JUSTA HOMENAGEM
Peço, como grande favor, que não me enviem para a
fogueira, pelo menos antes de terem acabado de ler o presente texto — que é uma
homenagem a um censor da Inquisição. Uma homenagem, proclamo eu, que é justa e
merecida.
Passo a explicar: um belo dia, na década de 70 do
século XVI, um frade dominicano, censor do famoso, temido e sinistro Santo
Ofício, recebeu a tarefa de dar parecer sobre um livro que fora submetido
àquele tribunal, para efeitos de eventual publicação. O livro consistia num
longo poema, recheado de episódios eróticos, divindades pagãs, descrições de
voluptuosos corpos femininos, contestações à situação político-social, lamentos
sobre a decadência das classes dominantes. Continha, pois, matéria mais do que
suficiente não só para ver recusada a licença de publicação como ainda para ser
queimado, em prólogo ominoso do que poderia vir a acontecer ao seu autor.
E que fez o
censor da Inquisição? Pegou beatamente na sua pena, aguçou-lhe a ponta,
mergulhou-a no tinteiro e escreveu que, tendo lido aqueles versos, não achey nelles cousa algua escandalosa nem
contrária â fe & bõs custumes.
Mais ainda: referindo-se à presença constante dos deuses pagãos no tal poema —
em que, a dada altura, Júpiter só por pouco não faz um filho a Vénus, em
público —, ele comentou que isto
he Poesia & fingimento (...) e
por isso me pareceo o liuro de se imprimir. Incluía também no parecer um elogio ao grande engenho do escritor.
Os leitores já terão adivinhado do que se
trata, mas não resisto a transcrever o início do texto inquisitorial: Vi por mandado da santa & geral
inquisição estes dez Cantos dos Lusiadas de Luis de Camões, dos valerosos
feitos em armas que os Portugueses fizerão em Asia & Europa...
Exactamente. O censor do Santo Ofício era
Frei Bartolomeu Ferreira, o livro era Os Lusíadas, o autor Luís
de Camões. E é preciso conhecer um pouco da mentalidade oficial da época para
entender quão anormal, quão escandaloso foi o parecer dado pelo frade
dominicano. E escandaloso, atente-se, não só para a época: um Camões do século
XX veria certissimamente recusada a sua obra durante o período do Estado Novo.
Evidentemente, houve motivos para que tal
acontecesse. António José Saraiva, na sua edição de Os Lusíadas, salienta-os:
Camões era amigo e protegido do conde de Vimioso, que, além de ser um grande
senhor, tinha valimento; lavrava uma guerra surda mas sem quartel entre os
jesuítas, que dominavam a corte, e os dominicanos, que dominavam o Santo
Ofício; estes contavam com o apoio da rainha viúva, Catarina de Áustria, já
afastada do governo, porém ainda com alguma influência, e note-se que fora ela
quem patrocinara a primeira edição das obras completas do também «perigoso» Gil
Vicente. Houve, segundo as palavras de Saraiva, uma pequena conspiração visando
levar ao prelo o poema épico de Camões — uma conspiração bem sucedida, como
sabemos e como folgamos.
E veja-se como as posições, as ideias os
valores, estavam baralhados naquele específico momento da nossa História. Os
jesuítas tinham uma tradição de cultura e até de certa tolerância, mormente na
sua actuação em terras do Oriente e particularmente na China; os dominicanos,
nesse domínio, haviam-se mostrado bem mais literalistas e rigorosos — além de
terem a Inquisição nas mãos. No entanto, foi graças a eles, em especial a Frei
Bartolomeu Ferreira, que o mais genial texto português foi publicado.
Fossem quais fossem os motivos, estou-lhes
muito grato.
João Aguiar
Os Lusíadas na calçada portuguesa. Jardim de Camões - MACAU |
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