terça-feira, 27 de novembro de 2012

PEQUENOS TEXTOS


O TREVO E A ESMERALDA

Não me dou bem com o frio e a chuva é, para mim, uma necessidade, mas não um prazer; apesar disso, tenho uma simpatia muito especial pela Irlanda, uma simpatia que abraça a terra e a gente.
A terra, montanhas, planícies, lagos, enseadas, porque é lindíssima, simultaneamente acolhedora e selvagem, aberta e misteriosa. A gente, porque — ah, que inveja! — ama o seu país e o seu rico património, que sabe proteger e de que sabe desfrutar. Mas também porque, exceptuando as qualidades que referi, encontro nela traços que nos são familiares: por exemplo, um alegre desrespeito pelo «socialmente correcto». Enquanto ali ao lado, na Grã-Bretanha, as famílias da pequena burguesia botam os filhos na cama ao fim da tarde, nesta terra do trevo, nesta ilha a que chamam Esmeralda por ser de um verde tão brilhante (um presente da copiosa chuva), nós vemos os pimpolhos à noitinha, nos restaurantes e nos bares, aos lado dos pais (e das mães), que cervejam pacata e abundantemente ou bebem o seu uísque como nós, antes, bebíamos o bagaço.
E há uma outra qualidade nos Irlandeses (ou, pelo menos, em muitos Irlandeses) que eu prezo particularmente. Ela revelou-se-me na minha primeira visita, em serviço — foi então que me deixei encantar pelo país e me prometi um regresso em férias.
Tinha de percorrer longas distâncias e recusei-me a conduzir naquilo que, para mim, é o lado errado da estrada. Mas um colega, com quem viajava, declarou, com tranquila e superior segurança, que não haveria problemas, estava habituado a essas coisas, conduziria ele... só mais tarde, e tarde de mais, me explicou que a sua experiência se limitava a uma única viagem em estradas inglesas — durante a qual tivera um acidente.
Embalado na ignorância deste sombrio pormenor, aceitei a solução. E o que tinha de acontecer aconteceu: para os lados de Killarney, passámos junto de um castelo medieval. O perito condutor de volante à direita olhou-o e comentou: «Olha que castelo tão giro!»; eu respondi: «Olha o carro que aí vem!»; ele desviou-se — mas para o lado que os seus reflexos lhe ditaram, ou seja, para a direita; e a direita era o meio da estrada.
Choque frontal, felizmente a baixa velocidade. O colega a decretar «explique você, que o seu inglês é melhor». Uma senhora irlandesa em crise, tanto mais que o carro era novo e o que iria o marido dizer. Uma GNR (que lá se chama «Garda») simpática e eficiente. Regresso ao hotel de boleia, oferecida por um cordialíssimo espectador. Dois valentes uísques para recompor as emoções. E, no dia seguinte, saída em seguro táxi, para evitar males maiores.
Solução abençoada: pude, enfim, apreciar a paisagem sem ter o estômago contraído. E a paisagem era magnífica. Em certo ponto, à beira de um lago, passámos por uma casinha encantadora, que, se houvesse justiça neste mundo, seria minha; e o motorista, tanto ou mais conversador que os portugueses, informou: «Essa casa está sempre vazia. Ninguém lá fica muito tempo...». Sorrindo, perguntei se estava assombrada. E, com a maior naturalidade, ele respondeu-me:
— Não. Por acaso, esta não está.
E aqui têm a tal qualidade que tanto me impressionou e agradou.
É bom ver gente que continua a conviver com as suas tradições e com os seus fantasmas, sem se apressar a ligar para a SIC ou para a TVI na esperança de trinta segundos de protagonismo televisivo.

João Aguiar

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 06


OS ATRASADOS
      Não nos cairá bem vermos um senhor de cinquenta ou sessenta anos empoleirado num skate fazendo habilidades; estará no seu direito e não virá mal ao mundo por causa disso, mas enfim, espera-se dele uma outra maturidade. Porém, muito mais chocante ainda, no meu humilde entender, é ver um jovem comportar-se e, sobretudo, pensar como um senhor de cinquenta ou sessenta anos. Ora, é isto, mais ou menos, o que me parece ver quando leio certos trabalhos de certos jovens historiadores  portugueses  que  escrevem  e pensam agarrados a conceitos que estão mais datados do que a própria História.
Esta crónica não pretende ser uma crítica e ainda menos um ataque pessoal, de modo que não citarei nomes — que, de resto, não interessam para o caso; em contrapartida, é forçoso que cite exemplos. Assim, num (aliás, bem documentado) trabalho relativo à batalha de Aljubarrota, encontrei a noção de que as causas do conflito seriam, na sua essência, ligadas à luta de classes — e nada mais; e num outro trabalho, de outro autor igualmente bem documentado, versando as batalhas navais de Chaul (1508) e Diu (1509), deparei com a afirmação definitiva, direi mesmo dogmática, de que, excepto talvez no caso da tomada de Ceuta, as causas da expansão portuguesa se resumiriam, muito simplesmente, à furiosa fome do lucro; não está escrito dessa maneira, mas é esse o claro sentido.
Ora bem. Eu conheço e rejeito a visão histórica que o velho Estado Novo nos impingiu durante meio século. Longe de mim acreditar ingenuamente que Portugal inteiro estava, como nação em armas, no campo de Aljubarrota; ou que partimos para o império imbuídos somente de ideais puros e o sonho de dar novos mundos ao mundo e aumentar a pequena Cristandade (noção que hoje, aliás, seria de validade altamente discutível, sobretudo se o aumento fosse feito pelas armas). Mas também sei que, se é verdade que essa visão está de todo ultrapassada, também o está a visão puramente «classista» e economicista da História, que é manifestamente incompleta. Deixou, há muito, de fazer sentido considerar apenas a luta de classes e a economia como motores do devir histórico. Motores únicos, entenda-se. Porque nem o homem nem o comportamento humano podem ser reduzidos estritamente a tais factores.
Se assim fosse, e para considerar os dois exemplos referidos, não haveria em Aljubarrota, no exército de D. João I, um só membro da alta nobreza; e, entre os portugueses integrados no exército de Castela, só haveria, estritamente, grandes nobres, desprovidos da sua peonagem e outros acompanhantes e auxiliares. Do mesmo modo, no exemplo imperial, a coroa portuguesa teria abandonado, sistemática e rapidamente, as praças que não lhe rendiam sólidos metais, aquelas onde só se consumiam cabedais e vidas, sem proveito. Ora, sabemos que isto não é verdade — e este não ser verdade contribuiu para que, apesar das inegáveis rapinagens, saques e outras tropelias, terminássemos o ciclo imperial praticamente tão pobres como quando o começámos.
Em ambos os exemplos, houve, parece-me, algo mais do que um motivo único. A análise desse «algo mais» é, de resto, uma das matérias mais interessantes da pesquisa histórica. E não entendo como há gente, gente nova, que se mantém agarrada à já velha noção reducionista, que, além de ignorar os factores psicológicos, a mentalidade e os valores das várias épocas, se encerram numa torre feita de inenarrável secura e inenarrável tédio.
João Aguiar
Mosteiro da Batalha

domingo, 18 de novembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 05


PASSAGEIROS QUASE SECRETOS
Talvez seja bom sabermos que, quando viajamos pela História de Portugal, temos muitas vezes em nossa companhia alguns passageiros que raramente se mostram, a ponto de não darmos, sequer, pela sua presença. E, no entanto, essa presença é importante, porque nos ajuda a corrigir muitas noções erradas ou, pelo menos, distorcidas.
Assim, por exemplo, nós e os Mouros. Toda a gente sabe (enfim, mais ou menos) que Portugal é, em substancial parte, um fruto da reconquista cristã da Península, das Cruzadas do Ocidente. Isto é verdade. E também toda a gente sabe (mais ou menos) que, por uma consequência lógica do que atrás referi, o Mouro, islâmico, foi o inimigo hereditário do Português, cristão, que passou toda a sua esforçada vida a «dar neles», para usar uma saborosa frase medieva, sem dó nem piedade nem concessões; os bons éramos nós, os maus eram eles, pronto.
Isto é que já não é tão verdade. Eu poderia citar numerosos passageiros secretos que o segredam, mas vou limitar-me a dois. O primeiro é a lenda medieval portuguesa chamada «de Gaia» ou «do rei Ramiro», que conta como Ramiro II, rei de Leão, matou Alboazer Alboaçam, «senhor de toda a terra de Gaia, até Santarém». Não tenho espaço para contar a lenda em pormenor, porém aqui ficam os elementos essenciais. Primeiro, foi o cristão Ramiro quem iniciou as maldades, fazendo-se amigo de Alboaçam para raptar-lhe a irmã, por quem se apaixonara, sendo ele já casado; o subsequente rapto da sua mulher por Alboaçam foi uma lógica represália. Segundo, a forma como Ramiro recuperou a rainha foi traiçoeira e pouco heróica. Terceiro, a maldade final também lhe pertence, porque a seguir matou-a, com o apoio do próprio filho, depois de ela lhe ter dito que chorava «porque mataste aquele mouro que era melhor que ti». Ou seja: a figura simpática, na lenda, é Alboaçam. Trata-se de uma lenda, claro, mas ela diz muito sobre a mentalidade e o sentir da gente que a produziu e que é... a nossa gente. Não é, aliás, caso único, pois há outras lendas de mouras e mouros em que a simpatia parece ir para o «lado deles».
O segundo passageiro secreto ou quase secreto já não é lendário e sim histórico — foi, aliás, tratado em profundidade por Adalberto Alves no seu belíssimo livro As Sandálias do Mestre: trata-se de uma aliança que existiu entre o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, e o senhor muçulmano de Silves, Ibn Qasi. Essa aliança malogrou-se porque Ibn Qasi foi assassinado, porém aquilo que se sabe e/ou se pode conjecturar é extremamente interessante.
D. Afonso Henriques estava intimamente ligado à ordem dos templários, que desempenhou um papel importante na consolidação de Portugal; por seu turno, Ibn Qasi, poeta e sábio, criou uma ordem de cavalaria islâmica, os muridinos, cuja linha de pensamento estaria próxima dos ismaelitas. Ora, há muito que se fala nas relações, discretas mas cordiais, entre templários e ismaelitas, na Terra Santa. Daí ser possível, pelo menos, especular, à margem de razões políticas e estratégicas, sobre uma possível tentativa de ligação paralela entre templários e muridinos. É um facto registado que Afonso Henriques ofereceu a Ibn Qasi um cavalo, um escudo e uma lança, presentes que tinham uma clara carga simbólica, espiritual.
Como disse, a aliança malogrou-se. Mesmo assim, altera a imagem do nosso rei como um mata-mouros incondicional, tanto mais que protegeu, por exemplo, os mouros de Lisboa, após a tomada da cidade.
Por mim, gosto destes passageiros. Fazem-nos pensar.
João Aguiar 
Mértola e Alcoutim 

sábado, 10 de novembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 04


ESTADOS DE GRAÇA

Uma das utilidades da História é servir-nos de referência para o tempo presente. Assim: se atravessamos um momento de relativa prosperidade ou grande orgulho nacional, convém-nos olhar momentos passados e considerar as asneiras ou as inconveniências cometidas, para ficarmos sóbrios e evitarmos reincidências; e, em tempos deprimidos, quando o nosso moral colectivo está em baixa, é recomendável considerar outros tempos em que o país, entrado numa espécie de «estado de graça» — não sem imperfeições, evidentemente —, se colocou na vanguarda ou reagiu com eficácia a circunstâncias adversas; isto para evitar o enjoativo e destrutivo processo de autoflagelação e de indiferença que nada corrige e só destrói.
Como terão já percebido, é a esta utilização da História que vou referir-me, já que muito raramente atravessámos um período tão degradado como o actual. Precisamos urgentemente de recordar alguns «estados de graça», entre os vários que tivemos — e não incluo, sequer, o tão evocado período das navegações e descobrimentos.
Assim, convido-vos a viajar, antes de mais, até à revolução de 1383 – 1385. Estávamos, na altura, em plena crise: enfraquecidos por três guerras desastrosas, sem Rei, e na iminência de vermos aclamar D. Beatriz, que casara com o rei de Castela, o que significava, obviamente, uma união das duas coroas. Por isso se fez a revolução e ela colocou-nos na vanguarda política da Europa. Pela primeira vez, uma boa parte da população agiu como povo — uma acção política, uma acção que recusou os princípios consagrados da sucessão dinástica e os substituiu por outros, com a eleição, em cortes, de um novo rei (D. João I) que era um filho bastardo. Pela primeira vez, a «arraia miúda» levantou-se por uma causa política e juntou-se a outras classes sociais, quando não as pressionou. Pela primeira vez, uma parte substancial do país actuou como nação. Que me lembre, tal não acontecera ainda, nestes termos, em toda a Europa.
A segunda viagem leva-nos ao período que se seguiu a 1640. Novamente, um Portugal extremamente enfraquecido. Mas, apesar de todas as deficiências, é prodigioso como foi possível manter (e vencer) uma guerra que durou mais de vinte anos e que não se travou somente na frente militar nem somente dentro do rectângulo: éramos atacados em várias frentes, em toda a extensão do já decadente império, tínhamos de obter o reconhecimento diplomático da Europa, refazer o exército, a marinha — e, ao mesmo tempo, a economia. E, apesar de tudo isso, foi-nos possível salvar o principal e vencer essa guerra de mais de dois decénios.
Para a terceira viagem, não precisamos de ir tão longe no tempo: somente aos anos 70 do século XX. Refiro-me à integração do mais de meio milhão de pessoas que entraram no país, vindas de África, no início e no seguimento do processo de descolonização. Evidentemente, houve traumas, problemas, disfunções; mas, numa perspectiva global, é notável que aquela integração fosse tão rápida, tão pacífica e, julgo que podemos dizê-lo, tão eficiente. Note-se que não me refiro apenas às medidas tomadas pelas autoridades. Refiro-me também, quase diria sobretudo, à atitude dos próprios retornados e ao seu esforço; e também à população no seio da qual se instalaram ou reinstalaram. Atritos? Alguns, sim — nada que se compare ao longo trauma do regresso dos pieds-noirs idos da Argélia para França.
Repito: nenhum destes «momentos de graça» foi perfeito. A perfeição, como se sabe, não é deste mundo. Mas, dentro do possível, fizemos o melhor. E, num momento como o actual, não será descabido recordá-lo. Não para meditarmos lamurientamente sobre o passado, mas antes para...
Para acordarmos. O que já não seria nada mau.
João Aguiar
Capela da Memória - Cabo Espichel

sábado, 3 de novembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 03


JUSTA HOMENAGEM

Peço, como grande favor, que não me enviem para a fogueira, pelo menos antes de terem acabado de ler o presente texto — que é uma homenagem a um censor da Inquisição. Uma homenagem, proclamo eu, que é justa e merecida.
Passo a explicar: um belo dia, na década de 70 do século XVI, um frade dominicano, censor do famoso, temido e sinistro Santo Ofício, recebeu a tarefa de dar parecer sobre um livro que fora submetido àquele tribunal, para efeitos de eventual publicação. O livro consistia num longo poema, recheado de episódios eróticos, divindades pagãs, descrições de voluptuosos corpos femininos, contestações à situação político-social, lamentos sobre a decadência das classes dominantes. Continha, pois, matéria mais do que suficiente não só para ver recusada a licença de publicação como ainda para ser queimado, em prólogo ominoso do que poderia vir a acontecer ao seu autor.
E que fez o censor da Inquisição? Pegou beatamente na sua pena, aguçou-lhe a ponta, mergulhou-a no tinteiro e escreveu que, tendo lido aqueles versos, não achey nelles cousa algua escandalosa nem contrária â fe & bõs custumes. Mais ainda: referindo-se à presença constante dos deuses pagãos no tal poema — em que, a dada altura, Júpiter só por pouco não faz um filho a Vénus, em público —, ele comentou que isto he Poesia & fingimento (...) e por isso me pareceo o liuro de se imprimir. Incluía também no parecer um elogio ao grande engenho do escritor.
Os leitores já terão adivinhado do que se trata, mas não resisto a transcrever o início do texto inquisitorial: Vi por mandado da santa & geral inquisição estes dez Cantos dos Lusiadas de Luis de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizerão em Asia & Europa...
Exactamente. O censor do Santo Ofício era Frei Bartolomeu Ferreira, o livro era Os Lusíadas, o autor Luís de Camões. E é preciso conhecer um pouco da mentalidade oficial da época para entender quão anormal, quão escandaloso foi o parecer dado pelo frade dominicano. E escandaloso, atente-se, não só para a época: um Camões do século XX veria certissimamente recusada a sua obra durante o período do Estado Novo.
Evidentemente, houve motivos para que tal acontecesse. António José Saraiva, na sua edição de Os Lusíadas, salienta-os: Camões era amigo e protegido do conde de Vimioso, que, além de ser um grande senhor, tinha valimento; lavrava uma guerra surda mas sem quartel entre os jesuítas, que dominavam a corte, e os dominicanos, que dominavam o Santo Ofício; estes contavam com o apoio da rainha viúva, Catarina de Áustria, já afastada do governo, porém ainda com alguma influência, e note-se que fora ela quem patrocinara a primeira edição das obras completas do também «perigoso» Gil Vicente. Houve, segundo as palavras de Saraiva, uma pequena conspiração visando levar ao prelo o poema épico de Camões — uma conspiração bem sucedida, como sabemos e como folgamos.
E veja-se como as posições, as ideias os valores, estavam baralhados naquele específico momento da nossa História. Os jesuítas tinham uma tradição de cultura e até de certa tolerância, mormente na sua actuação em terras do Oriente e particularmente na China; os dominicanos, nesse domínio, haviam-se mostrado bem mais literalistas e rigorosos — além de terem a Inquisição nas mãos. No entanto, foi graças a eles, em especial a Frei Bartolomeu Ferreira, que o mais genial texto português foi publicado.
Fossem quais fossem os motivos, estou-lhes muito grato.
João Aguiar
Os Lusíadas na calçada portuguesa. Jardim de Camões - MACAU