sexta-feira, 24 de setembro de 2010

LEONOR, UMA DAS MUITAS MUSAS DO TIO JOÃO

Leonor no dia do seu baptizado 19-05-10
A Leonor Neves, foi a inspiração de um belíssimo poema,que o João fez quando do seu nascimento. Nunca, infelizmente, teve o prazer de a conhecer. Mas, em conversa dizia-me, "mas conheço a mãe, e como não pode ser diferente...."
Um dia talvez a mâe da Leonor me faculte esse poema,e eu terei muito gosto que conste neste cantinho do João
És muito bonita Leonor
Beijinhos do tio QUIM

VAMOS PARAR DURANTE 1 MÊS - REVER ALGUNS LOCAIS A "DOIS"

Momento de relaxamento que poucas vezes se podia dar a esse luxo!
Até daqui a um mês +-depois recomeço com outras coisas. Prometo! (aos amigos)

J. Sousa . Marina, óleo sobre tela. Colecção da Livraria Minerva - Coimbra

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

OS QUE O CONHECIAM, DISSERAM...


Morreu um dos homens mais bonitos da actualidade portuguesa. João Aguiar, escritor, jornalista e homem profundamente ligado à cultura e à História, seguiu o caminho de volta às estrelas depois de um período de doença que serviu – e quase sempre é assim para os corajosos de alma – de balanço consciente das vivências e sentimentos.


Uma das últimas conversas versou sobre o tema da meditação, das suas vantagens e dos seus efeitos imediatos e a médio prazo. Daquilo que o exercício do pensamento e da sua ausência pode trazer e qual o uso que lhe damos. Sem preconceitos e com a intuição a prevalecer, a liberdade de cada um e a consequente ligação aos demais sobressaiu como conclusão. Era ainda necessário apostar na educação dos mais pequenos, apoiando as emoções, permeabilizando a sua ligação ao intelecto. Nas visitas às várias escolas, o João trazia sempre o melhor dos garotos e era isso mesmo que ele tirava da vida: o melhor de todas as experiências!
E o melhor de si próprio, dizem muitos, era o seu sorriso. Não era uma condição meramente estética, diríamos nós, mas sobretudo o espelho de um homem franco que, por força desta autenticidade, não desbaratava um sorriso. Quando o oferecia ele vinha carregado com um olhar cativante, tal qual uma porta que permite a entrada dos outros e saída de si próprio.
É exactamente assim, João, que te vamos recordar: corajoso na dádiva e disponível no receber!

Por Paula Ferreira



J. Sousa - "Vento"  Óleo sobre tela - Colecção Particular

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Murmúrio I - Acrílico sobre tela - 81x65 - 2006
J.Sousa

O ROMANCE HISTÓRICO
(2001)
 A primeira questão que se põe é: que romance histórico? Porque há vários tipos de romances históricos. Um deles, por exemplo, é o romance essencialmente «comercial», quase (ou mesmo) de produção em série, em que o enquadramento histórico é acima de tudo um condimento, ou um argumento de venda, por corresponder a um certo gosto do público; e em que, no fundo, não há uma real diferença qualitativa entre enquadramento histórico e enquadramento «romântico» ou policial. O chamado «romance de capa e espada» (hoje fora de moda) é disso um bom exemplo, se bem que não o único.

Devo fazer aqui um esclarecimento importante. Esta menção a um «género comercial» é puramente objectiva, isto é: não é crítica e ainda menos pejorativa. Na realidade, a grande distinção, a distinção importante que deve ser feita é a que existe entre bons e maus romances, bem escritos ou mal escritos, bem arquitectados ou mal arquitectados.
E há vários casos de boa qualidade literária em romances deste género. Cito um, aliás pouco conhecido em Portugal: o de Robert van Gulik, que escreveu toda uma série de romances em que, muito habilmente, combina um enquadramento histórico — a China do séc. VII d.C. — com a trama policial. O seu herói é o Juiz Ti Jen-tsé, que, aliás, existiu. [outros exemplos na exposição oral: Ellis Peters (Idade Média, com o irmão Cadfael); em ambos os casos, séries. E um mais ilustre: Umberto Eco, Nome da Rosa].
Note-se que vejo grandes méritos neste tipo de romance, para além do seu valor ficcional: pela evocação que faz de outros tempos, outros valores, outras tradições; pelo facto de abrir os horizontes do leitor. Como vejo iguais méritos nas biografias romanceadas de grandes figuras históricas
Esses tipos de romance histórico: a biografia e a trama historicamente enquadrada, sentimental ou policial ou outra, em que as personagens e, por vezes, os próprios acontecimentos históricos pouco ou nada intervêm afinal, não têm grandes tradições no nosso País.
Mas penso que podemos falar, com propriedade, de um romance histórico português, não isento, claro está, de fortes influências exteriores, porém com traços que lhe são próprios. Evidentemente, o que apresento a seguir é uma interpretação, ou uma leitura, subjectiva e como tal passível de contestação.

1 - Assim, penso ser legítimo dizer que, seja inconscientemente, seja de forma deliberada, há no nosso romance histórico uma intencionalidade. Por outras palavras, ele não é «inocente».
Essa intencionalidade refere-se a uma chamada da atenção dos leitores para a nossa identidade como Portugueses. Não se trata necessariamente de formular uma tese ou de enunciar doutrina, mas antes de, através do poder da evocação, relembrar o que fomos, a nossa consistência e as nossas raízes. Note-se que tal evocação não é forçosamente nacionalista ou de exaltação patriótica; ela pode ser até, eventualmente, crítica. Mas, de qualquer modo, parece-me haver, na maioria dos casos, e mesmo nos casos em que se critica ou «denuncia», essa intenção de evocar um pouco do que fomos, enquanto povo e enquanto país. Para que, simplesmente, o não esqueçamos ou mesmo para compreendermos melhor o que hoje somos [exemplos: Herculano: Monge, Eurico, Bobo, Lendas; Garrett: Arco Sant’Ana e peças; o próprio Eça, Ramires e contos; Saramago, etc.].

2 - Daqui decorre, para mim, uma exigência: a de um maior cuidado na pesquisa, na tentativa da recriação de ambientes e mentalidades e também na apresentação dos factos históricos.

3 - Finalmente, e, de certo modo, como elemento... «comprovativo» — perdoe-se-me a ousadia — desta minha opinião, notemos que a temática do romance histórico português é, na sua quase totalidade, uma temática portuguesa ou ligada a Portugal. Ora, o romance histórico não tem de se circunscrever às origens do seu autor: Flaubert deixou-se fascinar pela antiga Cartago em Salambô, Gore Vidal evocou o Império Romano com Julian e entrou nos domínios do Império Persa e do Império Chinês em Criação... (Mary Renault — Grécia); mas os autores portugueses, quando escolhem o género histórico, tendem a preferir a história portuguesa ou os períodos antecedentes que a ela se referem.

Devo assinalar agora as vozes discordantes que se levantam contra o romance histórico.
Como deveria ter sido a capa do romance
UMA DEUSA NA BRUMA
 Em primeiro lugar, há quem o considere um género «menor», a par do policial ou da espionagem. Devo dizer que não entendo muito bem o que seja um género menor; julgo que a menoridade ou a maioridade residem na qualidade intrínseca de cada obra e não no género em que ela se inclui ou em que, por vezes de modo arbitrário, a incluem. Curiosamente, esses que partilham tal opinião jamais se atrevem a negar a estatura maior de Alexandre Herculano, de Garrett, de Eça, enfim, dos nossos clássicos. É sobre os contemporâneos que o seu erudito desprezo se abate, como se mais ninguém estivesse autorizado a cultivar o género.
E há quem, pura e simplesmente, recuse o direito a «mexer com a História», quem recuse aos escritores o direito a colocar palavras inventadas na boca de personagens históricas, o direito a preencher com a sua imaginação as lacunas ou pontos mortos do nosso conhecimento dos factos passados.
Como se pode calcular, recuso absolutamente esta posição. Importa, sim, é não enganar o leitor, ou seja, não lhe oferecer gato por lebre, não lhe apresentar ficção como se fosse História. Importa é dar-lhe a possibilidade de distinguir entre os factos conhecidos — históricos — e a imaginação criativa do autor. Observados esses escrúpulos, o romance histórico é perfeitamente legítimo, culturalmente legítimo, como género.
Apesar de constituir um género — tanto quanto, neste domínio, é possível estabelecer classificações e caracterizações que nunca são nem podem ser rígidas — o romance histórico é, antes de mais, um romance. Isto parecerá uma redundância. Mas convém ter presente o «gosto pelo esotérico» (no sentido, popular e aliás impróprio, de «inacessível») que reina em certos sectores da intelectualidade, sectores onde ao romance se exige que contenha obrigatoriamente todo um sistema filosófico e que submeta o leitor às mais duras provas de leitura e de interpretação, lançando-se para a vala comum dos «comerciais» e, mais insultuoso ainda, dos «menores», todas as obras que não correspondam a essa rígida exigência.
Contra esta atitude, eu defendo que um romance, histórico ou não, pode evidentemente conter sistemas filosóficos inteiros ou as mais profundas especulações — e, com tudo isso, ser um excelente ou genial romance; porém essa não é a sua essência e não é a sua função primeira.
Um romance é uma narrativa de ficção, geralmente em prosa. E quem narra, narra alguma coisa — regra geral, no caso da ficção, uma história. A história pode perfeitamente ser secundarizada pela análise psicológica, pela força das personagens, pela crítica de costumes, etc. Porém a narrativa tem de ser bem estruturada, as personagens devem ter vida, o leitor deve ser envolvido, seduzido, tornado cúmplice, participar. Essa deve ser, penso eu, a primeira preocupação de quem escreve. Um romance histórico não foge, ou não deve fugir, a esta regra. Antes de ser histórico, há-de ser romance. De outra maneira, bem mais valerá um ensaio ou uma dissertação ou uma palestra. Que, se bem escritos, poderão até conseguir perfeitamente essa sedução do leitor — ou do ouvinte — a que acabo de referir-me.
Mas, enquanto romance histórico, ele tem, ou pode ter, a virtude de despertar o interesse do público pela História, o que considero extremamente importante, se não mesmo vital, no momento presente.
O termo romance histórico contém duas referências essenciais: a Literatura e a História. Elas constituirão, talvez, a única arma possível contra alguns perigos graves que hoje ameaçam a nossa sociedade: a massificação total, uma nova forma de servidão e uma nova forma de embrutecimento.
Não tenhamos ilusões: uma nova Idade das Trevas bate-nos à porta. E merecerá esse nome muito mais do que o período que antecedeu a Idade Média ocidental — para já não falar da própria Idade Média, que foi, afinal, extremamente rica e fértil em termos culturais e espirituais.
Basta observar — o que é fácil, dada a omnipresença e a omnipotência da comunicação social e, sobretudo, dos meios audiovisuais — o progressivo e galopante abastardamento da língua portuguesa e o sentido descendente da cultura geral que se verifica nas mais diversas camadas da população.
Os meios de comunicação são cada vez mais acessíveis e eficazes, mas comunicam cada vez menos. O acesso à educação está hoje generalizado e esse era um passo absolutamente essencial, após a Revolução de 25 de Abril. Mas — que educação estamos nós a generalizar? Quando um ao menos razoável domínio da nossa língua (a língua, esse factor essencial, já não direi até de cultura, mas de identidade, de qualidade humana e, enfim, de vida) escapa, até, a membros de classes profissionais como médicos, advogados, e, em alguns casos, professores e ministros? Quando as nossas referências culturais mais importantes estão esquecidas ou são desconhecidas da maior parte da população? Quando, alegremente, vamos formando engenheiros, advogados, médicos, gestores que, em termos de Humanidades, são virtualmente analfabetos?
A História e a Língua e Literatura, pelas potencialidades que encerram, pelo apetrechamento cultural, mental, espiritual que proporcionam, são talvez o único antídoto ante o avanço desta literacia analfabeta e desta cultura com aspas que nos ameaçam. Ameaçam a nossa identidade e também a nossa própria sociedade.
Não há exagero. O empresário e o gestor que só lêem as publicações anuais do relatório e contas da sua empresa e os livros de formação profissional do seu ofício (além, evidentemente, da indispensável informação futebolística), o empresário e o gestor para quem a literatura não existe e a História ainda menos, são também, por excelência, os tipos de empresário e de gestor para quem o pessoal, o indivíduo, é mera unidade de trabalho, contratável e dispensável segundo as exigências da conjuntura — e também segundo as exigências do preço do carro de luxo que ele pretenda comprar. É esta, cada vez mais, a atitude predominante na sociedade ocidental e atrevo-me a sugerir que uma das razões deste regresso a um hiper-liberalismo económico, à sombra do qual o Estado abdica das suas responsabilidades, se encontra justamente na ignorância histórica. São ainda conhecidas, porque recentes, as consequências negativas do excesso de intervencionismo estatal, mas são já ignoradas as consequências igualmente negativas dos excessos do liberalismo económico. E assim estamos a voltar à selva — não, muito pior; porque na «selva» há a solidariedade tribal.

É sobre estas notas que pretendo acabar a minha intervenção: sobre o papel que a Literatura pode desempenhar na abertura, na modelação, na civilização dos espíritos. E sobre o papel que a História pode desempenhar na compreensão das realidades contemporâneas. Um papel libertador, direi mesmo; porque um eleitorado dotado de consciência histórica e de um razoável mínimo de conhecimentos históricos é um eleitorado muito menos vulnerável à massificação, ao arrebanhamento, aos modismos, às persuasões da propaganda insidiosa, às seduções de eventuais «salvadores da Pátria»; menos vulnerável à manipulação e mais capaz de dar os seus apoios, as suas afeições e as suas recusas de modo consciente, maduro, em acordo com o pensamento individual dos indivíduos que o constituem — e não exclusivamente segundo o pensamento e os objectivos dos directores de campanha, seja de propaganda seja de publicidade. Em suma, será um eleitorado que se afastará saudavelmente dos cães de Pavlov (...). Muito ao contrário do que vai acontecendo no momento presente.

 João Aguiar

Murmúrio II - Acrílico sobre tela - 81x65 - 2006 - J.Sousa

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

  J. Sousa - Sem nome - óleo sobre tela 70x70


Não tenho tempo.
Não tenho jeito.
Não conheço a pessoa.
Nada posso fazer para ajudar.

Isto diz-se quando se desvia o olhar. Quando se recusa a mão.

Não tenho coragem.
Não vale a pena.
Não resulta.
Ninguém se interessa.

Isto diz-se quando se desiste.Quando se baixa os braços, aceitando a solidão como sentença.

Só palavras. Só desculpas.

Avança, estende a mão, ergue a cabeça.
Não esperes mansamente que o degelo venha.
 João Aguiar

domingo, 19 de setembro de 2010

TUDO O QUE ME VEM À CABEÇA

Este espaço é dedicado à memória de JOÃO AGUIAR.
Eu não sei escrever para os outros , por isso limito-me ao menos possível.
Vamos tentar publicar inéditos, sempre que houver razão para isso.

O que é que o João pensava sobre a LITERATURA.



TUDO O QUE ME VEM À CABEÇA SOBRE LITERATURA

O título desta intervenção é demasiado ambicioso. Estou certo de que, quando terminar e sair daqui, hei-de (ainda hoje, ou amanhã, ou dentro de dois dias) dar a clássica palmada na testa e exclamar: «Esqueci-me de...»
E estou igualmente certo de que, entre a assistência, não faltará quem diga, no final: «Mas então, foi só isto o que lhe veio à cabeça sobre literatura?» E, logo de seguida, virá uma lista, quiçá longa, de temas, subtemas e aspectos essenciais — e omissos.
Mas esta é a falibilidade da natureza humana — falibilidade cuja extensão devemos, todos nós, ter sempre presente. Digamos, portanto, que o título, se corrigido e reduzido à honesta expressão da sua realidade, deveria ser: «Tudo o que me veio à cabeça sobre literatura enquanto eu escrevia isto».
É certamente menos elegante, porém mais exacto.

(I — A LINGUAGEM)

Falando de literatura, o que me vem à cabeça, antes de mais, é a linguagem. Porque, evidentemente, ela é, ao mesmo tempo, o primeiro suporte da literatura e uma das suas três matérias-primas, a par da imaginação e do conhecimento.
É importante, aliás, ter bem presente o valor da linguagem, porque está a desenvolver-se entre nós uma perigosa tendência para a sua subalternização e o seu abastardamento, tendência que podemos talvez expressar nesta frase-chave, que é também uma frase-chavão: «O que é preciso é que a gente se entenda». Que tem como variante: «o que é preciso é fazer passar a mensagem». Independentemente da sua forma, clareza, elegância e correcção.
Esta tendência parece-me tanto mais perigosa quanto é certo que não se confina aos escolares mais jovens, torturados pela Gramática. Ela subiu, como trepadeira ruim, ao mundo académico e foi-me até dito que orienta a pedagogia de certos cursos de Comunicação.
Note-se que não menosprezo — bem pelo contrário — o valor da compreensão e do conhecimento intuitivos, da experiência espiritual a que se dá geralmente o nome de iluminação, em que a realidade não pode ser expressa, apenas sentida. Esse é, porém, um domínio muito específico; e, de qualquer modo, o caminho que a ele conduz necessita, também, da linguagem. Porque o nosso intelecto e os nossos processos de raciocínio estão relacionados com a palavra e essa relação é tão íntima que dela não podem ser dissociados; ora, afigura-se-me que até para chegar à intuição pura e à iluminação, é necessário, pelo menos, adquirir certos conhecimentos pelo estudo, pela via racional — portanto, pela linguagem.
Um outro chavão diz-nos que «uma imagem vale mais que mil palavras». É uma afirmação inexacta e também perigosa. Inexacta porque são numerosos os casos em que a imagem pouco ou nada significa sem uma explicação; perigosa porque tende a conferir à imagem um valor documental irresistível, quando se sabe que ela pode ser falsificada e, quando apresentada fora do seu contexto circunstancial, pode até insinuar o oposto desse mesmo contexto. Perigosa, ainda, porque representa uma simplificação muito redutora.
Consideremos, pois, a linguagem. Permito-me, agora, chamar a vossa atenção para uma frase do cientista canadiano Hubert Reeves, doutorado em astrofísica nuclear, professor de física, consultor científico da NASA, etc., etc.:
«A Natureza está estruturada como uma linguagem».
Mesmo alguém desprovido da mínima preparação científica — estou a falar de mim, por exemplo — pode entender isto. O paralelismo é ainda mais expressivo quando se considera a linguagem escrita: cada letra é, digamos, um átomo e a combinação de diferentes átomos forma conjuntos sucessivamente mais complexos: palavras, frases, parágrafos, discursos, livros inteiros. Mas o paralelismo continua válido se, em vez das letras, considerarmos os sons que compõem as palavras.
Terá também algum interesse evocar, ainda que muito brevemente, a tradição religiosa. A afirmação de Hubert Reeves: «A Natureza está estruturada como uma linguagem»... parece, quase diria, uma paráfrase do início do Evangelho segundo S. João: «Ao princípio já existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava, no princípio, com Deus. Tudo começou a existir por meio d’Ele». E não é este o único exemplo do valor atribuído à Palavra nas tradições religiosas. É como se a Física e a tradição religiosa dissessem o mesmo usando discursos diferentes.
Enfim: a linguagem, com a sua riqueza, as suas tonalidades, as suas subtilezas, é, digamos, a expressão, o molde particular da cultura de um povo.
E o que estamos nós a fazer com ela, com a linguagem?
Eis alguns exemplos:
— Ha-dem cá vir, ha-dem cá vir.
— O Governo poribe esta prática.
— O processo foi despoletado.
— Um hotel rodeado por áreas de laser.
— A espada e o crisantêmo.
Estas expressões foram proferidas, nos últimos anos, por ministros, jornalistas, locutores de televisão e outros senhores importantes. E poderia continuar, alongar a lista quase ao infinito.
Seja-me permitida uma referência mais pormenorizada ao verbo «despoletar», porque ele constitui uma epifania da asneira. O termo não consta, sequer, da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira nem do moderno e magnífico dicionário Novo Aurélio. Como neologismo, apenas poderia usar-se para exprimir o oposto de «espoletar», verbo que, esse sim, existe. Portanto, só poderia significar: o acto de retirar a espoleta a um engenho explosivo. Sendo a espoleta o dispositivo que faz deflagrar o dito engenho, segue-se que despoletar uma bomba significa torná-la inerte, incapaz de deflagrar; e, por extensão, despoletar um escândalo ou um processo tem de significar neutralização e não activação. E o escândalo, infelizmente não despoletado, reside em que o novíssimo dicionário da Academia das Ciências de Lisboa inclui este verbo — e veja-se a generosidade: concede-lhe os dois significados opostos: desactivar e armar ou deflagrar, em sentidos próprio e figurado. O que contribui singularmente para a clareza da nossa língua: «o que é preciso é que a gente se entenda».
Mas assim, ouso dizer, não vamos longe no entendimento.
Entretanto, além da ameaça do barbarismo, que acabo de ilustrar, defrontamos também a do desaparecimento, puro e simples, da nossa língua.
Permitam-me, a propósito, que faça uma citação extraída da carta-poema que António Ferreira (1528 — 1569) escreveu ao seu amigo Pêro de Andrade Caminha, censurando-lhe o uso frequente da língua castelhana:
Floresça, fale, cante, ouça-se e viva
a portuguesa língua, e já onde for
senhora vá de si soberba, e altiva.
Se até aqui esteve baixa, e sem louvor,
culpa é dos que a mal exercitaram,
esquecimento nosso e desamor.
É um texto notável, mas não, propriamente, pelo significado que teria na época. Julgo não errar se disser que o Castelhano jamais «ameaçou» seriamente o Português. É certo que vários autores portugueses (o caso mais conhecido é o de Gil Vicente) escreviam frequentemente nas duas línguas, porém isso deve-se, não propriamente, a um declínio do Português, mas antes a uma certa noção de «inter-culturalidade», um fundo patrimonial comum a todas as Espanhas que não punha em causa as diversidades nacionais, tanto culturais como políticas: era um fenómeno comparável, de certo modo, ao do uso do galego-português pelos poetas medievais castelhanos e leoneses.
Esta noção de legado comum viria a ser destruída por via militar e política, em consequência da forçada união de coroas operada em 1580, que em Portugal trouxe, como reacção natural, a recusa de tal legado após a restauração da coroa portuguesa em 1640. De qualquer modo, não me parece que, antes ou depois da Restauração, o Português estivesse em verdadeiro risco; é certo que entre 1580 e 1640 vários escritores portugueses escreveram obras em castelhano, mas é também durante este período que é composta a parte mais importante da Monarquia Lusitana (por Bernardo de Brito e António Brandão) e que Frei Luís de Sousa publica a Vida de Frei Bartolomeu dos Mártires. Isto para dar apenas dois exemplos.
Porém os versos de António Ferreira são notáveis, porque proféticos, quando referem as culpas dos que mal exercitaram a língua portuguesa e também o esquecimento nosso e desamor. Ele não sabia, certamente, que se enganara no século: não era sobre o século XVI que escrevia, e sim sobre o nosso, em que a língua é diariamente torturada e também violada: refiro-me à introdução de corpos estranhos no seu corpo.
Lembro-me daquele jovem e brilhante gestor de empresa a quem há tempos eu explicava que, por vezes, quando tinha entre mãos trabalhos simultâneos, alternava a sua execução para descansar a cabeça; ao ouvir-me, ele comentou: «Compreendo muito bem: você faz o shift...».
Aí está: eu fazia o shift. É muito elegante, muito cosmopolita. Pela mesma razão, Portugal está hoje salpicadíssimo de Shoppings em vez de ter centros comerciais; pela mesma razão, uma gasolineira dotou em tempos os seus postos de venda com um cómodo e prático sistema de Self-Serve, expressão que, além de ser mais distinta do que um vulgar «auto-serviço», tem ainda a particular virtude de não fazer o mínimo sentido nem em Português nem em Inglês. E ainda pela mesma razão, scanamos textos para os meter em computador. Admirável verbo este, scanar: só lhe falta mais um A para ser verdade.
Atente-se que não sou purista, nem contra o neologismo. Afinal, ele é o sangue novo de que um idioma necessita. O neologismo, porém, há-de ter uma lógica e uma justificação e há-de, sobretudo, ser o resultado de uma assimilação. Fazer o shift, elaborar apenas a síntese da asneira — mesmo em sistema de self-serve — não é introduzir verdadeiros neologismos. Ou, pelo menos, não é introduzi-los de forma escorreita e aceitável.
Há aqui uma boa dose de incultura, que é o mais importante factor de vulnerabilidade e fragilidade de uma língua. Mas há também, e sobretudo, um grande desamor. O que é particularmente grave, porque — sobretudo num povo como o português — na língua reside boa parte da identidade. Desamor à língua é desamor a nós mesmos.
Será esta situação desesperada? Espero, ainda, que não. Por um lado, Portugal tem hoje uma literatura de excelente qualidade (esta não é, evidentemente, uma referência a mim próprio), além do que, em muitas escolas, faz-se um esforço constante para incentivar os jovens a ler; um esforço que, note-se, é cuidadosamente desencorajado pelo Ministério da tutela. Por outro lado, se não deposito esperança alguma no Ministério, tenho grandes esperanças no vasto espaço exterior a Portugal onde se fala e escreve Português e onde, para além da literatura brasileira, que há muito tem os seus títulos de nobreza, outras literaturas, bem vivas, se desenvolvem.
Por isso, não me arvoro em profeta de desgraças. Tenho, no entanto, a consciência plena de que a nossa língua é um tesouro em perigo, um tesouro a defender.
Por isso me recuso a fazer o shift.



(II — A PALAVRA ESCRITA)

Vem-me agora à cabeça... o valor, a força da palavra escrita, em confronto com a palavra oral.
Não nego o valor desta última — e por razões óbvias: se o negasse, o que estaria eu a fazer aqui, neste momento? Se o negasse, como olharia eu para alguns dos mais preciosos tesouros literários da humanidade?
Feita esta importante ressalva, direi agora que julgo ser ocioso tentar demonstrar o valor da palavra escrita. Mas não será ocioso recordá-lo, porque se instala na nossa sociedade uma outra tendência, a par daquela que menospreza a língua que falamos: é a tendência a considerar que ler é uma chatice e que se aprende melhor ouvindo e vendo imagens divertidas.
Ou seja, tende-se a destruir a complementaridade da escrita e do suporte audiovisual para impor, quase exclusivamente, este último.
Para ilustrar tal afirmação, regresso por breves momentos ao sacrossanto mundo empresarial, onde, segundo querem (inutilmente) convencer-me, se passam todas as coisas que são importantes neste mundo. Há uns anos atrás, fiz um trabalho de tradução para uma empresa especializada na formação de executivos e gestores. Era, já se vê, uma empresa de filiação e inspiração americanas, cujo cérebro supremo, também obviamente americano, difundia o seu saber em todo o planeta por intermédio de cassetes vídeo.
Por imposição da tarefa que estava a executar, vi muitas dessas cassetes. E recordo-me de uma sugestão, quase uma ordem, que ele dava aos formandos: se você quer progredir, tornar-se mais eficiente, vencer na vida, não perca à toa um único segundo do seu tempo livre: por exemplo, enquanto vai no seu carro, de casa para o trabalho e do trabalho para casa, meta no reprodutor de áudio uma cassete de formação e assim estará a ganhar tempo e a aperfeiçoar-se constantemente. Quem não faz isto, quem prefere ouvir música, é melhor que mude de profissão e nunca vencerá na vida...
A anedota termina aqui. Para a justificar, tenho a fazer uma insinuação e dois comentários.
A insinuação: suponho que a firma em questão também produzia e vendia as cassetes áudio que eram tão insistentemente recomendadas.
Quanto aos comentários: o primeiro é que considero altamente duvidosa a eficácia de um ensino baseado em palestras gravadas em vídeo — palestras que, de resto, eram eminentemente primárias e, perdoem-me outra vez a vulgaridade, esmagadoramente chatas. O segundo é que querer obrigar alguém a ouvir cursos de formação, em vez de música, enquanto vai no carro, a caminho de casa, não passa de uma monstruosidade. Quem a comete, com uma insistência que se aproxima da lavagem cerebral, deveria, num mundo mais justo e perfeito, ser enviado para uma Sibéria espiritual, fazendo aí companhia àqueles que dizem «hadem cá vir», «o Governo poribe» e «crisantêmo».
Mas tudo isto não passa, como disse, de ilustração. O que interessa considerar é, repito, o valor da palavra escrita e a sua força. Fala-se muitas vezes no enorme poder da televisão. Esse poder é incontestável e é colossal; mas repare-se que é também extraordinariamente efémero. Dura o tempo de uma rosa. Salvo casos muito excepcionais, quem se lembra, hoje, do que viu na televisão há duas semanas?
Por outro lado, esse mesmo poder tende a anular-se a si próprio, parcialmente, por vias do excesso de informação veiculada. Além disso, as suas mensagens são, por via de regra, incompletas, imperfeitas e não raro, por essa mesma razão, distorcidas. Para usar termos simples e chãos: não há nada que substitua a possibilidade de voltar atrás quando e como se quer, para reler, absorver e meditar a matéria já lida. E nisto, a palavra escrita é imbatível.





(A TRADIÇÃO LITERÁRIA)

Passo agora — e já não é sem tempo... — à literatura propriamente dita: a aplicação da palavra (geralmente escrita, hoje em dia) à criação de obras que são fruto do conhecimento e da imaginação.
Aqui, convém que nos entendamos sobre o vocábulo.
O termo «literatura» é, como se sabe, usado com várias tonalidades, em sentidos por vezes muito diferentes: de facto, não há, ouso esperar, semelhanças entre um livro meu e um manual para o uso de uma batedeira eléctrica ou as instruções impressas que acompanham os medicamentos e a que se chama também, vá-se lá saber porquê, «literatura».
Por outro lado, nunca me abalancei a escrever um ensaio filosófico nem um tratado de História — e ambos estes exemplos merecem, muito obviamente, ser classificados como obras literárias.
Portanto, e embora tenha a plena consciência de que, neste domínio, os compartimentos nunca são estanques, vou referir-me, essencialmente, à narrativa.
Vista sob este aspecto, a literatura moderna é a herdeira, longínqua no tempo mas não tanto na essência, de uma nobre, uma magnífica tradição milenar, que, em certos casos, foi essencialmente oral — refiro-me, sobretudo, aos poemas homéricos, que foram compostos oralmente, e assim transmitidos, e só muito posteriormente passados a escrito. Mas essa grande tradição abrange outras obras, como o Mahâbhârata hindu, que inclui o célebre Bhagavad-Gita, a Epopeia de Gilgamesh, que nos foi legada pela Babilónia, e, evidentemente, a Bíblia.
É esta a primeira reflexão que me ocorre a propósito da literatura narrativa: além de ser herdeira dessa tradição — mesmo que a herança possa ser renegada por este ou aquele autor — ela é a sua consequência.

(A FICÇÃO ESCRITA)

Uma outra reflexão, que está intimamente ligada à anterior, prende-se com a grande tradição dos contadores de histórias.
Os contadores de histórias: os homens em volta de quem o povo se reunia, fosse numa casa, ou numa clareira, ou, mais tarde, no largo principal da aldeia, ou no adro da igreja, ou junto de uma escada ou de uma fonte, ou à sombra de uma árvore.
Esta tradição do contador de histórias não é a minha única filiação literária, mas é certamente  importante, porque, para mim, escrever um romance é, antes de mais, contar uma história. E o que fazia — ou melhor, o que faz — um contador de histórias?
Em primeiro lugar, ele abre uma brecha no fluir do tempo. Enquanto está junto do ouvinte, ou do leitor, ele integra-o num tempo diferente, que é o tempo da sua história, um tempo virtual.
Ora, eu penso que uma das necessidades básicas do homem, uma daquelas que vêm logo a seguir à respiração e à alimentação, é ter disponível esse tempo virtual e poder viver nele durante certos períodos da sua existência, períodos que quebram o ritmo e a rotina do quotidiano.
Muito brevemente, e só como exemplo, refiro um célebre romance de cavalaria chamado Amadis de Gaula, que em Portugal fascinou gerações inteiras, durante mais de um século. Conta um autor, julgo que do século XVI, e escrevendo sobre a sua época, que um dia um homem entrou em sua casa e encontrou toda a família, e o pessoal doméstico, a chorar diante de um livro. Inquiriu, naturalmente, sobre o que se passava e alguém lhe explicou então a causa do choro: «Morreu Amadis!».
Acontecera que estavam todos a ouvir o romance, lido em voz alta, e a história tinha chegado ao ponto em que se julgava que o herói morria. Daí o pranto generalizado.
Devo dizer que, quando li o Amadis de Gaula — andava ainda no liceu — não chorei ao ler essa passagem, nem outra qualquer. Mas não é menos verdade que me senti profundamente emocionado e envolvido quando li o De Profundis de José Cardoso Pires, A Paixão segundo Constança H de Maria Teresa Horta ou O Doente Inglês de Michael Ondaatje. Para dar, apenas, alguns exemplos.
Este envolvimento é uma necessidade humana que não pode ser iludida. Se tentarmos recusar às pessoas a satisfação dessa necessidade, elas irão à sua procura. Se não lhes dermos boas histórias, boas e bem escritas, que as maravilhem e que as envolvam, que as emocionem, elas irão maravilhar-se e emocionar-se com histórias más e mal escritas. Mas nunca deixarão de tentar, por esta via, transcender a satisfação das outras necessidades, de ordem material.
Este é, pois, um efeito que o contador de histórias deve exercer sobre o seu público: o envolvimento na realidade virtual da história. A capacidade de maravilhar, de levar o leitor a acompanhar os heróis, a rir, a emocionar-se, a sofrer com eles, a respirar com eles, a reflectir sobre a circunstância em que se movem e são retratados (e note-se que não estou a falar, de modo algum, do interesse epidérmico, passageiro, quase sonolento, suscitado por uma telenovela — cortada, ainda por cima, por intermináveis intervalos publicitários — e menos ainda por uma dessas coisas a que se chama, em bom vernáculo, reality show).
Neste sentido, eu assumo a tradição do contador de histórias. E assim, procuro encantar os leitores, levá-los a cortar temporariamente com o mundo que os rodeia, atraí-los de modo a que tenham de me acompanhar. E o que é isto, o que é tudo isto, se não um acto de sedução?
Aqui chegamos ao que, para mim, é, sempre foi e continuará a ser uma noção básica: a escrita é um exercício de sedução.
Mas a sedução não é tudo.
Há algo que a ficção escrita realiza e que raras vezes é conseguido pela ficção audiovisual. Falo do despertar, ou do catalisar da imaginação do leitor.
Veja-se: eu escrevo um romance; mas quando o livro chega às mãos dos leitores, o romance multiplica-se, tantas vezes quantas as pessoas que lerem o livro. Ninguém verá exactamente o que eu vi, ninguém imaginará exactamente o que eu imaginei. Cada leitor irá construindo novas imagens. E, se eu tiver escrito um bom romance, cada leitor irá repensá-lo comigo, escolherá as suas personagens favoritas, não necessariamente as minhas. E surge, entre ele e eu, uma espécie de intimidade e uma espécie de cumplicidade. Acima de tudo, ele não estará meramente passivo. A sua imaginação, a sua criatividade estarão despertas e activas. O que é muito importante, mormente num mundo cada vez mais normalizado e padronizado, um mundo onde, no domínio da ficção televisiva, nomeadamente na comédia, se intercala a gargalhada, quantas vezes em pré-gravação, para que o espectador, apatizado, bovinizado, saiba que aquilo é para ter graça e portanto ele pode e deve rir. Não desesperemos de ver a mesma técnica aplicada ao pranto, ao grito de horror, às exclamações de indignação.

(PARA ALÉM DO ENREDO)

Falei da tradição dos contadores de histórias e da sedução do leitor.
Ao longo dos meus quatro primeiros livros — três romances e um livro de contos — julguei, com alguma ingenuidade, que isto me bastava. Mais: com igual ingenuidade, quase me convenci de que, nesses primeiros livros, me limitara a tentar o exercício da sedução.
Não era verdade, porém só mais tarde me apercebi desse facto.
Mesmo abstraindo de textos essencialmente religiosos como a Bíblia, ou o Bhagavad-Gita, ou Gilgamesh, até os grandes contadores de histórias do passado, ao compor ou transmitir as suas narrativas, iam muito além da simples história. Eles transmitiam, de geração em geração, os grandes mitos — e nunca será de mais salientar a importância do mito, não no sentido de «história inventada», mas naquele, definido por Mircea Eliade, de história sagrada, de história exemplar, de algo que ocorreu num tempo primordial e que é significativo. Ou, quando o não faziam, enunciavam padrões de comportamento, ideais e  modelos éticos — como foi o caso dos romances de cavalaria, incluindo o já citado Amadis de Gaula. E enfim, ainda que não deliberadamente, retratavam por vezes a própria sociedade em que estavam integrados.
Quer isto dizer que mesmo os contadores de histórias não se limitavam à história, ao encadear dos factos, àquilo a que chamamos o enredo. Nas suas histórias, encontramos algo mais do que a história.
Chegamos, pois, à «mensagem», embora, pessoalmente, no meu caso, eu não goste muito do termo, porque me parece algo pretensioso e porque, para mim, seduzir não é converter e ainda menos manipular.
Porém, é evidente que não tardei a dar-me conta de que é difícil (nem parece que seja desejável) escrever um romance sem transmitir ao leitor algo mais do que a história, as personagens e o meio em que elas actuam. Sem lhe transmitir, ainda que indirectamente, as nossas próprias reflexões sobre a vida, o mundo, os homens, Deus — enfim, sem lhe revelar uma parte do universo íntimo do próprio autor.
Não penso nestes elementos do romance propriamente como mensagens, no sentido que se costuma dar ao termo. Prefiro falar em simples confidências, de escritor para leitor, ao abrigo da cumplicidade já referida. E prefiro falar em sugestões e sobretudo em desafios ao raciocínio e à sensibilidade do leitor. Não são verdades sagradas a que eu quero convertê-lo. São ideias lançadas para que ele, se quiser (e a isso não é obrigado), pense; e pensando, se quiser (a isso também não é obrigado), tire conclusões por e para si próprio. Ou melhor ainda, siga o curso dessas ideias; ou melhor ainda, encontre novos cursos para essas ideias.
Este «algo mais», que está para além do enredo, varia muito na sua essência mas, em qualquer caso, pode dar à obra uma solidez maior, um interesse acrescido, uma dimensão diferente. Ao contrário de certos altos espíritos intelectuais, não irei ao ponto de dizer que esse elemento é imprescindível para que se possa falar de verdadeira literatura, porque isso roubaria possivelmente à verdadeira literatura alguns livros de grande qualidade e porque, tal como referi atrás, penso que a simples evasão para um outro tempo é uma verdadeira e legítima função literária. No entanto, perante uma recente vaga de literatura light, que está ainda a espraiar-se, tenho de admitir o quanto é desejável que o escritor, nas suas obras de ficção, tenha mais para dizer, além das vicissitudes das suas personagens.
Foi de propósito que usei o termo light. Fi-lo para indicar a origem geográfica e cultural dessa atitude — e chamo-lhe atitude, mental e cultural, porque light (não, nunca, no sentido de «luz»; sempre no sentido de «ligeiro» e, por extensão, falho de profundidade) light, dizia, aplica-se não apenas às coca-colas, manteigas e batatas fritas dietéticas, mas também a processos de raciocínio, alcance de estudos, bagagem cultural, formas de sentir e relações humanas.
A literatura light tem o mérito de conquistar leitores num país onde continua a haver tão poucos. Em contrapartida, carrega em si o risco de se impor como única meta, como ponto de chegada e não de partida. Muito francamente, não desejo um destino light às novas gerações.


(OS GÉNEROS)


Curiosamente, verifica-se que, em certos meios que se pretendem — saliento este «pretendem», que tem um sentido claramente dubitativo — altamente intelectuais, esta literatura light é associada a géneros de ficção que nos deram já obras de alta qualidade. É o caso do chamado romance histórico — e, uma vez mais, não estou a referir-me a qualquer dos quatros livros meus que se podem integrar nesse género.
O romance histórico, em Portugal, parece estar hoje relativamente mal visto. Sobre isto, apenas me permito observar que depois de Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, ou de Juliano e A Criação, de Gore Vidal — e estes são apenas alguns exemplos — parece-me difícil, no mínimo, relegar este género de ficção para a categoria de uma espécie «menor» sem fazer uma triste figura intelectual.
E faz-se, além disso, uma certa confusão. Com efeito, julgo não errar se disser que um romance histórico não é apenas uma obra de ficção cuja acção decorre num momento passado. Agatha Christie escreveu um romance policial cuja acção decorre no Egipto faraónico e essa obra não é histórica mas sim policial (um outro género tendencialmente menosprezado, aliás). Uma história de amor que se passa no século XII não constituirá necessariamente um romance histórico. Para o ser plenamente, deverá procurar retratar ou evocar factos, personagens ou situações (sociais, políticas, mentais) dessa determinada época histórica.
Mas devo confessar que considero esta divisão em géneros uma construção artificial que tem muito de absurdo: romance histórico; romance policial; romance gay (outro termo de origem conhecida, tal como light); romance de espionagem; o que é que isso quer dizer?
Nada.
O que há é bons e maus romances; boa e má literatura, ou, mais precisamente, literatura e arremedos literários. A grande, a válida distinção é essa. Por mim, não reconheço outra.

(PAPEL DA LITERATURA)


Agora, uma derradeira coisa que me vem à cabeça. Mesmo tendo em conta o que já disse quanto à função da literatura, quanto às necessidades humanas que ela ajuda a satisfazer, consideremos a seguinte questão: numa sociedade dominada e condicionada pela comunicação informática e pela imagem, terá a literatura algum outro papel a desempenhar?
Sem que no meu raciocínio entre a mínima parcela de interesse próprio, eu penso, muito sinceramente, que sim.
Ela é uma das poucas armas que nos restam para lutarmos contra a nova Idade das Trevas que nos bate à porta. E — porque ainda subsistem muitas confusões a esse respeito — devo esclarecer que ao falar em nova Idade das Trevas não estou a fazer uma referência implícita às «trevas medievais», que, essas, são uma invenção, pois que a chamada Idade Média é um período histórico extremamente rico e fértil e geralmente mal conhecido.
Mas que as trevas nos batem à porta e estão a instalar-se entre nós, isso não me oferece a menor dúvida. A primeira verificação pode ser obtida imediatamente — basta-nos tomar atenção aos noticiários; e mesmo sem eles, basta-nos ver dez minutos de uma emissão televisiva em horário impropriamente dito «nobre».
De facto, os acontecimentos internacionais dos últimos tempos são um testemunho eloquente dessa Idade das Trevas de que falei. Porém não são o único sinal. Na nossa sociedade há hoje, cada vez mais, uma informação sem cultura; e o conhecimento, quando existe, é estritamente orientado e voluntariamente limitado a objectivos concretos. Isto verifica-se tanto no domínio da ciência e da tecnologia como no das humanidades: ambos tendem a ignorar-se mutuamente.
E o fenómeno é bem mais amplo do que possa parecer. Tomemos como exemplo o choque entre o islamismo integrista e fanático (só esse) e — chamemos-lhe assim por mera comodidade de expressão — o mundo ocidental. O que encontramos, no lado islamista, é uma focagem obsessiva em determinada interpretação de textos religiosos; na sua maioria, os homens que militam nesse campo não possuem, nem querem possuir, outras referências nem outros conhecimentos culturais ou civilizacionais. Note-se que alguns, embora sejam poucos, têm conhecimentos técnicos e científicos muito avançados, porém sem contexto nem enquadramento verdadeiramente humanístico, verdadeiramente cultural.
Mas, no lado a que por comodidade de expressão chamei ocidental, encontramos a obsessão economicista e especulativa, a obsessão do marketing, da bolsa, do mercado, da concorrência, da competição — uma sociedade quase reduzida a uma economia «descarnada», que se serve dos povos sem os servir.
Os dois campos têm à sua conta, entre outras malfeitorias menores, muito sangue derramado. A diferença essencial está em que, no lado ocidental, as motivações são sobretudo económicas e as mortes, na sua maioria, sobrevêm como efeito indirecto (colateral...). Há ainda uma diferença quanto aos executores, que, regra geral, são, também eles, «colaterais». E assim temos a ETA, o IRA e outros grupos afins, que existirão enquanto a produção de armamentos tiver de manter determinado nível considerado confortável pelos accionistas, sejam eles estatais ou privados; e assim temos também a reticência aos medicamentos genéricos nos países africanos mais afectados pela sida e outras doenças, isto para maior glória e lucro das grandes produtoras farmacêuticas.
Centremo-nos agora apenas sobre o Ocidente e, por reflexo, sobre a realidade portuguesa, já que ela se integra nesse quadro mais vasto.
No Ocidente, faz-nos muita falta um pouco de espírito renascentista. Faz-nos muita falta reconstruir a ponte entre a margem das ciências exactas, da técnica e da economia e a margem das humanidades. O divórcio entre ciências e tecnologias, por um lado, e humanidades, por outro, é tão visível que não vale a pena demonstrá-lo. E a situação é mais grave no sector das ciências e tecnologias, porque ele é hoje dominante e está desumanizado.
Como desumanizada está a Economia.
Cito dois casos ilustrativos, colhidos nas altas esferas (direi mesmo: nas altíssimas esferas) internacionais; ambos são referidos pela escritora Viviane Forrester no seu livro Uma estranha ditadura.
Em princípios de 1996, a ATT, «o gigante dos telefones americanos», como diz Viviane Forrester, anunciou 40 mil despedimentos; dois meses depois, a imprensa publicava o montante da remuneração do presidente da companhia: 16,2 milhões de dólares, quase o triplo do que esse pobre trabalhador ganhara no ano anterior. Em 1999, a Procter & Gamble, então com um lucro de 720 milhões de contos, encerrou 10 fábricas e lançou para o desemprego 15 mil pessoas. A razão? Segundo o presidente da companhia, tratava-se de «criar valor para o accionista». E esta situação não apenas se mantém como se agrava.
Se isto não é terrorismo social, não sei o que se lhe possa chamar.
Aliás, quero partilhar convosco a emoção que senti ao ver, recentemente, uma reportagem da BBC, a propósito da situação criada pelo 11 de Setembro. O jornalista entrevistava o seu próprio operador de imagem, que, havia tempo, se encontrara pessoalmente com Osama Bin Laden, e perguntou-lhe qual a impressão que ele lhe tinha causado. Resposta: «Pareceu-me um homem com um porte muito contido, muito correcto e totalmente frio: olhe, fez-me logo pensar num gerente bancário».
É imenso o alcance desta resposta.
E, perguntar-se-á, em que medida a Literatura pode agir?
Bem, eu duvido que os presidentes das empresas que há pouco referi, tal como a esmagadora maioria dos seus congéneres, sejam ou tenham sido leitores fiéis de qualquer outra coisa que não seja o relatório e contas da sua empresa e outras obras do mesmo género literário. E duvido que, se a classe a que eles pertencem tivesse outra formação, que incluísse uma forte componente humanística, literária, histórica — cultural, na verdadeira acepção da palavra — a situação tivesse chegado ao ponto a que chegou. Talvez fosse ouvida, entre outras, a voz do escritor Norman Mailer, ao dizer, num programa de televisão — cito de memória, não ipsis verbis: «A avidez não pode ser a base do nosso sistema social».
É minha convicção que o empresário e o gestor que só lêem as publicações anuais do relatório e contas da sua empresa e os livros de formação profissional do seu ofício (além, evidentemente, da indispensável informação futebolística, no caso português e não só nele), o empresário e o gestor para quem a literatura não existe e a História ainda menos, são também, predominantemente, são também, por excelência, os tipos de empresário e de gestor para quem o pessoal, o indivíduo, a pessoa, é mera unidade de trabalho, contratável e dispensável (e até, por que não, bombardeável) segundo as exigências da conjuntura — o que é o mesmo que dizer, segundo as exigências do preço do carro de luxo que ele pretenda comprar.
Por outro lado, é ainda mais importante que as vítimas dos grandes senhores do ultraliberalismo — estou, aqui, a falar de todos nós, vítimas directas ou indirectas — conquistem para si essa verdadeira cultura, essa abertura de horizontes, essa consciencialização, esse espírito crítico que somente uma leitura diversificada e extensa, e os hábitos de reflexão e de uso da criatividade própria que ela alimenta, podem proporcionar. Só assim seremos capazes de começar a reagir, a nível individual como a nível social, contra as monstruosidades que todos os dias se cometem, pressionando as autoridades eleitas para que legislem em nossa defesa.
E isto não é válido apenas no que se refere directamente à política e à economia. Exemplifico, uma vez mais: tomando como amostra os anos mais recentes, até esta data, direi que não vi grandes e generalizadas reacções contra as seguintes mensagens veiculadas pela publicidade comercial:
— A vida é feita de prioridades: primeiro eu e depois eu. Portanto, custe o que custar, tenho de comprar um automóvel Rover.
— As crianças podem muito bem deixar de comer legumes, basta que comam salsichas Nobre.
— O fiambre é um produto comestível cuja origem é a Sicasal.
— Os refrigerantes gaseificados Fanta são óptimos para ajudar um adolescente a vencer um concurso de arrotos.
— A melhor maneira de ter boa classificação num teste é ameaçar o professor de lhe riscar o seu automóvel Nissan Micra.
— Não se preocupe se não conseguiu poupar para as férias ou para satisfazer um capricho qualquer: vá a um banco, que eles dão-lhe o dinheiro.
—O meu gelado é meu, só meu, não dou nem um bocadinho a ninguém: quem partilha os seus bens é estúpido.
Poderia, como todos sabem, continuar durante uma hora, pelo menos.
É esta a sociedade que está a ser construída. E, como nenhum de nós gosta de ver o poder cerceando liberdades, a melhor maneira, a mais saudável, de combater a tendência é punir seriamente os responsáveis (em certos casos, dever-se-ia dizer: os criminosos) negando-lhes a sua única razão de existência e de alegria — o lucro.
Torna-se claro, pois, que não falo, aqui, da literatura como panfleto revolucionário, mas como algo que nos abre os horizontes, que sensibiliza a nossa consciência, que nos desperta para outros valores, que activa em nós o pensamento, a reflexão, a lucidez crítica. E atrevo-me a sugerir que uma (apenas uma, é certo) das razões do corrente regresso a um liberalismo económico que é já um hiper-liberalismo selvagem, se encontra na ausência das humanidades e na ignorância histórica. São ainda conhecidas, porque recentes, as consequências negativas do excesso de intervencionismo estatal; são ainda conhecidas e recordadas a falta de liberdade, a opressão e a ineficácia dos regimes comunistas; mas são já ignoradas ou estão já esquecidas as consequências dos excessos do liberalismo económico. E assim estamos a voltar à selva — não, muito pior; porque na «selva» há a solidariedade tribal.
Assim, eu penso que a História e a Língua e Literatura, pelas potencialidades que encerram, pelo apetrechamento cultural, mental, espiritual que proporcionam, são talvez o único antídoto ante o avanço desta desumanização da economia e também desta literacia analfabeta (hotéis com áreas de laser, espadas e crisantêmos, etc.) e desta cultura com aspas que nos ameaçam. Ameaçam a nossa identidade e também a nossa própria sociedade.
A situação é tão séria que, pelo menos no que toca a Portugal, eu penso que as disciplinas de História, Língua e Literatura deveriam ser matéria obrigatória em todas as áreas do ensino e em todos os níveis: deveriam estar presentes até ao último ano, até ao derradeiro estágio de formação académica, técnica, profissional. Isto se quisermos ter cidadãos inteiros e não um rebanho dominado.
E assim — para terminar — direi que, hoje, ler um livro não é apenas um acto de lazer, nem apenas um acto de cultura. É também um acto de contestação e de resistência.

João Aguiar