domingo, 18 de novembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 05


PASSAGEIROS QUASE SECRETOS
Talvez seja bom sabermos que, quando viajamos pela História de Portugal, temos muitas vezes em nossa companhia alguns passageiros que raramente se mostram, a ponto de não darmos, sequer, pela sua presença. E, no entanto, essa presença é importante, porque nos ajuda a corrigir muitas noções erradas ou, pelo menos, distorcidas.
Assim, por exemplo, nós e os Mouros. Toda a gente sabe (enfim, mais ou menos) que Portugal é, em substancial parte, um fruto da reconquista cristã da Península, das Cruzadas do Ocidente. Isto é verdade. E também toda a gente sabe (mais ou menos) que, por uma consequência lógica do que atrás referi, o Mouro, islâmico, foi o inimigo hereditário do Português, cristão, que passou toda a sua esforçada vida a «dar neles», para usar uma saborosa frase medieva, sem dó nem piedade nem concessões; os bons éramos nós, os maus eram eles, pronto.
Isto é que já não é tão verdade. Eu poderia citar numerosos passageiros secretos que o segredam, mas vou limitar-me a dois. O primeiro é a lenda medieval portuguesa chamada «de Gaia» ou «do rei Ramiro», que conta como Ramiro II, rei de Leão, matou Alboazer Alboaçam, «senhor de toda a terra de Gaia, até Santarém». Não tenho espaço para contar a lenda em pormenor, porém aqui ficam os elementos essenciais. Primeiro, foi o cristão Ramiro quem iniciou as maldades, fazendo-se amigo de Alboaçam para raptar-lhe a irmã, por quem se apaixonara, sendo ele já casado; o subsequente rapto da sua mulher por Alboaçam foi uma lógica represália. Segundo, a forma como Ramiro recuperou a rainha foi traiçoeira e pouco heróica. Terceiro, a maldade final também lhe pertence, porque a seguir matou-a, com o apoio do próprio filho, depois de ela lhe ter dito que chorava «porque mataste aquele mouro que era melhor que ti». Ou seja: a figura simpática, na lenda, é Alboaçam. Trata-se de uma lenda, claro, mas ela diz muito sobre a mentalidade e o sentir da gente que a produziu e que é... a nossa gente. Não é, aliás, caso único, pois há outras lendas de mouras e mouros em que a simpatia parece ir para o «lado deles».
O segundo passageiro secreto ou quase secreto já não é lendário e sim histórico — foi, aliás, tratado em profundidade por Adalberto Alves no seu belíssimo livro As Sandálias do Mestre: trata-se de uma aliança que existiu entre o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, e o senhor muçulmano de Silves, Ibn Qasi. Essa aliança malogrou-se porque Ibn Qasi foi assassinado, porém aquilo que se sabe e/ou se pode conjecturar é extremamente interessante.
D. Afonso Henriques estava intimamente ligado à ordem dos templários, que desempenhou um papel importante na consolidação de Portugal; por seu turno, Ibn Qasi, poeta e sábio, criou uma ordem de cavalaria islâmica, os muridinos, cuja linha de pensamento estaria próxima dos ismaelitas. Ora, há muito que se fala nas relações, discretas mas cordiais, entre templários e ismaelitas, na Terra Santa. Daí ser possível, pelo menos, especular, à margem de razões políticas e estratégicas, sobre uma possível tentativa de ligação paralela entre templários e muridinos. É um facto registado que Afonso Henriques ofereceu a Ibn Qasi um cavalo, um escudo e uma lança, presentes que tinham uma clara carga simbólica, espiritual.
Como disse, a aliança malogrou-se. Mesmo assim, altera a imagem do nosso rei como um mata-mouros incondicional, tanto mais que protegeu, por exemplo, os mouros de Lisboa, após a tomada da cidade.
Por mim, gosto destes passageiros. Fazem-nos pensar.
João Aguiar 
Mértola e Alcoutim 

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