PECADO ORIGINAL
Numa crónica publicada há alguns meses, referi-me
à mãe do nosso primeiro rei e escrevi que «as relações entre Afonso Henriques e
D. Teresa foram bastante mais complexas e menos violentas do que diz a lenda».
Como o tema da crónica era outro, não desenvolvi tal ideia, antes a deixei
ficar neste ponto. Mas para quem, como nós, gosta de viajar pela História, tem
certamente interesse explorar um pouco a questão, mesmo porque estamos falando
de uma espécie de «pecado original» que teria presidido ao nascimento do nosso
país: um filho revoltando-se contra a mãe e defrontando-a no campo de batalha.
Aliás, a lenda veio complementar a história:
conta-nos como D. Teresa foi aprisionada após o recontro de São Mamede e depois
posta a ferros e encerrada no castelo de Lanhoso, de onde lançou uma soturna
maldição contra o filho, a qual veio a cumprir-se muitos anos mais tarde, no
cerco de Badajoz, quando D. Afonso, já velho mas ainda combatente, foi ferido e
aprisionado. E é curioso ver como a lenda, ao apoderar-se do nosso rei
fundador, o fez evoluir, simultaneamente, em sentidos opostos: por um lado, é
um filho que trata mal a mãe, (o que não é coisa de todo recomendável), mas,
por outro, não só convive com milagres mas merece, até, a santificação — houve,
aliás, múltiplas tentativas para o canonizar. Esta dualidade, note-se, é muito
típica da figura do herói clássico, quero dizer: do herói grego, que comete
grandes feitos mas também, eventualmente, grandes inconveniências, pelas quais
vem a pagar. Portanto, a lenda tratou D. Afonso Henriques, de certo modo, «à
maneira grega».
Isto quanto à lenda. Mas a História diz-nos algo
diferente. Em primeiro lugar, o conflito entre D. Afonso Henriques e D. Teresa,
entre filho e mãe, era coisa vulgar naqueles tempos, sobretudo nas famílias
reinantes: veja-se, por exemplo, a história da monarquia leonesa. Aliás, tendo
em conta os costumes da época, uma «simples batalha» era equivalente, digamos,
a uma discussão particularmente acesa.
Em segundo lugar, D. Teresa não foi aprisionada
após São Mamede. Não assistiu à batalha, evidentemente; há quem ponha mesmo a
séria hipótese de ela, na altura, não se encontrar, sequer, em Portugal e sim
na Galiza.
E, finalmente, talvez mais importante ainda: as
relações entre mãe e filho não cessaram em São Mamede; pelo menos, as relações
políticas. Sabe-se isto, quanto mais não seja, indirectamente. De facto, D.
Teresa manteve, até à sua morte, em 1130, a ligação com o conde Fernão Peres de
Trava, que, dois anos antes, comandara as suas tropas, vencidas pelo filho.
Ora, nesse mesmo ano de 1130, cerca de seis meses antes do seu falecimento —
não custa muito supor que ela já estivesse doente e impossibilitada de viajar
—, o mesmíssimo conde Fernão Peres estava, calma e pacificamente, em Braga. E a
sua presença é atestada por um documento: uma doação feita por D. Afonso
Henriques e na qual se encontra a assinatura do conde galego, como confirmante
do acto (um acto político) do jovem príncipe que o derrotara em 1128.
Portanto, as relações mantinham-se; não ternas,
talvez, porém mantinham-se. Podemos ficar descansados porque, no nosso
nascimento, não houve um pecado original especificamente português.
João Aguiar
Tentação - Óleo sobre tela |
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