sábado, 3 de novembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 03


JUSTA HOMENAGEM

Peço, como grande favor, que não me enviem para a fogueira, pelo menos antes de terem acabado de ler o presente texto — que é uma homenagem a um censor da Inquisição. Uma homenagem, proclamo eu, que é justa e merecida.
Passo a explicar: um belo dia, na década de 70 do século XVI, um frade dominicano, censor do famoso, temido e sinistro Santo Ofício, recebeu a tarefa de dar parecer sobre um livro que fora submetido àquele tribunal, para efeitos de eventual publicação. O livro consistia num longo poema, recheado de episódios eróticos, divindades pagãs, descrições de voluptuosos corpos femininos, contestações à situação político-social, lamentos sobre a decadência das classes dominantes. Continha, pois, matéria mais do que suficiente não só para ver recusada a licença de publicação como ainda para ser queimado, em prólogo ominoso do que poderia vir a acontecer ao seu autor.
E que fez o censor da Inquisição? Pegou beatamente na sua pena, aguçou-lhe a ponta, mergulhou-a no tinteiro e escreveu que, tendo lido aqueles versos, não achey nelles cousa algua escandalosa nem contrária â fe & bõs custumes. Mais ainda: referindo-se à presença constante dos deuses pagãos no tal poema — em que, a dada altura, Júpiter só por pouco não faz um filho a Vénus, em público —, ele comentou que isto he Poesia & fingimento (...) e por isso me pareceo o liuro de se imprimir. Incluía também no parecer um elogio ao grande engenho do escritor.
Os leitores já terão adivinhado do que se trata, mas não resisto a transcrever o início do texto inquisitorial: Vi por mandado da santa & geral inquisição estes dez Cantos dos Lusiadas de Luis de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizerão em Asia & Europa...
Exactamente. O censor do Santo Ofício era Frei Bartolomeu Ferreira, o livro era Os Lusíadas, o autor Luís de Camões. E é preciso conhecer um pouco da mentalidade oficial da época para entender quão anormal, quão escandaloso foi o parecer dado pelo frade dominicano. E escandaloso, atente-se, não só para a época: um Camões do século XX veria certissimamente recusada a sua obra durante o período do Estado Novo.
Evidentemente, houve motivos para que tal acontecesse. António José Saraiva, na sua edição de Os Lusíadas, salienta-os: Camões era amigo e protegido do conde de Vimioso, que, além de ser um grande senhor, tinha valimento; lavrava uma guerra surda mas sem quartel entre os jesuítas, que dominavam a corte, e os dominicanos, que dominavam o Santo Ofício; estes contavam com o apoio da rainha viúva, Catarina de Áustria, já afastada do governo, porém ainda com alguma influência, e note-se que fora ela quem patrocinara a primeira edição das obras completas do também «perigoso» Gil Vicente. Houve, segundo as palavras de Saraiva, uma pequena conspiração visando levar ao prelo o poema épico de Camões — uma conspiração bem sucedida, como sabemos e como folgamos.
E veja-se como as posições, as ideias os valores, estavam baralhados naquele específico momento da nossa História. Os jesuítas tinham uma tradição de cultura e até de certa tolerância, mormente na sua actuação em terras do Oriente e particularmente na China; os dominicanos, nesse domínio, haviam-se mostrado bem mais literalistas e rigorosos — além de terem a Inquisição nas mãos. No entanto, foi graças a eles, em especial a Frei Bartolomeu Ferreira, que o mais genial texto português foi publicado.
Fossem quais fossem os motivos, estou-lhes muito grato.
João Aguiar
Os Lusíadas na calçada portuguesa. Jardim de Camões - MACAU

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