terça-feira, 4 de outubro de 2011

NASCI E CRESCI, MUITO SIMPLESMENTE, PORTUGUÊS

UMA SOLUÇÃO 
PRAGMÁTICA

Não nasci nem cresci monárquico ou republicano. Por um acaso histórico de que não tenho exagerado orgulho mas que também estou longe de lamentar, nasci e cresci, muito simplesmente, português. O mesmo não se pode dizer de muitos compatriotas meus, que poucos dias após terem vindo a este mundo, e sem possibilidade de fuga ou de escolha, foram filiados pelos pais num clube de futebol e cresceram, portanto, condicionados pela dupla qualidade de portugueses e de adeptos, sem saberem muito bem a que bandeira deviam maior lealdade.
Quer isto dizer que a minha opção pela ideia monárquica foi tomada em plena maturidade, após ter experimentado, na juventude, diversos entusiasmos e após ter atravessado, na idade adulta, um longo período de indiferença institucional. Não pretendo, obviamente, fazer a minha biografia ideológica - tal não se justificaria nem seria interessante - mas estas primeiras considerações servem para explicar que ao tornar-me monárquico a minha decisão foi essencialmente pragmática.
E o ideal? - perguntar-se-á. Evidentemente, o ideal está presente nesta opção, mesmo porque o considero indispensável ao ser humano. É questionável, porém, que neste baixo mundo o ideal exista em estado puro. Duvido que tal seja possível e até mesmo que seja desejável. Porque deve ser temperado, ou melhor, contido por um saudável realismo que terá em conta factores materiais e outras questões, não menos importantes, de ordem moral, cultural e psicológica.
Para mim, uma teoria política pesa tanto pelo seu valor ético e social como pela sua aplicabilidade prática - pela sua operacionalidade. Ao longo da História do Mundo, grandes sonhos e grandes ideais têm conduzido a grandes hecatombes e provocado sofrimentos que nada - nem sequer as excelentes e generosas intenções que estiveram na origem do processo - desculpará aos olhos das vítimas e no julgamento da História. E, mesmo sem hecatombes nem tragédias, a ideologia aparentemente mais nobre e perfeita pode causar distorções mais ou menos graves se não se tiver em conta a sociedade (o terreno) em que os seus seguidores passam da teoria à prática.

2008 - enquadrado na sua história ©
Foi neste enquadramento geral que fiz, há anos, a minha opção monárquica. Afigurar-se-ia ocioso, por demasiado evidente, acrescentar que me refiro sempre, neste texto, a uma Monarquia Constitucional, em que o Rei assegura a chefia do Estado e a suprema representação nacional sem interferir na acção dos poderes legislativo, executivo e judicial. Acrescento, porém, este esclarecimento porque, fruto de uma certa distracção (ou ignorância) fundamental,  abundam, hoje em dia, as concepções distorcidas e simplistas sobre o sistema monárquico, como se este - tal como o republicano - não se houvesse alterado e adaptado, através dos tempos, aos novos valores políticos e éticos.
Não considero a Monarquia como uma solução universal e perfeita, mesmo porque não acredito em soluções universais e perfeitas; acredito, sim, na riqueza da diversidade humana, que impõe uma certa diversidade de sistemas, e no perene e humilde combate contra o erro, tendo a perfeição como horizonte que se deve perseguir, mas que se sabe ser inatingível. Portanto, a Monarquia não oferece - mais uma vez, tal como a República - o paraíso terreal a nenhum povo e seria claramente inadequada em países como os Estados Unidos ou a Federação Helvética. Mas naqueles Estados onde existe ou existiu e criou fortes raízes, ela parece-me ser, de facto, o melhor sistema institucional, porque, mais do que qualquer outro, tem a capacidade de conciliar, respeitando integralmente a liberdade individual e os direitos cívicos e políticos, dois vectores, duas forças que julgo essenciais: a tradição e a inovação (ou renovação). Tendo em conta que Portugal sofreu durante 48 anos por considerável excesso de «estabilidade», poder-se-á também usar outro fraseado: a Monarquia é, em meu entender, a melhor forma de assegurar a instabilidade equilibrada capaz de garantir que grandes e necessárias transformações possam processar-se com a maior harmonia possível.
O termo tradição é aqui usado em sentido lato. Engloba, portanto, a identidade que nos é própria, todo o nosso legado, tudo aquilo que, ao longo de oito séculos de vicissitudes e mudanças, por vezes revolucionárias, continua a caracterizar-nos; tudo aquilo que faz de nós os Portugueses e não qualquer outro povo. É a nossa identidade, como referi, e é, portanto, acima de tudo, a nossa cultura. Não se trata, pois, de um conceito «fechado», uma vez que não há cultura sem a influência e a elaboração de elementos externos - mas o modo de processar tal elaboração é, justamente, um traço essencial da identidade de cada povo.
Contudo, este elemento de continuidade e de identidade que é a tradição, no sentido que lhe aplico, tornar-se-ia perigosamente conservador (leia-se: imobilista) sem o elemento inovador ou renovador. Este, escusado seria dizer, só é possível, sem revolução, havendo liberdade de crítica, de debate e de voto, ou seja, em democracia. É o equilíbrio entre as duas forças - um equilíbrio dinâmico - que, julgo eu, a Monarquia é capaz de estabelecer, bem melhor do que a República, nas sociedades que ela ajudou poderosamente a formar, como é o caso da sociedade portuguesa. Porque uma chefia do Estado apartidária e hereditária fornece o enquadramento necessário de que a democracia necessita para funcionar em pleno, sem querelas de partido entre a magistratura suprema e o poder executivo que, esse, é rigorosamente o que for determinado pelas eleições.
Por outro lado, devemos ter presente uma característica que é, em grau variável embora, comum a todos os povos: a necessidade de uma grande figura paternal, ou maternal, que seja, ao mesmo tempo, símbolo da comunidade e seu delegado; que seja ao mesmo tempo um supremo recurso em tempo de crise e uma «propriedade» nossa, de quem podemos exigir a presença e o conforto; de quem não desejamos a intervenção activa na governação, mas de quem esperamos que seja a lembrança viva de que, para além de grandes conflitos ou simples querelas, há algo que nos une, do passado ao futuro.
Esta necessidade é, penso, natural e inelutável e é extremamente perigoso ignorá-la nas Constituições e nos sistemas políticos, porque ela tenderá, se a expulsarem pela porta da frente, a entrar pela das traseiras ou por uma janela. Isto é: se o sistema institucional não a tomar em conta, alguém, cedo ou tarde, se aproveitará dela para, de uma forma ilegal ou pelo menos ilegítima, tentar instalar-se e eternizar-se no poder, esmagando liberdades e eliminando ou neutralizando as vias político-jurídicas da crítica e da contestação.
Pela minha parte, prefiro, de longe, uma figura que, pela sua preparação desde a infância e pela própria natureza do seu cargo, confirmada na tradição e nela «incrustada», está, à partida, limitada nos seus actos, quer pelas leis constitucionais quer pela obrigação moral cimentada pela própria tradição. Em Portugal, pelo menos, o poder do Rei nunca foi de facto absoluto. Quando D. Afonso IV quis alterar o valor da moeda, requereu consentimento «aos povos e à cleresia» e, segundo parece, o consentimento terá sido dado com a condição de tal medida não voltar a ser tomada; D. João III, que durante o seu reinado enfrentou grandes dificuldades financeiras, nem sempre recebeu das Cortes a resposta que pretendia para os seus pedidos de financiamento; e, bem mais perto de nós, D. Manuel II não logrou, como desejaria, ver surgir em Portugal um partido socialista porque, obviamente, não podia envolver-se numa acção dessa natureza. De resto, numa Monarquia Constitucional, o Rei é certamente o cidadão com os direitos políticos mais restritos e mais limitados.
Acresce que, em República, quando uma figura de referência se impõe, seja ela um «salvador» ou um «pai» colectivo, o prestígio e a popularidade recaem totalmente sobre um indivíduo, concreto e personalizado: aplaude-se o Presidente X ou o primeiro-ministro Y porque se trata da pessoa X ou Y. Estaline, Hitler, Kim Il Sung e outros representam variantes deste tipo de figura - na sua forma extrema, evidentemente. Em Monarquia, porém, é sobretudo o símbolo que conta: aplaude-se o Rei, antes de tudo, porque é o Rei e o comportamento deste deve corresponder ao que dele se espera: ser um símbolo nacional, o símbolo da continuidade e da tradição
Esta importante diferença é, a meu ver, uma garantia adicional. X ou Y podem sofrer a tentação do poder, enquanto que dificilmente o Rei poderá sentir ou ceder a essa tentação: a própria natureza das suas funções o impede, para já não falar da formação que recebeu desde o berço. É certo que há excepções (raras embora), como sucedeu com Vítor Manuel III de Itália, que tolerou a ditadura fascista de Mussolini. Mas recorde-se que Mussolini caiu, afinal, porque acabou por ser demitido pelo próprio Vítor Manuel III. Recorde-se, igualmente, a aversão que Hitler nutria pelos Hohenzollern e pelo regime monárquico. E, ainda, que Salazar se esforçou por agradar aos monárquicos permitindo que D. Duarte Nuno, Duque de Bragança, viesse residir em Portugal, mas, cuidadosamente, afastou sempre a hipótese de uma restauração. Um Rei é extremamente perigoso para um ditador[*].
Referi-me, atrás, à figura do Rei como «um supremo recurso em tempo de crise e uma propriedade nossa, de quem podemos exigir a presença e o conforto». Neste contexto específico, o sistema republicano tem uma falha essencial. É difícil tomar e sentir como padrão, símbolo e recurso uma figura que muda de quatro em quatro, cinco em cinco ou sete em sete anos e que, na maioria dos casos, chegou à chefia do Estado por vias partidárias, indiscutivelmente legítimas em verdadeiras eleições democráticas, mas que, na realidade brutal dos factos, não podem produzir uma representação total, uma «emanação» do povo. Por muito sinceras que sejam as suas intenções, elas podem sempre ser atribuídas a directivas que visam maior êxito na próxima ida às urnas.
E não é despiciendo o papel moralizador desempenhado por vários reis em tempo de crise. Quando, entre 1855 e 1857, Lisboa foi devastada por duas epidemias sucessivas, uma de cólera-morbus e outra de febre amarela, D. Pedro V manteve-se na capital e visitou incansavelmente os hospitais - o que, na época, representava um sério risco de vida - falando com cada doente. Quando, na Segunda Guerra Mundial, os Holandeses se viram esmagados e ocupados pelas tropas de Hitler, o seu maior encorajamento foi, talvez, a voz da Rainha Guilhermina, que ouviam clandestinamente na rádio. E quando, no início dos anos 80, a Espanha se viu sacudida por um derradeiro sobressalto da extrema-direita, foi uma simples frase de Juan Carlos I, dita perante as câmaras de televisão, que retirou aos revoltosos a última esperança de vitória.
Colocando, assim, os vários factores na balança, não me parecem colher credibilidade os argumentos clássicos invocados pelos republicanos contra uma chefia monárquica do Estado. Não me parece inaceitável, por exemplo, que haja em democracia um poder cujo detentor não é eleito em sufrágio universal, porque o poder judicial também não é eleito e porque o Rei terá, quando muito, um simples poder moderador ou de aconselhamento - na realidade, o Rei constitucional não tem poderes e sim funções. Nem me parece «exótico» que haja uma família, a família real, a quem são concedidos privilégios únicos, pois que não podemos falar propriamente de privilégios e sim de obrigações. Nem me parece razoável o argumento: «e se o Rei for inadequado, ou até débil mental?», porque as leis da sucessão através do primogénito não são - nunca foram - tão simplistas ou tão rígidas: será Rei quem for jurado herdeiro e a família real é, para todos os efeitos, uma «reserva da república» (tomado o termo aqui no seu significado original, de «coisa pública»). Nem, finalmente, me parece que a Monarquia saia mais «cara» aos contribuintes, tanto mais que as estatísticas não o provam e que tudo depende da legislação e da vontade do Parlamento.
Resumindo, a opção monárquica é, para mim, não uma saudade tradicionalista, que não sinto, mas uma simples questão de bom senso.

                                                              João Aguiar

D. Nuno Álvares Pereira  - Mosteiro da Batalha ©
[*] Poder-se-á contrapor a esta afirmação o caso de D. Carlos I e da ditadura de João Franco. Mas, embora esse tenha sido indiscutivelmente um erro político, é preciso ter em conta que se tratava de uma medida temporária e de excepção. Nem o Rei nem o próprio João Franco desejavam prolongar tal situação e ainda menos institucionalizá-la.