domingo, 2 de dezembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 07


O MITO CRIADOR
Quem não ouviu falar na batalha de Ourique?
A resposta será: muita gente —mas enfim, também há quem saiba do que se trata. Uns e outros, gostaria de, nesta viagem ao longo da História, os levar até lá — não à batalha verdadeira, pois ninguém sabe ao certo onde ela se feriu; nesse particular, quem quiser poderá ir até Ourique, no Alentejo, ou, prosaicamente, ao Campo de Ourique, em Lisboa, ou aos outros Ouriques que por cá temos. Não importa, para o nosso caso, o local, nem sequer as dimensões da batalha, que foram — se ela, sequer, existiu — muito inferiores ao que diz a tradição. Importa-nos, sim, visitar a lenda de Ourique, porque ela é, de facto, o «mito criador» de Portugal.
(Breve explicação: dou ao termo «mito» o sentido de história sagrada, de história exemplar, de algo que ocorreu num tempo primordial e que narra acontecimentos que se tomam como modelos. Ou seja: não interessa que esses acontecimentos sejam reais ou construídos; interessa, sim, que foram escolhidos como padrão, como modelo histórico a ser seguido pelas gerações seguintes.)
Ora, em muito breve resumo, o que nos conta o mito de Ourique?
Conta-nos que D. Afonso Henriques, então princeps ou dux dos Portugueses, no decorrer de uma investida em terras muçulmanas, travou uma batalha contra «cinco reis mouros»; que, na véspera da batalha, Cristo lhe apareceu e lhe deu as Quinas, para que ele as colocasse no seu estandarte e assim venceria o inimigo; e que, no próprio campo de batalha, os seus vassalos lhe pediram que fosse o seu rei e como tal o aclamaram.
Em traços muito rápidos, eis os elementos essenciais do mito de Ourique, o qual estaria já em formação cerca de cento e cinquenta anos após o recontro, que viria a completar-se nos séculos XIV e XV e cuja autenticidade só viria a ser contestada nos finais do século XIX. Devo dizer que há já largos anos que este mito exerce sobre mim um verdadeiro fascínio, porque ele aponta, para Portugal, um modelo que é confirmado pelos dados históricos.
Assim, o que nos dizem os acontecimentos míticos de Ourique? Dizem-nos que Cristo apareceu a D. Afonso Henriques para anunciar-lhe a vitória sobre o exército muçulmano; ou seja, o mito reconhece que Portugal é um fruto daquilo a que se chama a Reconquista Cristã. Dizem-nos ainda, os acontecimentos, que Cristo impôs as Quinas a Afonso Henriques e que, no campo de batalha, este foi aclamado rei pelos seus vassalos. Ou seja: embora o mito coloque Portugal sob a protecção divina, ele não confere uma origem divina à monarquia portuguesa. Cristo dá um brasão ao dux dos Portugueses, mas não o proclama rex. Quem executa este acto são os vassalos. São eles, portanto, que fundam o reino ao escolher e aclamar um rei. E esta é, a meu ver, a mensagem profunda do mito de Ourique.
Quanto à História, o que nos diz ela?
Que a cerimónia de entronização de um rei de Portugal tem o nome tradicional de aclamação e que essa cerimónia é essencialmente laica; o rei não é ungido e talvez nem sequer fosse coroado solenemente — os actos decisivos eram o juramento, o desfraldar da bandeira e o brado («Real, real, real»…), ou seja, a aclamação propriamente dita.
E a História diz-nos ainda que, quando Afonso II, neto de Afonso Henriques, fez testamento, estabeleceu que, morrendo ele sendo o herdeiro menor, este ficaria entregue à tutela dos vassalos e não da rainha viúva. Ou seja, desde os primórdios, nunca o reino foi propriedade do rei.
O que, ainda hoje, merece reflexão, atrevo-me a pensar.

João Aguiar

Charola do Convento da Ordem de Cristo - TOMAR

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