PASSAGEIROS QUASE
SECRETOS
Talvez seja
bom sabermos que, quando viajamos pela História de Portugal, temos muitas vezes
em nossa companhia alguns passageiros que raramente se mostram, a ponto de não
darmos, sequer, pela sua presença. E, no entanto, essa presença é importante,
porque nos ajuda a corrigir muitas noções erradas ou, pelo menos, distorcidas.
Assim, por
exemplo, nós e os Mouros. Toda a gente sabe (enfim, mais ou menos) que Portugal
é, em substancial parte, um fruto da reconquista cristã da Península, das
Cruzadas do Ocidente. Isto é verdade. E também toda a gente sabe (mais ou
menos) que, por uma consequência lógica do que atrás referi, o Mouro, islâmico,
foi o inimigo hereditário do Português, cristão, que passou toda a sua
esforçada vida a «dar neles», para usar uma saborosa frase medieva, sem dó nem
piedade nem concessões; os bons éramos nós, os maus eram eles, pronto.
Isto é que já
não é tão verdade. Eu poderia citar numerosos passageiros secretos que o
segredam, mas vou limitar-me a dois. O primeiro é a lenda medieval portuguesa
chamada «de Gaia» ou «do rei Ramiro», que conta como Ramiro II, rei de Leão,
matou Alboazer Alboaçam, «senhor de toda a terra de Gaia, até Santarém». Não
tenho espaço para contar a lenda em pormenor, porém aqui ficam os elementos
essenciais. Primeiro, foi o cristão Ramiro quem iniciou as maldades, fazendo-se
amigo de Alboaçam para raptar-lhe a irmã, por quem se apaixonara, sendo ele já
casado; o subsequente rapto da sua mulher por Alboaçam foi uma lógica
represália. Segundo, a forma como Ramiro recuperou a rainha foi traiçoeira e
pouco heróica. Terceiro, a maldade final também lhe pertence, porque a seguir
matou-a, com o apoio do próprio filho, depois de ela lhe ter dito que chorava
«porque mataste aquele mouro que era melhor que ti». Ou seja: a figura
simpática, na lenda, é Alboaçam. Trata-se de uma lenda, claro, mas ela diz
muito sobre a mentalidade e o sentir da gente que a produziu e que é... a nossa
gente. Não é, aliás, caso único, pois há outras lendas de mouras e mouros em
que a simpatia parece ir para o «lado deles».
O segundo
passageiro secreto ou quase secreto já não é lendário e sim histórico — foi,
aliás, tratado em profundidade por Adalberto Alves no seu belíssimo livro As
Sandálias do Mestre: trata-se de uma aliança que existiu entre o nosso
primeiro rei, D. Afonso Henriques, e o senhor muçulmano de Silves, Ibn Qasi.
Essa aliança malogrou-se porque Ibn Qasi foi assassinado, porém aquilo que se
sabe e/ou se pode conjecturar é extremamente interessante.
D. Afonso
Henriques estava intimamente ligado à ordem dos templários, que desempenhou um
papel importante na consolidação de Portugal; por seu turno, Ibn Qasi, poeta e
sábio, criou uma ordem de cavalaria islâmica, os muridinos, cuja linha de
pensamento estaria próxima dos ismaelitas. Ora, há muito que se fala nas
relações, discretas mas cordiais, entre templários e ismaelitas, na Terra
Santa. Daí ser possível, pelo menos, especular, à margem de razões políticas e
estratégicas, sobre uma possível tentativa de ligação paralela entre templários
e muridinos. É um facto registado que Afonso Henriques ofereceu a Ibn Qasi um
cavalo, um escudo e uma lança, presentes que tinham uma clara carga simbólica,
espiritual.
Como disse, a
aliança malogrou-se. Mesmo assim, altera a imagem do nosso rei como um
mata-mouros incondicional, tanto mais que protegeu, por exemplo, os mouros de
Lisboa, após a tomada da cidade.
Por mim, gosto
destes passageiros. Fazem-nos pensar.
João
Aguiar
Mértola e Alcoutim |
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