terça-feira, 4 de dezembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 08


PECADO ORIGINAL

Numa crónica publicada há alguns meses, referi-me à mãe do nosso primeiro rei e escrevi que «as relações entre Afonso Henriques e D. Teresa foram bastante mais complexas e menos violentas do que diz a lenda». Como o tema da crónica era outro, não desenvolvi tal ideia, antes a deixei ficar neste ponto. Mas para quem, como nós, gosta de viajar pela História, tem certamente interesse explorar um pouco a questão, mesmo porque estamos falando de uma espécie de «pecado original» que teria presidido ao nascimento do nosso país: um filho revoltando-se contra a mãe e defrontando-a no campo de batalha.
Aliás, a lenda veio complementar a história: conta-nos como D. Teresa foi aprisionada após o recontro de São Mamede e depois posta a ferros e encerrada no castelo de Lanhoso, de onde lançou uma soturna maldição contra o filho, a qual veio a cumprir-se muitos anos mais tarde, no cerco de Badajoz, quando D. Afonso, já velho mas ainda combatente, foi ferido e aprisionado. E é curioso ver como a lenda, ao apoderar-se do nosso rei fundador, o fez evoluir, simultaneamente, em sentidos opostos: por um lado, é um filho que trata mal a mãe, (o que não é coisa de todo recomendável), mas, por outro, não só convive com milagres mas merece, até, a santificação — houve, aliás, múltiplas tentativas para o canonizar. Esta dualidade, note-se, é muito típica da figura do herói clássico, quero dizer: do herói grego, que comete grandes feitos mas também, eventualmente, grandes inconveniências, pelas quais vem a pagar. Portanto, a lenda tratou D. Afonso Henriques, de certo modo, «à maneira grega».
Isto quanto à lenda. Mas a História diz-nos algo diferente. Em primeiro lugar, o conflito entre D. Afonso Henriques e D. Teresa, entre filho e mãe, era coisa vulgar naqueles tempos, sobretudo nas famílias reinantes: veja-se, por exemplo, a história da monarquia leonesa. Aliás, tendo em conta os costumes da época, uma «simples batalha» era equivalente, digamos, a uma discussão particularmente acesa.
Em segundo lugar, D. Teresa não foi aprisionada após São Mamede. Não assistiu à batalha, evidentemente; há quem ponha mesmo a séria hipótese de ela, na altura, não se encontrar, sequer, em Portugal e sim na Galiza.
E, finalmente, talvez mais importante ainda: as relações entre mãe e filho não cessaram em São Mamede; pelo menos, as relações políticas. Sabe-se isto, quanto mais não seja, indirectamente. De facto, D. Teresa manteve, até à sua morte, em 1130, a ligação com o conde Fernão Peres de Trava, que, dois anos antes, comandara as suas tropas, vencidas pelo filho. Ora, nesse mesmo ano de 1130, cerca de seis meses antes do seu falecimento — não custa muito supor que ela já estivesse doente e impossibilitada de viajar —, o mesmíssimo conde Fernão Peres estava, calma e pacificamente, em Braga. E a sua presença é atestada por um documento: uma doação feita por D. Afonso Henriques e na qual se encontra a assinatura do conde galego, como confirmante do acto (um acto político) do jovem príncipe que o derrotara em 1128.
Portanto, as relações mantinham-se; não ternas, talvez, porém mantinham-se. Podemos ficar descansados porque, no nosso nascimento, não houve um pecado original especificamente português.

João Aguiar

Tentação - Óleo sobre tela

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