quarta-feira, 25 de setembro de 2013

PEQUENOS TEXTOS - CONTO


O BECO DA CARPIDEIRA

Macau. Ano da graça do Senhor de 1999

Do que eu sentia saudades era do tempo de Verão, do tempo quente: a roupa empapada de transpiração, colada ao corpo, o ar escaldante como vapor de uma chaleira posta ao lume, o contraste delicioso do outro ar, condicionado, ao entrar num qualquer edifício e depois, à saída, o regresso ao calor, os óculos instantaneamente embaciados e novamente, quase sem transição, o suor a brotar da pele, a espalhar-se pela camisa e pelas calças. A chuva súbita e morna que se mistura com a água libertada pelo corpo. Memórias vagamente nostálgicas e quase sensuais de chuvas passadas, chuvas tropicais, recebidas noutro lugar com o mesmo prazer secreto e morno.

Contudo, em boa verdade, não podia queixar-me do tempo. Era um tempo magnífico de estação seca, um Dezembro luminoso e doce. Que lhe encontrasse uma ténue tristeza escondida nessa luz e no próprio ar, só a mim podia ser atribuída tal responsabilidade e só de mim podia queixar-me. O defeito estava em mim, não no dia nem na cidade.
O defeito estava ainda, talvez, em que nesse dia eu havia percorrido longa e lentamente a cidade, toda a cidade — e uma parte do Território — a pé. Não segundo um itinerário sistemático, antes ao sabor de um capricho inconsciente. E agora a tarde resvalava muito devagar para a noite e um cansaço mortal ganhava-me o corpo enquanto, num vaivém automático e absurdo, passava e voltava a passar diante do beco.
Levei algum tempo a aperceber-me do que fazia. Era um vaguear obsessivo que começara na igreja de São Domingos e se alargara depois em percursos mais ou menos circulares, cada vez mais amplos. Agora fixara-se naquela rua, primeiro num sentido e depois no inverso, mas sempre com uma paragem em frente do beco.
Este não tinha nenhum traço particular. Era um dos muitos que existem na parte velha da cidade, sombrios e desarrumados. Todos esses becos me atraem porque é a cidade velha que me atrai especialmente, mas há outros que me parecem bem mais interessantes — por causa de uma árvore, ou de um revestimento vegetal a cobrir paredes enegrecidas pela humidade, ou de um pequeno altar consagrado a uma qualquer divindade doméstica.
Ali não havia nada disso e no entanto eu não conseguia afastar-me.
Fixei o olhar na placa da toponímia e li:
Beco da Carpideira.
O nome não me era estranho. Distraidamente, coleccionara-o na memória ao lado de outros nomes, a Calçada das Verdades, a Travessa da Guelra, o Pátio do Comprador, a Travessa de Sancho Pança, e até esse dia não fora mais que uma simples peça de colecção e não havia qualquer motivo para que não fosse apenas isso e assim continuasse. Nenhum motivo, a não ser que, desta vez, eu queria entrar.
Também não deveria haver razão especial que me impedisse, excepto que sentia uma relutância tão forte quanto a vontade de o fazer. Relutância, insisto, e não medo. Esta era uma distinção muito nítida. Foi ela que me decidiu, já que não encontrava uma explicação aceitável para o meu comportamento — a não ser a disposição particular com que me levantara nessa manhã.
Portanto, entrei no Beco da Carpideira e dominei o estremecimento que me sacudiu o corpo ao dar o primeiro passo. O Sol desapareceu, ficou na rua que deixara atrás de mim.
Velhas casas, dois contentores de lixo, um gato a deslizar entre dois bancos de madeira abandonados ali. Dois velhos chineses que me olharam com uma indiferença tranquila, um garoto do seus oito anos a fazer trabalhos escolares sentado numa cadeira de metal desconjuntada. E um forte perfume de incenso, que me levou até ao fundo do beco, onde vi a porta, aberta, de uma loja de artigos religiosos budistas.
Lojas dessas encantam-me — não pela qualidade nem pela beleza de cada objecto, regra geral de plástico ou de lata, a mais pura fancaria no mais puro kitsch, mas pelo conjunto, a galeria de divindades, o mistério das inscrições em caracteres chineses, as figuras de papel que servem para queimar nos funerais. Mas nunca entro sem ir acompanhado de alguém que fale cantonense, porque não sei regatear, nem sequer em português.
No entanto, entrei. Pela mesma razão e com as mesmas sensações mescladas que havia experimentado ao penetrar no beco.
Lá dentro vi — quando os meus olhos se habituaram à penumbra — o dono da loja: um chinês de longa barba, muito mais velho do que os que eu vira lá fora.
Um chinês fora de moda.
Digo isto por várias razões: porque aquela barba, muito branca e sedosa, era a mais longa que eu já observara, excepto em filmes (e, ainda assim, filmes americanos com péssimas imitações de personagens chinesas); pela túnica que vestia, que era verde-esmeralda, de seda brilhante, e nem sequer se parecia com as vestes tradicionais; e, talvez mais que tudo, pelo sorriso.
Um sorriso indefinível, ao mesmo tempo cordial, aberto — e enigmático. Triste, também. E ainda, por estranho que seja o paradoxo, reconfortante.
Com este sorriso o homem olhou-me e disse, em voz baixa:
— Não quer comprar nada...
A entoação não era exactamente interrogativa, mas claro que a tomei como tal, pelo que respondi:
— Não sei. Entrei só para ver... — e enquanto dizia isto, resignei-me a comprar, pelo menos, um porta-pivetes de lata, igual a outros que vira em lojas do mesmo género e que sabia serem baratos, mesmo sem regatear. Ele, porém, não me deixou sequer encetar a aquisição.
— O senhor não me compreendeu. Eu disse: «não quer comprar nada». Não era uma pergunta, era uma afirmação. De facto, não quer comprar nada. Não entrou aqui para comprar.
Fitei-o, sem resposta. Então, o homem sorriu novamente.
Eu estava embaraçado, aborrecido e, admito, alarmado. Não que me sentisse ameaçado por um perigo físico, mas havia qualquer coisa estranha no ar. Para sacudir a perturbação, ensaiei uma banalidade muito a propósito:
— Fala muitíssimo bem português, não tem sequer um vestígio de sotaque. Onde aprendeu?
Foi a sua resposta que veio mostrar-me, enfim, como era certo haver qualquer coisa no ar, além do perfume de incenso:
— Mas, meu caro senhor... eu estou a falar-lhe em cantonense.
Abri a boca para dizer «que disparate» e também para rir, porque não entendo uma só palavra de cantonense — nem de mandarim, aliás.
Voltei a fechar a boca sem ter falado e sem vontade de rir. Porque compreendi, de repente, que ele tinha razão. Falava em cantonense; com um pequeno esforço de concentração, eu conseguia, até, ouvir os sons que para mim eram ininteligíveis. Ao mesmo tempo, o seu discurso soava dentro do meu cérebro, em português. Ou talvez, em vez de palavras, fossem imagens que traduziam o que ele me dizia.
Agora, o que quer que estivesse a acontecer era claramente assustador, mas ele não me deu tempo para sentir medo.
— Venha! — disse. — Já estamos atrasados.
Disse-o como se aquilo fosse a coisa mais natural, como se houvéssemos combinado aquele encontro. Afastou um cortinado que tapava a parede do fundo e fez-me um sinal para que o seguisse.
A escada, estreita e com degraus incómodos, de tão altos, parecia descer até ao centro do planeta. É um exagero, evidentemente, porém foi esse o meu pensamento. Descemos sem parar durante uns bons dois minutos, alumiados somente por poucas velas esparsas, fixas em pequenas reentrâncias da parede. Em baixo havia uma porta, que o meu guia abriu — e logo o perfume de incenso se tornou mais forte.
Antes de entrar, o chinês virou-se para mim:
— Não pense que a sua presença aqui é uma coisa vulgar...
— Seria a última coisa que eu pensaria — ripostei. — Não sei sequer o que estou aqui a fazer nem que lugar é este.
Ele encolheu os ombros, como se isso não tivesse importância. Transpôs a porta. Fui-lhe no encalço e encontrei-me numa sala que devia ser grande mas cujas dimensões não podia calcular. As velas, às centenas, não chegavam para rasgar a penumbra. A princípio, julguei que não havia mais ninguém, porque as pessoas se confundiam com as imagens — o Buda sentado na posição do lótus, Kun Iam, a deusa da misericórdia, A-Mah, a concubina celeste, protectora dos pescadores, Hông-kòng Sân, o protector dos patos, Na Cha, o pequenino deus traquinas. E também, surpreendentemente, Nossa Senhora, Santo António, São João e São Francisco Xavier.
Diante de cada imagem ardiam velas e pivetes de incenso, diante de cada imagem oravam pessoas que, afinal, não se mantinham completamente imóveis, pois algumas faziam a tripla vénia tradicional — tanto perante as divindades budistas como diante dos santos cristãos.
A voz do meu guia e anfitrião soou muito perto de mim:
— Infelizmente, há poucos portugueses, além do senhor. Quase todos aqueles que podiam estar aqui já partiram. E a sua presença é um caso excepcional, meu caro amigo. Só se deve a um facto que talvez seja obra de puro acaso: durante o dia de hoje, o senhor visitou Nossa Senhora na igreja de São Domingos, A-Mah no templo da Barra, a capela de São Francisco Xavier em Coloane e foi ainda ao Kun Iam Tong. Tinha algum propósito ou andava a fazer turismo?
Respondi-lhe, num resmungo, que já visitara Macau várias vezes e já fizera todo o turismo que havia para fazer.
— Foi o que eu pensei — replicou o velho — e aí tem a razão por que está aqui, apesar de nunca ter vivido nesta terra. Agora venha: a hora chegou.
— Que hora?
Ele envolveu-me num olhar longo e triste.
— A hora da transferência. A verdadeira, não aquela que preparam lá em cima, à superfície.
Pela segunda vez, não tive palavras com que dar uma resposta — o que, em mim, é raro.
— Venha! — insistiu ele.
Conduziu-me até ao centro da sala. Surpreendentemente, os outros não pareceram dar pela sua presença, continuaram a orar e a acender molhos de pivetes de incenso e a curvar-se perante as imagens.
O velho abriu os braços. Eu esperava ouvir uma longa invocação e assistir a um complicado ritual, mas enganei-me. O que ouvi da sua boca foi isto:

Nós somos aqueles que se deram a esta terra. Que nunca a roubaram nem a violentaram.
Que não deram o seu corpo ao jogo nem a sua alma ao lucro.
Que deixaram em paz a árvore das patacas sem a regar de mentiras e embustes e traições.
Nós somos o calor, o perfume e o coração da terra.
Somos Macau e Ou-Mun.
Nós somos o fumo do incenso e o cantar das aves. O tufão e a brisa. A chuva e o Sol.
Somos isso e nada mais.

Calou-se. O eco da sua voz flutuou por instantes, em torno das cabeças dos santos e das divindades, e depois extinguiu-se.
Mal ele se extinguiu, toda a sala ressoou, tremeu ao som cavo de um gong. E eu ressoei e tremi com a sala, ao mesmo tempo que as imagens, todas as imagens se fendiam de alto a baixo num estertor de ruídos secos e mortais.
Entontecido, atordoado, olhei em volta e vi-me só.
Ah, sim, os devotos ainda lá estavam, porém tinham substituído as imagens quebradas: haviam-se transformado em estátuas de terracota, como os soldados que guardam desde há séculos o túmulo de um imperador chinês. Em minha frente, o velho da túnica, o que me trouxera, mantinha-se imóvel, de braços abertos. Fui vê-lo de perto. Os traços do seu rosto de terracota conservavam o mesmo sorriso reconfortante e triste.
Só, terrivelmente só, subi a escada interminável.
Interminável é o termo exacto: não cheguei a atingir o topo. Encontrei-me de repente à entrada do Beco da Carpideira, envolvido pelo ar morno da tarde e pela luz dourada do crepúsculo.
Cinco minutos depois, no Largo do Senado, ao cumprimentar um amigo com quem me cruzei, ainda tremia. Ele percebeu e perguntou-me:
— Não te sentes bem?
— Um toque de gripe — respondi.

João Aguiar