. Mais profundos. Mais sábios 
O ponto de chegada ninguém sabe qual será. Serão tantas as chegadas, tão vastas e tão pouco mecânicas que só as pode adivinhar quem já tiver posto um pé na poesia, quer dizer, um pé no futuro.

João Aguiar

terça-feira, 23 de novembro de 2010

UM DOS SONHOS DO JOÃO, ESTÁ A TORNAR-SE REALIDADE

Ele sabe que tiveste 20 a filosofia, que és bom a inglês e a português. Deve estar a olhar para ti a dizer: "Viste meu sacana,como as nossas disputas verbais valeram a pena?" Vai "Tómas",  segue o teu caminho e dá-lhe mais alegrias.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A BELEZA ESTÁ NA SIMPLICIDADE!



OS COMEDORES DE PÉROLAS



PORTA DO ARCO, ORIENTE DO ENTENDIMENTO

Há cinco anos, encontrava-me num quarto de hotel, em Macau, sentado diante de um computador portátil, a escrever o final do rascunho de um romance intitulado Os Comedores de Pérolas. E, nos intervalos, pensava: estou a viver um momento único, é uma experiência emocionante; mas é também, com certeza, a última vez que venho a Macau, de modo que preciso de acabar depressa para aproveitar o tempo.

Hoje, encontro-me num quarto de hotel, em Macau, sentado diante de um computador portátil, a escrever o início de uma crónica.
Eu nasci com esta maravilhosa aptidão: só muito raramente faço previsões de qualquer espécie, mas quando as faço - erro quase sempre.
No decorrer destes cinco anos, fiz, sobre Macau, uma outra previsão. Reflecti que, pensando bem, e embora sentisse uma secreta pena, seria afinal preferível não voltar ao Território, porque a Macau pela qual me tinha apaixonado ia desintegrar-se, desaparecer rapidamente.
Ia desaparecer a cidade velha - até, quem sabe, o Largo do Leal Senado, mais a Travessa do Bispo e a Rua da Palha, que tantas vezes me levara a São Paulo enquanto olhava, basbaque entre centenas de outros, as lojas de inevitáveis quinquilharias e de roupa vely cheap, no dizer ou na sugestão de vozes que ocasionalmente tentavam mesmo um português aproximativo mas talvez por isso mais cordial ainda. E aquela atmosfera única no mundo, mescla de pressa e lazer descontraído, mescla de línguas, cheiros, usos, hábitos e comeres, mescla de sangues e de sentimentos, mescla de pragmatismo e (perdoem-me, sim?) de poesia. E Nossa Senhora e Kun Iam olhando-se de frente com um discreto sorriso.
Tudo isso, e muito mais, perdido ou em desagregação. Desagregação implicitamente confirmada por notícias esporádicas que os media me traziam, vagas e convencionais em caso de mais uma inauguração, deliciadamente pormenorizadas em tudo o que se referia às proezas do crime organizado e outras coisas sombrias.
Melhor não voltar, então. Mas voltei.
No entanto, sentia-me distanciado, sentia-me quase turista, suprema ignomínia para quem tivera um caso de amor com Macau.  Era um sentimento desconfortável.  A única justificação que encontrava para desculpar tanta frieza era dizer-me que esse amor, sejamos honestos e realistas, foi epidérmico, porque afinal de contas nunca lá vivi - de resto, nessa época a fonte do Lilau já estava contaminada ou seca, não sei bem, portanto nunca lhe bebi a água mágica. E depois, há certamente a prevista mudança para pior, sempre para pior, como é de regra no fado lusitano.
Este discurso mudo proferi-o eu, muito exactamente, junto à porta de embarque nº 24, no Aeroporto da Portela. Depois, a bordo, algures sobre o planeta, ouvi conversas e risos: dois jovens Chineses trocavam ideias e anedotas com duas senhoras. Eram, todos eles, professores. E as ideias e gracejos corriam em Português.
Muito mais tarde, com os olhos cansados e doridos, na fase inicial do jet lag, percorria de carro avenidas, ruas e largos, via confusamente coisas novas e ouvia confusamente os seus nomes, Arco do Oriente, Porta do Entendimento, Fonte Cibernética; e depois, mais tarde ainda, o Largo do Leal Senado, que afinal ainda lá estava, só que, parecia-me, mais bonito. Mas tudo amalgamado no meu cansaço e, sobretudo, nas cores, nas luzes e nos ruídos, a ponto de se fundir e se confundir, Porta do Arco e Oriente do Entendimento.
Sensação estranhamente familiar, esse atordoamento. Foi, afinal, como da primeira vez.
Aí, lembrei-me então daquela minha magnífica faculdade, ser o nabo-mor das previsões. Mas o verdadeiro choque foi, no dia seguinte, à luz do sol, a imprevista alegria de rever tudo aquilo, gente, casas, árvores, jardins, lojas que vira cinco anos antes. Incluindo, já se sabe, a Mariazinha.
Essa alegria íntima, repito, foi o verdadeiro choque, a verdadeira surpresa. A que se juntava uma espécie de orgulho (ridículo, porque em nada contribuí para isso) de ver algumas das coisas que vieram ao longo da mudança.
Onde já vou, Santo Deus. Vejo daqui o sorriso comiserado dos veteranos e compreendo-os. Sei, evidentemente, que muitos pontos negros me escapam nesta paisagem e penitencio-me pelo entusiasmo. Contudo, vou também pensando que há algo de bom nos olhos da ignorância, que são também os da inocência. Porque eles conseguem ver, ainda, o que os outros já deixaram de ver. E com os diabos, não chamem aquilo que chamam ao Arco do Oriente. O que teria  eu de chamar, então, ao novo horror que recentemente brotou no alto do Parque Eduardo VII, em Lisboa?
Final em forma de súplica: guardem, ao menos, um pouco da desordem. Um pouco do velho casario. Acabar com o lixo nas ruas é óptimo. Retirar o min eléctrico e clandestino é necessário, embora triste. Mas sacrificar a confusão das ruelas no altar da Imobiliária é matar a alma de Macau. E matar almas ou corpos sempre foi e sempre será um crime.

João Aguiar - Macau - 1997

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

OS QUE O CONHECIAM, DISSERAM... (Lisboa)


O escritor e jornalista João Aguiar deixou-nos a 3 de Junho, após batalhar durante mais de um ano com um cancro que o esgotou e deixou feridos todos os que com ele privaram. Para mim, pessoalmente, é uma perda irreparável. Fomos amigos durante quase 30 anos, partilhámos inúmeros projectos que se revelaram castelos de cartas (alguns desabaram sobre nós com toda a força). Era com ele que me aconselhava quando tinha dúvidas profissionais (e outras, por vezes). Por isso, o João Aguiar foi, de facto, o primeiro colaborador da SUPER e é justo que aqui o lembre. Consola-me que, além das homenagens ocas do costume (“uma perda para a literatura portuguesa”, etc.), tenha havido inúmeras pessoas a destacarem a sua dimensão ética, a sua educação. O João era monárquico mas, na realidade, atribuía mais importância à nobreza de carácter do que à do sangue. Nada mais apropriado, portanto, que Alice Vieira se lhe tenha referido como “um príncipe”, ou que Maria Lúcia Lepecki o tenha descrito como “um aristocrata”. Ficamos sós, mas com uma boa herança. C.M.
SUPER INTERESSANTE 147 - Julho 2010
J. Sousa - Óleo sobre tela 2008