domingo, 31 de março de 2013

VIAGENS NA HISTÓRIA - 19


A TEIMOSIA

Desta vez, para realizarmos convenientemente a nossa viagem na História, seria preciso seguir o exemplo de Santo António ao produzir o milagre da ubiquidade — difícil, porque nenhum de nós é santo. Ou seja, teríamos de fazer várias viagens ao mesmo tempo. Para simplificar, proponho somente três incursões no passado, a primeira das quais a Massangano, no século XVII.
Massangano fica na margem direita do rio Cuanza, em Angola. Tem uma inegável importância na história colonial, porque foi palco de vários combates. Mas o que interessa, aqui, é o período que vai de 1641 a 1648. Durante esses sete anos, Luanda esteve em poder dos holandeses, que passaram, na prática, a dominar Angola — mas não a totalidade do território: as autoridades portuguesas foram entrincheirar-se em Massangano, que se tornou a capital portuguesa de Angola. Em 1648, Salvador Correia de Sá expulsou os holandeses de Luanda e os portugueses de Massangano foram finalmente socorridos.
Esta crónica não é um hino de louvor ao colonialismo (português ou holandês); mas a História não é alterável. O que quero salientar, aqui, é a furiosa persistência (a teimosia!) com que os portugueses se agarraram àquela praça empoleirada sobre o Cuanza. No princípio dos anos 70 (século XX, claro), visitei Massangano; e, mesmo então, a vista das ruínas — igreja, fortaleza, tribunal, enfim, os edifícios de uma administração reduzida mas decida a funcionar — era impressionante. Como puderam resistir naquela solidão, militarmente acossados de todas as partes e sujeitos às febres que levaram muitos deles? Que teimosia foi aquela?
Segunda viagem: será breve, porque já me referi ao assunto em crónica anterior: o segundo cerco de Diu, em 1546. Durou seis meses e quando D. João de Castro pôde finalmente intervir e libertar a praça, já esta não era muito mais que uma grande ruína, mas onde ainda se combatia. De fins de Abril a Novembro de 1546, os sitiados, homens e mulheres, combateram com raiva. Recusaram as propostas de rendição com honra, que lhes permitiriam partir levando os seus haveres. Não podemos, hoje, imaginar o que terão sido aqueles seis meses na fortaleza de Diu. Uma vez mais: teimosia!
E a terceira viagem vai mais longe no tempo e é mais vasta no espaço: refiro-me a toda a história da implantação portuguesa no Oriente. Um historiador inglês bem conhecido, o Prof. Charles Boxer, dá-nos uma perspectiva de estrangeiro, que é sempre bom ter em conta quando é honesta (como é o caso), mesmo se por vezes algo incorrecta ou injusta. No seu livro «O Império Marítimo Português», Boxer faz notar, com justeza, que se fala muito das conquistas portuguesas  no Oriente, mas que se fala pouco das várias tentativas falhadas que antecederam essas conquistas. E comenta, em substância, que os portugueses mostraram uma enorme tenacidade, uma enorme determinação (uma enorme teimosia!) na construção do seu império marítimo.
Como o leitor compreendeu, era à teimosia que eu queria chegar com estas viagens. Ponhamos de lado as possíveis motivações e as explicações — bravura, força espiritual, sede de riquezas e de poder, ardor religioso, ganância, tudo isso esteve presente em proporções diversas, mas não é, aqui, o meu tema. O meu tema é a persistência, a coragem da teimosia que os portugueses mostraram em vários momentos da sua história, e não só nestes que acabo de referir. Como país e como povo, somos um  caso de teimosia.
E que falta ela nos faz, hoje…!
João Aguiar

TORRE DE BELÉM - Lisboa

domingo, 24 de março de 2013

VIAGENS NA HISTÓRIA - 18


«A EUROPA IMITARÁ PORTUGAL»…
Quem escreveu isto não foi um  daqueles patriotas furiosos que já estão fora de moda. O autor destas linhas foi o muito celebrado escritor e pensador francês Victor Hugo: «Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Desfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal».
Com certeza, alguns leitores já sabem do que se trata e também saberão, portanto, aonde nos leva esta viagem na História: ao reinado de D. Luís I, mais exactamente a 1 de Julho de 1867, data da abolição da pena de morte em Portugal. Victor Hugo terá levado algum tempo a saber disto, porque, ao que parece, as suas palavras entusiastas datam de 1876, mas não importa.
Na realidade, a lei de 1867, integrada na Reforma Penal que nesse ano entrou em vigor, era o remate de um processo começado havia muito. No reinado de D. Maria I, deixara de se aplicar a pena de morte a mulheres — a última foi executada em 1772 e o crime era gravíssimo. Depois, nos princípios do século XIX, Ribeiro dos Santos atacou a pena de morte num artigo publicado na imprensa. Enfim, em Março de 1852, no reinado de D. Maria II, a Câmara dos Deputados aprovou o Artigo 16º do Acto Adicional à Carta Constitucional, que abolia a pena de morte para crimes políticos — mas note-se que tal pena não era aplicada desde 1834.
A lei de 1867 era, pois, a sequência lógica do processo: abolia a pena capital para todos os crimes civis. Acrescente-se que a pena se manteve no foro militar, mas, em 1874, quando um soldado de Infantaria assassinou um alferes, acabou por ser condenado a prisão perpétua, apesar de ter havido polémica sobre o assunto. A pena capital para crimes militares (deserção, traição) só viria a ser definitivamente abolida (tanto quanto estas coisas são definitivas…) em 1976. No entanto, mais uma vez, não há notícia confirmada de execuções excepto uma referência, segundo parece não muito segura, ao período da Primeira Guerra Mundial, quando teria sido executado um soldado do Corpo Expedicionário Português em França.
A questão da pena capital é, evidentemente, complexa e as respostas não são imediatas. Pessoalmente, admito, inclino-me bem mais para a abolição total do que para qualquer outra solução, embora haja casos em que eu, como qualquer um de nós, penso: «Aquele(a) grandíssimo(a) … precisava era de forca!». São casos muito, muito especiais.
E assim, considero que é motivo de orgulho termos abolido a pena de morte em 1867. Segundo uma consulta (breve, admito) que fiz, só a Venezuela nos terá precedido, em 1863; a seguir foi a vez da Holanda, em 1870, e a da Costa Rica, em 1877.
Estranho, não é, que as grandes potências, as luminárias dos povos, os grandes fachos da civilização não estejam à nossa frente?! Aliás, o grande Império Americano, tal como o reemergente Celeste Império, não querem nada com a abolição da pena capital.
São concepções diferentes. Mas eu, que prevejo, ante o aumento de criminalidade de que sofremos, um bem possível (e digamos: necessário, mesmo inelutável) agravamento de penas, formulo a esperança de que saibamos manter a medida justa. E nos lembremos de que nem o Estado Novo ousou restabelecer a pena de morte.
João Aguiar





terça-feira, 19 de março de 2013

VIAGENS NA HISTÓRIA - 17

 BRUMAS DA MEMÓRIA

Para os poucos que ainda sabem a letra do Hino Nacional, o título desta crónica há-de dizer algo: é de entre as brumas da memória que se ouve a voz dos nossos egrégios avós, etc., etc. O que acontece é que a memória nacional está cada vez mais brumosa e nesse nevoeiro se perdem, esquecidos, muitos dos egrégios avós cuja voz deveríamos ouvir ou, pelo menos, cuja lembrança deveríamos reter.
Pois bem, desta vez proponho à vossa atenção um desses homens esquecidos, chamado Henrique de Carvalho (1843 – 1909). Esquecido pela nossa amnésia, mas também, quiçá, arredado por aquilo a que alguns considerarão ser incorrecção política: afinal de contas, foi um homem do império e das colónias, um militar do séc. XIX que se tornou conhecido por explorar a Lunda, por ser o seu primeiro governador e promover a sua plena integração na Angola colonial. Além disso, anteriormente, prestara serviço em Macau e em São Tomé. Sempre no império. Portanto, pessoa para pôr de lado, dir-se-á…
E  dir-se-á mal. Antes de mais, porque as figuras históricas devem ser julgadas à luz da sua época e não da nossa; e depois, no que toca particularmente a Henrique Augusto Dias de Carvalho, pelas qualidades específicas que provou ter, ao longo da sua vida. Uma vida demasiado preenchida para ser aqui narrada em pormenor; teremos de contentar-nos com umas pinceladas.
Era militar de carreira — chegou a general — e espera-se de um militar que seja corajoso. Pois bem: Henrique de Carvalho era dotado de grande coragem física, e provou-o; mas, curiosamente, provou-o quase sempre em acções de paz: no tempo em que esteve em Macau, o Território andava em sobressalto, com ataques de piratas, um banditismo crescente e a indisciplina da guarnição militar. Pois bem, o jovem tenente graduado em capitão logrou pôr cobro a tudo isso, evitando sempre que possível o recurso à violência. Sozinho e desarmado, internou-se em território chinês para dar voz de prisão a uma vintena de desertores; e o que é extraordinário é que os trouxe de volta, tal era o respeito e a confiança que incutia nos subordinados. Mais tarde, em Angola, de novo só e sem armas, fez como Santa Isabel de Aragão: meteu-se entre dois exércitos (um de quiocos, outro de lundas) que iam defrontar-se em batalha. Falou com os chefes, reconciliou-os, levou-os a apertarem as mãos. Acrescente-se que veio a receber a Torre e Espada, que não é uma simples distinção honorífica.
Coragem física, mas também moral; enquanto, em Luanda, várias vozes incitavam a uma acção militar na Lunda (porque a guerra é lucrativa, sobretudo para os fornecedores), Henrique de Carvalho opôs-se energicamente: sabia que podia fazer as coisas sem derramamento de sangue. O que deu azo às costumadas intrigas e lhe causou não poucos dissabores.
Teve ainda uma outra coragem: a de não procurar os grandes gestos espectaculares. Em Macau, São Tomé e Angola, a maior parte do seu trabalho — que não era apenas militar mas também administrativo e de interesse civil — consistiu em actos pouco «vistosos» mas essenciais: na tonta gíria política do nosso tempo, era, verdadeiramente, um homem estruturante
Mas os povos sentem a acção de homens como este. Ao partir de Macau, a comunidade chinesa ofereceu-lhe um faixa de seda bordada com uma mensagem de agradecimento; e em 1975, em Angola, a gente da Lunda pediu às tropas do MPLA e da FNLA que respeitassem o monumento erguido a Henrique de Carvalho. O seu busto foi levado para o Museu de Angola, em Luanda, numa cerimónia oficial organizada pelas autoridades angolanas.
O que, julgo, diz tudo.
João Aguiar


segunda-feira, 11 de março de 2013

VIAGENS NA HISTÓRIA - 16


OS FUNDADORES

No correr destas viagens pela História voltamos, agora, às origens, ao tempo em que «tudo começou». O que nos leva a considerar uma noção que não está muito divulgada entre nós: a noção dos Fundadores. De facto, tendemos a considerar o primeiro rei, D. Afonso Henriques, como o quase-único artesão da independência e, quando muito, os seus pais, D. Henrique e D. Teresa, figuram como precursores, ponto final. Mas a verdade é que houve todo um grupo de homens que, pela sua importância social e militar, bem como pelas suas opções políticas, merecem amplamente partilhar da categoria de Fundadores de Portugal.
Nesta crónica, ocupar-me-ei de um só desses fundadores, um dos mais esquecidos e ausentes da memória popular: trata-se de Paio (isto é: Pelágio ou Pelayo…) Mendes, que foi arcebispo de Braga entre 1118 e 1137.
Segundo uma tradição histórica muito aceite, embora não totalmente comprovada, D. Paio Mendes pertencia à poderosa casa da Maia e era irmão de dois outros fundadores: Soeiro Mendes da Maia e Gonçalo Mendes da Maia, que ficou conhecido como «o Lidador». Para o caso que nos ocupa, não é importante saber se pertencia à casa da Maia ou à casa de Sousa; o que importa é o apoio que deu a D. Afonso Henriques e a provável influência que exerceu junto do infante — aliás, o Prof. Torcato Sousa Soares defendeu como hipótese quase certa que foi Paio Mendes, e não Egas Moniz, o aio de Afonso Henriques, hipótese que justificou com argumentos bastante convincentes.
De qualquer modo, o certo é que a acção deste homem se revelou decisiva em dois aspectos, sendo que o primeiro foi a sua luta constante contra Diogo Gelmires, arcebispo de Compostela. De facto, pode-se dizer que a luta pela emancipação da terra portucalense, foi (não só mas também) o verdadeiro duelo travado entre Compostela e Braga no campo da organização eclesiástica, da disputa pelas sés sufragâneas de cada arquidiocese. Dada a importância da Igreja, um tal conflito não podia deixar de ter reflexos políticos, mesmo porque os arcebispos também eram potentados militares. Ora, a verdade é que D. Paio Mendes mostrou-se particularmente dinâmico na defesa de Braga contra as investidas de Compostela.
O segundo aspecto foi, como referido acima, a adesão do arcebispo ao movimento autonomista de Afonso Henriques — e talvez mesmo que, em lugar de «adesão», se deva dizer «inspiração». Note-se que, quando D. Teresa, que se travou de razões com Paio Mendes, o exilou, este foi para Zamora — e levou consigo o jovem infante portucalense. Pois bem: como é sabido, foi justamente nessa ocasião, em Zamora, que Afonso Henriques se armou a si próprio cavaleiro, o que correspondia a dar um passo simbólico na direcção de uma coroa real, pois só os reis se armavam cavaleiros a si mesmos. E D. Paio Mendes estava presente; é difícil não pensar que aquele acto político se deve à sua influência, mais até do que à única iniciativa do então muito jovem infante.
Foi isto em 1122 ou 1125. E em 1128 travava-se a batalha de São Mamede, que deu o poder a Afonso Henriques. Ao lado do infante, estavam Egas Moniz, estavam os Sousas, estavam os da Maia — estava D. Paio Mendes, muito possivelmente, um dos grandes promotores da revolta contra D. Teresa e a «facção galega».
Sem dúvida que, na nossa Galeria dos Fundadores, temos de incluir este quase esquecido arcebispo de Braga.

João Aguiar


sábado, 9 de março de 2013

POEMA

Mordi o pó das planícies nuas,
Cortei a carne por humildade;
E não bastou ter-Te crucificado,
Porque quiseste que eu nascesse humano.

Calquei as flores com os pés e com orgulho,
Jorrei poemas, ladainhas, astros;
E não bastou ter-Te crucificado.

Matei e feri, curei e fui curado,
Mil vezes me sangrei e Te sangrei,
E não bastou ter-Te crucificado:
Ainda quis coroar-Te rei de espinhos,
Rei de sangue e suor, e flagelado.

E olha para a Tua obra magna,
Tu, que quiseste que eu nascesse humano:

Não Te bastou ter-Te crucificado.

João Aguiar, 1972

Pontiado a aparo com tinta da china sobre papel A3

VIAGENS NA HISTÓRIA - 15


A RESTAURAÇÃO ESQUECIDA

Penso que todos os portugueses, mesmo os mais distraídos e os mais ignorantes, sabem em que consistiu a Restauração e até lhe conhecem a data, mesmo porque é feriado nacional. Porém, convido-vos hoje a viajar até ao início do século XIX, para evocarmos uma outra restauração, talvez menos espectacular e não tão bem sucedida, mas que, mesmo assim, merece um lugar na nossa memória.
Vamos, pois, até aos princípios do Verão de 1808. No últimos meses do ano anterior, um exército napoleónico comandado pelo general Junot ocupara Portugal e a família real portuguesa embarcara para o Brasil. Quem governava o reino, agora, era Junot e podemos calcular que não o fazia com grande (ou pequeno) carinho ou respeito pelos Portugueses. Aliás, a diplomacia delirante de Napoleão previra o desmembramento do país em três partes, como bolo cortado em três fatias.
Pois bem, no início de Junho de 1808 o Porto sublevou-se — e, como um rastilho, a revolta espalhou-se, praticamente, a todo o país. O general Manuel Gomes Sepúlveda, governador das armas de Trás-os-Montes, lançou-se na resistência com a maior energia, apesar dos seus setenta e três anos: em Bragança, fez aclamar o príncipe regente, D. João (futuro D. João VI), criou uma junta governativa, mobilizou os trasmontanos, formou regimentos de milícias; o movimento espalhou-se pelo Minho, e cobriu, assim, boa parte do Norte: Braga, Barcelos, Guimarães, Viana, Melgaço, Chaves. O general Loison, o tristemente famoso «maneta», que cometeu terríveis atrocidades, tentou avançar sobre o Porto mas foi cercado em Mesão Frio e retirou para Almeida, fazendo sempre sangrentas tropelias; e a revolta chegou a Aveiro, a Coimbra, à Figueira da Foz.
Mosteiro de Alcobaça - Nave central
Também o Alentejo se levantou contra o ocupante; e no Algarve o primeiro brado foi ouvido em Olhão: a 16 de Junho era aclamado aí o príncipe regente e em Faro o general francês Maurin recebia voz de prisão, ao mesmo tempo que os restantes franceses eram expulsos. Foi então que um certo Manuel Garrocho, marinheiro de Olhão, decidiu, loucamente, meter-se com os companheiros no seu pequeno caíque Bom Sucesso e ir até ao Brasil, nada mais nada menos, para informar o regente de que Portugal estava a expulsar os invasores — e o mais extraordinário é que conseguiu lá chegar.
Como evoluiu esta restauração do reino? Não tão bem como a outra, é verdade. Mas também será verdade que, pelo menos numa fase inicial, terá facilitado bastante o trabalho às tropas inglesas que desembarcaram pouco depois em Portugal e que, apoiadas por unidades portuguesas, viriam a derrotar as forças de Junot na Roliça e no Vimieiro. Essas duas batalhas puseram termo à primeira invasão francesa; e assim, a restauração de 1808 foi, de facto, vitoriosa e efectiva.
Como sabemos, houve mais duas invasões napoleónicas e, tanto sob o ponto de vista militar como político, as coisas não foram simples e ao povo português estavam ainda reservados muitos sofrimentos. Isso, porém, não impede que esta restauração mereça fazer parte da nossa memória — e, com ela, o nome do general Sepúlveda. De que ninguém fala — o que é, no mínimo, lamentável. Mas já nos vamos habituando: não é um futebolista…
 João Aguiar