segunda-feira, 28 de março de 2011

CRÓNICAS

CONVERSA COM A SECRETÁRIA  
(A SEIS TEMPOS)
1º — Tenho pena de não ser como os outros — quero dizer: como os meus colegas estagiários, em particular, e quase todos os tipos da minha geração, em geral.
Repito, tenho pena de não ser assim: futebol em primeiro lugar (incluindo a religiosa leitura da imprensa especializada), miúdas logo a seguir e, depois, sempre por ordem decrescente, emprego, dinheiro, telemóvel, DVD’s, jogos de computador, copos, e, por último, família e casa (já que há sempre a casa dos pais, cama, mesa e roupa lavada). Acessoriamente, de vez em quando, havendo tempo, algum livro fácil e estúpido, assim no estilo Código Da Vinci.
Com essa fórmula, eu estaria bastante mais confortável na vida.
Com essa escala de valores, eu nunca teria de rilhar os dentes, como faço, logo que entro na Redacção, sentindo colado à pele o olhar veladamente irónico dos meus colegas e lendo nos vários rostos a alcunha pronunciada nas minhas costas:
O intelectualóide.
A culpa é minha. Nunca deveria ter levado para a Redacção As Lições dos Mestres de George Steiner, nem La Gnose de Princeton, de Raymond Ruyer; mas eram os livros que eu andava a ler na altura e era com eles que neutralizava o tédio dos percursos de metropolitano.
Se andasse com A Bola ou o Record debaixo do braço, outro galo me cantaria, mais afinado.
Assim, sou o intelectualóide.

2º — O gradeamento que delimita o jardim está guarnecido de maracujá em flor — e essa flor é a mais bela do mundo. Foi ao observar uma pela primeira vez que disse a mim próprio: Deus existe, tem de existir.
Diante do portão, olho, através das grades, para a grande e sóbria moradia, lá ao fundo, protegida pela sombra de pinheiros mansos que já viram, pelo menos, os meados do século XX. Num repente, antes de premir o botão da campainha, penso no ocupante daquela casa.
Edvard Kovácz, professor de… pensando bem, não sei de quê. Na imprensa internacional, chamam-lhe geralmente «Kovácz, o pacificador». Como representante especial da ONU, tomou parte em inúmeras negociações e conversações de paz nos Balcãs, em África, no Médio Oriente, na Ásia. A título pessoal e particular, foi requisitado por presidentes, primeiros-ministros e comissões diversas para facilitar contactos e negociações, sempre visando a pacificação de conflitos. Mostrou ter uma insólita capacidade, quase um condão mágico, para sentar à mesma mesa inimigos até então irredutíveis. Em várias ocasiões e em diversas circunstâncias, todas elas difíceis, obteve consensos, apaziguamentos, tréguas, acordos de paz. Desgraçadamente, na maior parte dos casos, a paz ou as tréguas conseguidas não duraram muito tempo, mas esses retrocessos não foram da sua responsabilidade. Quer como enviado da ONU quer como intermediário particular, o professor Kovácz não detém, ou não detinha, poderes políticos, poderes de decisão; não mandava nos governos nem nos estados-maiores. Criava, simplesmente, as condições políticas e diplomáticas para a paz; os outros estragavam-nas. Este ano, fala-se com insistência no seu nome para o próximo Prémio Nobel da Paz.
É este o homem que, espero eu, se encontra além, dentro daquela moradia, que ele baptizou de «Montsalvat». Abandonou as suas actividades, escolheu Portugal como retiro. Está aqui, no Estoril, há cinco meses. A preparar umas memórias que, segundo parece, serão explosivas — afinal de contas, o professor conhece todos os líderes políticos do mundo e mais alguns e participou em conferências e encontros que nós nem sabemos que existiram. Tudo isso e o provável Prémio Nobel fazem dele bom material para entrevista.
Mas não é assim tão simples. Desde que se retirou, Edvard Kovácz tem-se portado como um ultra-misantropo. Ninguém o viu fora de «Montsalvat», embora os fotógrafos de Imprensa lhe tenham feito, durante as primeiras semanas, um autêntico cerco. É verdade que saiu de casa pelo menos uma vez, porque foi a Genebra dar uma conferência, mas teve artes de não ser visto, nem mesmo no aeroporto, quer à partida, quer à chegada. Como o conseguiu, não sei. Diz-se que chega a disfarçar-se, que é mestre nessa arte e que até já tomou o lugar do seu motorista para sair de carro sem ser incomodado nem perseguido. E, como seria de esperar de alguém com este comportamento, recusou até agora, com grande obstinação, todos os pedidos de entrevistas.
É aqui que eu entro; ninguém mo explicou, mas compreendi perfeitamente.
O professor Kovácz tem um braço direito chamado Ms Brown, uma daquelas auxiliares de absoluta confiança que são, ao mesmo tempo, secretárias, cães de guarda, governantas. Há alguns casos em que são também amantes, mas não neste, com certeza, porque já vi uma fotografia de Anna Brown, uma inglesa pesadona, de meia idade, feições duras, olhos sarcásticos. Essa foto — publicada no meu jornal — mostra como é improvável, para não dizer impossível, que exista uma relação mais íntima entre ela e o patrão.
Qualquer tentativa de contacto com o professor tem de passar pelo buldogue Anna Brown: é ela quem atende o telefone, quem responde ao fax e às mensagens electrónicas. É mesmo ela, revezando-se neste caso com uma espécie de mordomo, quem vem até ao portão do jardim, já que, segundo sei, ninguém conseguiu até agora chegar, sequer, à porta da casa.
Ora bem: o que se segue não é vaidade nem manias, juro. Mas sucede que, segundo todas as aparências, eu, o intelectualóide, exerço um certo efeito, uma certa atracção sobre o sexo feminino… oh, estou pronto a aceitar que há pouco de erótico, ainda menos passional, neste fenómeno; que, como diz o meu nada-querido editor (Assuntos Internacionais, segundo a nomenclatura da nossa Redacção), «o teu ar escanzelado e frágil desperta-lhes os instintos maternais». Eu poderia responder, citando alguns casos concretos, que não é bem assim (para já, não sou escanzelado), ou que não é sempre assim, não é sempre o ar frágil que me faz ganhar o favor das mulheres; mas para quê o esforço? De qualquer modo: foi este motivo que levou o chefe a destacar-me, simples estagiário (estagiário, desgraçadamente, rima com precário), para mais esta tentativa de conseguir uma entrevista com Edvard Kovácz.
É o mesmo mecanismo que leva o chefe, o nada-querido editor, a destacar a boazona da Teresa para tentar arrancar confidências a graves magistrados ou a secretários de Estado mais rebarbativos. Chama-se a isto gestão do pessoal.
Enfim: desta vez, se exerci alguma atracção especial sobre a terrível Ms Brown foi exclusivamente devido à minha voz, porque só contactei com ela pelo telefone. Começou por dizer-me secamente, num português correcto (o que me espantou) mas com forte sotaque (o que não me espantou nada), que o Professor Kovácz não estava, sequer, em Portugal. Já nem me recordo da minha argumentação contrária; sei que, a dada altura, enfrentando a densa floresta das suas negativas, murmurei, embora só para mim, em desabafo:
— Ai… Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada…
Chegou-me aos ouvidos uma gargalhada cuja razão não entendi. Logo a seguir, Ms Brown disparou:
— Olhe, não posso prometer-lhe nada. Experimente vir até cá depois de amanhã, mas venha sem grandes esperanças. Toque à campainha do portão e diga à pessoa que for atendê-lo que já falou comigo.
E aqui estou, na companhia do Joca fotógrafo. Não queria que ele viesse; argumentei que podia espantar a caça. O editor insistiu. E aqui estamos.
Resisto à vontade de colher uma flor de maracujá porque, na minha mão, ela duraria muito menos do que na planta. Limito-me a acariciá-la, muito ao de leve. Encho os olhos com a sua estranha, magnífica beleza. Por que não posso eu preencher o dia de hoje com esta flor?
Relutantemente, carrego no botão da campainha.

3º — O Joca fotógrafo (estagiário, como eu) põe os olhos no homem que se aproxima, caminhando sobre a relva, com um sacho na mão. E, subitamente, leva a máquina fotográfica à cara e dispara furiosamente. Pára aí, digo-lhe eu, por que é que estás a fotografar o jardineiro?
— Tu não sabes se é o jardineiro! — replica-me, com ar de esperto entendido. — Um tipo que já se disfarçou de motorista também pode disfarçar-se de outra coisa qualquer! Conheces-lhe a cara? Tens a certeza de que este tipo é o jardineiro?
Admito que não, não posso ter a certeza. No entanto, o homem do sacho não tarda a tirar-me as dúvidas. O Joca, enquanto metralha sobre ele a máquina fotográfica, arrisca estupidamente:
— É o professor Kovácz, não é?
O homem deixa cair o queixo, de espanto. Depois, vira-se para trás, não fosse o Joca estar a falar com alguém nas suas costas. Enfim, encolhe os ombros e decide ignorá-lo. Dirige-se-me num português de sotaque bem popular e que por isso mesmo não pode ser falsificado por um estrangeiro:
— O senhor é que é o jornalista de que a Ms Brown está à espera?
Respondo que sim, sou, e ele pede-me um comprovativo de identificação. Mostro-lhe o cartão do jornal. Ele observa-o e declara:
— Pois é. Mas eu só estou autorizado a deixá-lo entrar a si. O seu colega não pode. Nada de fotógrafos. Foi o que a Ms Brown disse.
Mentalmente, fulmino com uma maldição essa inglesa feia e digo ao Joca: olha, paciência. Faz um boneco da casa e vai-te embora com o carro. Eu volto para Lisboa de comboio.

4º — A sala está mobilada com muita simplicidade e está mergulhada em penumbra: por causa da rama dos pinheiros, lá fora, e porque os estores das duas janelas estão descidos. Suponho que é uma forma de manter o aposento fresco sem recorrer ao ar condicionado. Kovácz também é ambientalista.
Ms Brown encara-me pensativamente, protegida, escondida pelas grossas lentes dos seus óculos de antiquada e pesada armação de tartaruga. Não saiu do seu lugar, atrás da grande mesa de mogno; fez, simplesmente, um gesto convidando-me a sentar-me diante dela, do outro lado da mesa.
Não que eu ligue, muito ou pouco, ao que diz o meu editor; porém, dou-me conta de estar, quase instintivamente, a ensaiar um sorriso inocente e frágil (mas não escanzelado) enquanto fito a figura maciça da secretária de Kovácz.
Ela rompe as hostilidades sem preâmbulos:
— Devo começar por dizer-lhe que o facto de o senhor se encontrar aqui não significa necessariamente que vai poder entrevistar o professor. Digamos, apenas, que passou no primeiro crivo, que é o mais largo. Isto é, eu disse ao professor que talvez valesse a pena falar consigo (eu falar consigo) para perceber que género de entrevista o senhor será capaz de fazer; para avaliar a sua preparação e o modo como o senhor encara o seu ofício.
Esta é muito forte, penso eu, mas contenho-me e guardo para mim o pensamento. O homem deve estar convencido de que é, já nem digo o Papa, mas o próprio Filho de Deus. E a vaca inglesa é o seu profeta. Um exame prévio, imagine-se!
Apesar de não ter falado, algo deste discurso íntimo terá transparecido nos meus olhos, porque Anna Brown acrescenta, com a sombra de um sorriso:
— Isto pode parecer presunção, eu sei. Mas sucede que o meu patrão já teve algumas experiências desagradáveis, e mesmo trágicas, com a Imprensa. E o seu tempo está muito preenchido, não pode perdê-lo com frioleiras. Resumindo, a situação é esta: o senhor quer entrevistá-lo. Portanto, o interesse está do seu lado. Mas, claro, se não quiser sujeitar-se a uma conversa preliminar, pode sempre levantar-se e ir-se embora.
A minha atenção, enquanto ela falava, fixou-se no termo «frioleiras». Raios. O português desta inglesa é bom de mais.
Paciência, tenho de encher-me de paciência. Respiro fundo para arranjar oxigénio e paciência.

5º — Decido que também eu devo dispensar os preâmbulos:
— Bem. Uma parte das perguntas que tenciono fazer ao professor Kovácz, se a senhora me conceder o raro privilégio de uma entrevista… (dispensar os preâmbulos não é o mesmo que dispensar a alfinetada), uma parte das perguntas, dizia, estará relacionada com a vida pessoal do professor. Tanto quanto li, sabe-se muito pouco; não se sabe, sequer, o que o levou a interessar-se pelos problemas da paz, da pacificação de conflitos. Ou seja, como descobriu ele a sua vocação. Eu iria…
A Brown interrompe-me:
— Sobre a sua vida desde pequenino, o professor lhe falará, se der a entrevista, mas digo-lhe já que é singularmente desinteressante. Quanto à vocação, vou dizer-lhe algo que ele, provavelmente, não dirá por iniciativa própria. Não se pode falar em vocação pacifista. Aliás, eu não creio que o meu patrão seja um pacifista, na verdadeira acepção da palavra. O que aconteceu (esta é, pelo menos, a minha opinião) foi que, em dado momento da sua vida, Edvard Kovácz descobriu uma coisa: a sua capacidade inata para convencer o próximo. Se ele fosse um vendedor, venderia areia à gente do Saara. Isto, descobriu-o ele quando era já funcionário das Nações Unidas. Julgo que, então, terá pensado: a primeira função da ONU é manter a paz no mundo; portanto, se eu quero brilhar, e quero, é nisso que tenho de empregar o meu talento.
Durante este discurso, eu vou reflectindo: tenho de dar graxa à gaja, é a única maneira. Portanto, reajo à sua fala dizendo:
— Essa perspectiva é muito interessante. Acha que posso mencioná-la ao professor?
Mencione o que quiser, responde-me, não parecendo sensível ao elogio. Não tenho segredos para o meu patrão, isto mesmo já lho disse cara a cara.
— E ele?
— Deu uma gargalhada. É um homem bem-disposto. Que mais tenciona você perguntar-lhe?
Continuo a achar muito irritante esta pré-entrevista. Mas não me posso esquecer de que, afinal, não passo de um estagiário-precário.
— Evidentemente, eu gostaria que ele me desse alguns pormenores sobre os contactos que teve, ou ainda tem, com chefes políticos, diplomatas, enfim, toda essa gente. O professor conviveu com Yasser Arafat, ainda conheceu a Golda Meir… tem-se encontrado com vários presidentes dos Estados Unidos: Bush pai, Bush filho, Clinton, desses sei eu… enfim: a senhora sabe o que eu quero dizer.
Ela faz um riso breve e por momentos parece quase simpática.
— Matéria delicada, meu jovem amigo! Matéria delicada. Mesmo porque, afinal de contas, essa é a matéria central, não é verdade? A paz depende inteiramente das pessoas. O que quer dizer que se a paz é um estado, um bem tão difícil de obter, isso deve-se a que as pessoas não prestam. Posso parecer-lhe simplista, mas é assim mesmo. É mais do que assim mesmo, diria até. Não prestam os líderes que pregam a paz fazendo a guerra (caso dos líderes americanos, mas esse é só um exemplo); não prestam os indivíduos não-qualificados que organizam ou executam ataques terroristas; mas…
Inesperadamente, a Brown dá um valente murro no tampo da mesa e eu sobressalto-me, claro; não estava à espera.
— … Mas também não prestam para nada os pacatos cidadãos da Europa e da América que se embrutecem diante dos seus aparelhos de TV e entram na obesidade comendo fast-food e bebendo refrigerantes ou cerveja, soberbamente indiferentes à fome, ao sofrimento, à doença, à miséria que recobrem uma boa parte do nosso planeta. O que espera você que faça essa gente que sofre, que é explorada até ao tutano dos ossos e vexada, ainda por cima? Um dia, pegará em armas e virá contra nós, escudada e alimentada pelo seu desespero! Não se pode falar beatamente de paz a quem tem fome, a quem sofre e a quem é sistematicamente humilhado!
Chiça. A mulher é militante. Começo a sentir-me subtilmente culpado de qualquer coisa, ainda não sei bem de quê — mas culpado. Entretanto: devo ter tocado numa corda muito sensível de Ms Brown, porque ela, sem esperar que eu retome as perguntas (ou pré-perguntas da pré-entrevista), acrescenta, numa espécie de murmúrio:
— Se quer saber, foi por isso que Edvard Kovácz se retirou, apesar dos seus triunfos indiscutíveis. Foi porque viu que, no fundo, nada havia a fazer com esta humanidade repugnante. Por cada passo em frente que ele conseguia dar, fosse na Palestina, no Afeganistão, no Iraque, em qualquer parte do mundo; por cada passo em frente, conseguido à custa de muito esforço, logo acorriam vários anormais, líderes, ou militantes, israelitas ou americanos, britânicos ou afegãos; ou fossem quem fossem. Logo acorriam vários, que davam muitos passos para trás. Kovácz percebeu que… enfim; talvez ele venha a dizer-lhe o que percebeu.
Vejo aqui uma pequena abertura… um passo em frente (já que ela falou de passos) no caminho da entrevista. Trata-se, agora, de dar o próximo, conquistar esta terrificante Anna Brown. Arrisco-me; há que tornar a conversa mais íntima:
— É curioso, mas concordo inteiramente consigo… isto é: concordo com as ideias; não tenho a sua experiência, claro (sorriso tímido, frágil, não-escanzelado). Desculpe se lhe faço, agora, uma pergunta que é para si, e não para o professor: na sua posição profissional, deve ter visto de perto, ou falado, até, com todos esses líderes que ele conhece. Algum deles vale alguma coisa? Qual é, por exemplo, a sua opinião sobre o presidente Bush?
Em cheio. Anna Brown sorri, agora, abertamente.
— Na minha opinião, nenhum vale nada, sem excepção. A época actual é de crise porque, entre outros factores, não há um único dirigente político de jeito. São todos bastante idiotas, é o que vemos quando lhes tiramos as plumas, os estados-maiores, a segurança e as limusinas. Quanto ao presidente Bush…
Pausa. O sorriso alarga-se.
— Vou repetir-lhe um dito do professor, mas você não pode publicá-lo sem que ele o autorize. Um dia, em Washington, Kovácz teve uma reunião na Casa Branca e, quando voltou para o hotel, reparei que vinha muito tenso e muito cansado. Pediu-me uma bebida. Eu perguntei-lhe se o encontro com o presidente correra mal. Então, ele disse-me isto, com um grande suspiro: «Anna, como sabe, eu também conferenciei com Bush pai, na Casa Branca. E digo-lhe: a hereditariedade não é uma palavra vã. E há casos em que de geração para geração se produz um refinamento. Infelizmente!»
Preciso de alguns segundos para digerir. Depois, dou uma gargalhada e ela acompanha-me. Isso é óptimo para os meus objectivos, já estamos a ficar compinchas. Mas… o que é que se está a passar comigo? Começo a ter prazer nesta conversa! Começo a admitir que preferiria entrevistar Ms Anna Brown (que é o que estou a fazer, afinal) a ter de entrevistar Edvard Kovácz. Caramba, esta mulher pesadona, de meia idade e feia, tem carácter, tem sentido de humor, afinal… sacudo a cabeça para me devolver à sobriedade.
Ms Brown — ataco —, não sei se já está convencida, ou não, a recomendar-me ao professor. Confesso-lhe que bem gostaria de poder publicar esta conversa consigo. Mas o meu editor é parecido com o presidente Bush. Filho. Enfim: só tenho mais um tema que gostaria de tratar, e de aprofundar, durante a… eventual (carrego na palavra para que ela não me julgue pretensioso)… a eventual entrevista. Tendo em conta tudo aquilo que me disse, e recordo-me que me declarou que o seu patrão não é um pacifista, eu iria perguntar ao professor Kovácz: o que é ele, então? E o que é, para ele, a paz? Qual o seu conceito? Acha esta pergunta aceitável?
Com um encolher de ombros que não expressa desprezo, ela responde:
— Perfeitamente. Indiscreta, claro, mas já diz aquele provérbio, ou ditado, que só as respostas são verdadeiramente indiscretas, e não as perguntas. Não sei o que ele vai responder-lhe, claro…
Interrompe-se, inclina-se para a frente:
— Mas sei o que ele pensa. Que a paz é uma noção relativa e que é, acima de tudo, uma conquista. Que, na realidade, só funciona de dentro para fora: de dentro dos homens para o mundo exterior. E é por isso que ela não funciona de todo.
Eu queria era continuar esta conversa. Mas forço-me a perguntar-lhe:
Ms Brown, vou ou não ter a entrevista com o professor Kovácz?
O que acontece, agora, provoca em mim um arrepio de puro horror.
Num gesto lento, Anna Brown leva a mão direita à testa. A mão agarra-lhe a cara e começa a descer. Ao fazê-lo, arranca o rosto de Anna Brown. Os óculos. As sobrancelhas. As pestanas. O nariz. A boca. Simultaneamente, a mão esquerda ergue-se para arrancar o farto cabelo grisalho.
O horror passa, à medida que compreendo o que está a acontecer. A pessoa que está na minha frente limpa agora, com um lenço, a pintura dos lábios. E tenho diante de mim as feições de Edvard Kovácz, contorcidas num esgar sarcástico.

6º — Ele solta um longo suspiro e murmura:
— Se não se importa, vou também tirar estas mamas horríveis, que me fazem comichão.
O seu domínio da língua portuguesa é, de facto, excelente.
— Na realidade — acrescenta, enquanto executa a operação — Ms Anna Brown existe mesmo. Está no meu escritório, em Londres. Entretanto, dou-lhe os parabéns: pode gabar-se de me ter desarmado, de me ter levado a arrancar a máscara.
Eu ainda não recuperei a presença de espírito, portanto não lhe dou réplica. Kovácz continua:
— No fundo, é preciso tão pouco para me convencer, mas são raros os que acertam nesse pouco. Sabe você o que lhe conquistou a entrevista?
Abano a cabeça em negativa, não consigo fazer mais do que isso.
— Foi Camões. Quando falámos ao telefone e você percebeu que eu ia recusar e murmurou: Só me falece ser a vós aceito,/ De quem virtude deve ser prezada. Final do Canto X de Os Lusíadas. Conheço os seus autores, como vê, mas não esperava que, na sua idade, você os conhecesse. Foi isso. É tão simples.
Faz uma breve pausa e diz-me então:
— Bem, tem a entrevista. É quase tão explosiva como se diz por aí que as minhas memórias vão ser. Evidentemente, a publicação vai trazer-me sérios embaraços. Muito sérios. Não sei o que me deu. Talvez a solidão: tenho estado isolado há demasiado tempo e precisava de falar com alguém. Enfim, paciência; você não seria jornalista se não fosse já a correr para a Redacção, para escrever tudo isto.
É nessa altura que reencontro a minha voz:
— Sou ainda um jornalista estagiário. Ainda posso mudar de vida. Por favor, deixe-me ficar mais tempo para falar consigo. Juro que não vou publicar uma só palavra.
Ele sorri, faz um aceno afirmativo, levanta-se.
— Então, deixe-me só mudar de roupa. Eu volto já. Naquele armário, há uísque e copos.
Fico sozinho na sala, mas não me levanto para ir buscar uma bebida; mantenho-me imóvel.
Pela primeira vez desde há muitos meses, ou anos, sinto dentro de mim uma grande paz.

João Aguiar

J. Sousa - Natureza morta 2003 - óleo sobre tela 50x40cm

quinta-feira, 24 de março de 2011

VIAGEM NA HISTÓRIA


Lisboa, diz uma lenda muito antiga, foi fundada por Ulisses. 
E a antiguidade da lenda atesta a antiguidade ainda maior da cidade: de facto, na embocadura do rio Tejo, os vestígios de povoamento humano são bastante anteriores ao ano 2000 antes de Cristo. E se Ulisses não fundou a velha Olisipo, um outro Grego ainda mais ilustre, Platão, terá ouvido falar dela no século IV a. C. Fenícios e Cartagineses usaram o seu porto, os Romanos chamaram-lhe Felicitas Julia, os Alanos, Suevos e Visigodos tiveram-na como sua, os Mouros deram-lhe prosperidade e lustre.
Assim, quando em 1147 o primeiro Rei de Portugal, Afonso Henriques, tomou Lisboa ao Islão, já ela era muitas vezes centenária e - mais importante ainda - já conhecera muitas e diversas existências. Desde o humilde burgo de pescadores a pequena jóia do mundo islâmico, passando por município romano. Depois, como cidade cristã e portuguesa, e mais tarde como capital do reino, todas as vicissitudes históricas do país nela se reflectiram e foi de muitas o cenário principal. Foi nas suas ruas que em fins do séc. XIV, mais precisamente em 1383, o povo se juntou para - quiçá pela primeira vez na história do Ocidente - dar início a uma revolução verdadeiramente moderna, contra o velho mundo feudal, exigindo que as seculares leis da sucessão dinástica, que iam colocar no trono um príncipe estrangeiro, fossem submetidas à vontade popular de ter um Rei nacional. Foi das suas praias que partiram as armadas que ligaram a Europa ao Extremo Oriente. Foi também, logo após o horror do grande terramoto de 1755, que Lisboa deu o exemplo de uma cidade a renascer, literalmente, das suas cinzas, com uma urbanização nova e avançada, ainda hoje bem visível na chamada «Baixa Pombalina».

J. SOUSA - Renascer óleo sobre tela 50x35
Todas estas vidas deixaram as suas marcas. E não são apenas os vestígios arqueológicos e históricos: se as cidades têm uma alma, então a alma de Lisboa é feita de várias cores, tempos diversos e respirações diferentes.
Descobrir essa variedade é, portanto, descobrir a alma de Lisboa. As referências à expansão portuguesa e ao «tempo imperial» serão, evidentemente, as mais conhecidas, como o moderno Padrão dos Descobrimentos ou a Torre de Belém, obra-prima do estilo manuelino que reflecte e evoca, por si só, todo o legado e toda a vivência das navegações de longo curso. Mas o esplendor barroco e neo-clássico da Basílica da Estrela, bem como a sóbria, quase severa harmonia da igreja e mosteiro de São Vicente de Fora ou da Praça do Comércio - junto da qual se ergueu outrora o grande palácio real do tempo dos Descobrimentos - são outras experiências que um visitante atento não deverá perder.
Esse visitante atento não deverá perder também aquela outra Lisboa, medieval, que se vê e se respira nas ruínas do Convento do Carmo ou nas ruelas torcidas dos velhos bairros de Alfama e do Castelo. E, claro está, no próprio Castelo de São Jorge, o verdadeiro «berço» desta cidade. Sob as suas muralhas esconde-se a fortificação inicial, muito anterior à chegada dos Romanos. Dentro do seu recinto ergueu-se aquela que foi, até ao séc. XVI, uma das principais residências dos Reis de Portugal. Ali morreu D. João I, ali nasceram D. João II e D. João III. Ali nasceu, também, o teatro português, pois foi nessa residência que o grande dramaturgo Gil Vicente apresentou a sua primeira obra.
Estes e muitos outros locais deverão ser visitados com atenção por quem quiser conhecer verdadeiramente a cidade. Diz-se, por vezes, que a alma de Lisboa é o fado, a canção que ela gerou nas suas entranhas, fruto de infinitos cruzamentos de sensibilidades e tradições. Mas se é verdade que o fado foi gerado pela alma lisboeta, ela não se esgota nos acordes da canção. E talvez que o estrangeiro vindo de longe não seja sensível à sua cadência nem ao seu pranto rouco. Porém, esse mesmo estrangeiro não poderá deixar de sentir a cidade ao caminhar pelas suas ruas, ao observar as suas casas, ao sentir o seu pulsar e ao respirar a sua atmosfera.
Essa, sim, é uma experiência que vale a pena.
João Aguiar

domingo, 20 de março de 2011

CONTOS


O BECO DA CARPIDEIRA

Macau. Ano da graça do Senhor de 1999
Do que eu sentia saudades era do tempo de Verão, do tempo quente: a roupa empapada de transpiração, colada ao corpo, o ar escaldante como vapor de uma chaleira posta ao lume, o contraste delicioso do outro ar, condicionado, ao entrar num qualquer edifício e depois, à saída, o regresso ao calor, os óculos instantaneamente embaciados e novamente, quase sem transição, o suor a brotar da pele, a espalhar-se pela camisa e pelas calças. A chuva súbita e morna que se mistura com a água libertada pelo corpo. Memórias vagamente nostálgicas e quase sensuais de chuvas passadas, chuvas tropicais, recebidas noutro lugar com o mesmo prazer secreto e morno.
Contudo, em boa verdade, não podia queixar-me do tempo. Era um tempo magnífico de estação seca, um Dezembro luminoso e doce. Que lhe encontrasse uma ténue tristeza escondida nessa luz e no próprio ar, só a mim podia ser atribuída tal responsabilidade e só de mim podia queixar-me. O defeito estava em mim, não no dia nem na cidade.
O defeito estava ainda, talvez, em que nesse dia eu havia percorrido longa e lentamente a cidade, toda a cidade — e uma parte do Território — a pé. Não segundo um itinerário sistemático, antes ao sabor de um capricho inconsciente. E agora a tarde resvalava muito devagar para a noite e um cansaço mortal ganhava-me o corpo enquanto, num vaivém automático e absurdo, passava e voltava a passar diante do beco.
Levei algum tempo a aperceber-me do que fazia. Era um vaguear obsessivo que começara na igreja de São Domingos e se alargara depois em percursos mais ou menos circulares, cada vez mais amplos. Agora fixara-se naquela rua, primeiro num sentido e depois no inverso, mas sempre com uma paragem em frente do beco.
Este não tinha nenhum traço particular. Era um dos muitos que existem na parte velha da cidade, sombrios e desarrumados. Todos esses becos me atraem porque é a cidade velha que me atrai especialmente, mas há outros que me parecem bem mais interessantes — por causa de uma árvore, ou de um revestimento vegetal a cobrir paredes enegrecidas pela humidade, ou de um pequeno altar consagrado a uma qualquer divindade doméstica.
Ali não havia nada disso e no entanto eu não conseguia afastar-me.
Fixei o olhar na placa da toponímia e li:
Beco da Carpideira.
O nome não me era estranho. Distraidamente, coleccionara-o na memória ao lado de outros nomes, a Calçada das Verdades, a Travessa da Guelra, o Pátio do Comprador, a Travessa de Sancho Pança, e até esse dia não fora mais que uma simples peça de colecção e não havia qualquer motivo para que não fosse apenas isso e assim continuasse. Nenhum motivo, a não ser que, desta vez, eu queria entrar.
Também não deveria haver razão especial que me impedisse, excepto que sentia uma relutância tão forte quanto a vontade de o fazer. Relutância, insisto, e não medo. Esta era uma distinção muito nítida. Foi ela que me decidiu, já que não encontrava uma explicação aceitável para o meu comportamento — a não ser a disposição particular com que me levantara nessa manhã.
Portanto, entrei no Beco da Carpideira e dominei o estremecimento que me sacudiu o corpo ao dar o primeiro passo. O Sol desapareceu, ficou na rua que deixara atrás de mim.
Velhas casas, dois contentores de lixo, um gato a deslizar entre dois bancos de madeira abandonados ali. Dois velhos chineses que me olharam com uma indiferença tranquila, um garoto do seus oito anos a fazer trabalhos escolares sentado numa cadeira de metal desconjuntada. E um forte perfume de incenso, que me levou até ao fundo do beco, onde vi a porta, aberta, de uma loja de artigos religiosos budistas.
Lojas dessas encantam-me — não pela qualidade nem pela beleza de cada objecto, regra geral de plástico ou de lata, a mais pura fancaria no mais puro kitsch, mas pelo conjunto, a galeria de divindades, o mistério das inscrições em caracteres chineses, as figuras de papel que servem para queimar nos funerais. Mas nunca entro sem ir acompanhado de alguém que fale cantonense, porque não sei regatear, nem sequer em português.
No entanto, entrei. Pela mesma razão e com as mesmas sensações mescladas que havia experimentado ao penetrar no beco.



Lá dentro vi — quando os meus olhos se habituaram à penumbra — o dono da loja: um chinês de longa barba, muito mais velho do que os que eu vira lá fora.
Um chinês fora de moda.
Digo isto por várias razões: porque aquela barba, muito branca e sedosa, era a mais longa que eu já observara, excepto em filmes (e, ainda assim, filmes americanos com péssimas imitações de personagens chinesas); pela túnica que vestia, que era verde-esmeralda, de seda brilhante, e nem sequer se parecia com as vestes tradicionais; e, talvez mais que tudo, pelo sorriso.
Um sorriso indefinível, ao mesmo tempo cordial, aberto — e enigmático. Triste, também. E ainda, por estranho que seja o paradoxo, reconfortante.
Com este sorriso o homem olhou-me e disse, em voz baixa:
— Não quer comprar nada...
A entoação não era exactamente interrogativa, mas claro que a tomei como tal, pelo que respondi:
— Não sei. Entrei só para ver... — e enquanto dizia isto, resignei-me a comprar, pelo menos, um porta-pivetes de lata, igual a outros que vira em lojas do mesmo género e que sabia serem baratos, mesmo sem regatear. Ele, porém, não me deixou sequer encetar a aquisição.
— O senhor não me compreendeu. Eu disse: «não quer comprar nada». Não era uma pergunta, era uma afirmação. De facto, não quer comprar nada. Não entrou aqui para comprar.
Fitei-o, sem resposta. Então, o homem sorriu novamente.
Eu estava embaraçado, aborrecido e, admito, alarmado. Não que me sentisse ameaçado por um perigo físico, mas havia qualquer coisa estranha no ar. Para sacudir a perturbação, ensaiei uma banalidade muito a propósito:
— Fala muitíssimo bem português, não tem sequer um vestígio de sotaque. Onde aprendeu?
Foi a sua resposta que veio mostrar-me, enfim, como era certo haver qualquer coisa no ar, além do perfume de incenso:
— Mas, meu caro senhor... eu estou a falar-lhe em cantonense.
Abri a boca para dizer «que disparate» e também para rir, porque não entendo uma só palavra de cantonense — nem de mandarim, aliás.
Voltei a fechar a boca sem ter falado e sem vontade de rir. Porque compreendi, de repente, que ele tinha razão. Falava em cantonense; com um pequeno esforço de concentração, eu conseguia, até, ouvir os sons que para mim eram ininteligíveis. Ao mesmo tempo, o seu discurso soava dentro do meu cérebro, em português. Ou talvez, em vez de palavras, fossem imagens que traduziam o que ele me dizia.
Agora, o que quer que estivesse a acontecer era claramente assustador, mas ele não me deu tempo para sentir medo.
— Venha! — disse. — Já estamos atrasados.
Disse-o como se aquilo fosse a coisa mais natural, como se houvéssemos combinado aquele encontro. Afastou um cortinado que tapava a parede do fundo e fez-me um sinal para que o seguisse.
A escada, estreita e com degraus incómodos, de tão altos, parecia descer até ao centro do planeta. É um exagero, evidentemente, porém foi esse o meu pensamento. Descemos sem parar durante uns bons dois minutos, alumiados somente por poucas velas esparsas, fixas em pequenas reentrâncias da parede. Em baixo havia uma porta, que o meu guia abriu — e logo o perfume de incenso se tornou mais forte.
Antes de entrar, o chinês virou-se para mim:
— Não pense que a sua presença aqui é uma coisa vulgar...
— Seria a última coisa que eu pensaria — ripostei. — Não sei sequer o que estou aqui a fazer nem que lugar é este.
Ele encolheu os ombros, como se isso não tivesse importância. Transpôs a porta. Fui-lhe no encalço e encontrei-me numa sala que devia ser grande mas cujas dimensões não podia calcular. As velas, às centenas, não chegavam para rasgar a penumbra. A princípio, julguei que não havia mais ninguém, porque as pessoas se confundiam com as imagens — o Buda sentado na posição do lótus, Kun Iam, a deusa da misericórdia, A-Mah, a concubina celeste, protectora dos pescadores, Hông-kòng Sân, o protector dos patos, Na Cha, o pequenino deus traquinas. E também, surpreendentemente, Nossa Senhora, Santo António, São João e São Francisco Xavier.
Diante de cada imagem ardiam velas e pivetes de incenso, diante de cada imagem oravam pessoas que, afinal, não se mantinham completamente imóveis, pois algumas faziam a tripla vénia tradicional — tanto perante as divindades budistas como diante dos santos cristãos.
A voz do meu guia e anfitrião soou muito perto de mim:
— Infelizmente, há poucos portugueses, além do senhor. Quase todos aqueles que podiam estar aqui já partiram. E a sua presença é um caso excepcional, meu caro amigo. Só se deve a um facto que talvez seja obra de puro acaso: durante o dia de hoje, o senhor visitou Nossa Senhora na igreja de São Domingos, A-Mah no templo da Barra, a capela de São Francisco Xavier em Coloane e foi ainda ao Kun Iam Tong. Tinha algum propósito ou andava a fazer turismo?
Respondi-lhe, num resmungo, que já visitara Macau várias vezes e já fizera todo o turismo que havia para fazer.
— Foi o que eu pensei — replicou o velho — e aí tem a razão por que está aqui, apesar de nunca ter vivido nesta terra. Agora venha: a hora chegou.
— Que hora?
Ele envolveu-me num olhar longo e triste.
— A hora da transferência. A verdadeira, não aquela que preparam lá em cima, à superfície.
Pela segunda vez, não tive palavras com que dar uma resposta — o que, em mim, é raro.
— Venha! — insistiu ele.
Conduziu-me até ao centro da sala. Surpreendentemente, os outros não pareceram dar pela sua presença, continuaram a orar e a acender molhos de pivetes de incenso e a curvar-se perante as imagens.
O velho abriu os braços. Eu esperava ouvir uma longa invocação e assistir a um complicado ritual, mas enganei-me. O que ouvi da sua boca foi isto:

Nós somos aqueles que se deram a esta terra. Que nunca a roubaram nem a violentaram.
Que não deram o seu corpo ao jogo nem a sua alma ao lucro.
Que deixaram em paz a árvore das patacas sem a regar de mentiras e embustes e traições.
Nós somos o calor, o perfume e o coração da terra.
Somos Macau e Ou-Mun.
Nós somos o fumo do incenso e o cantar das aves. O tufão e a brisa. A chuva e o Sol.
Somos isso e nada mais.

Calou-se. O eco da sua voz flutuou por instantes, em torno das cabeças dos santos e das divindades, e depois extinguiu-se.
Mal ele se extinguiu, toda a sala ressoou, tremeu ao som cavo de um gong. E eu ressoei e tremi com a sala, ao mesmo tempo que as imagens, todas as imagens se fendiam de alto a baixo num estertor de ruídos secos e mortais.
Entontecido, atordoado, olhei em volta e vi-me só.
Ah, sim, os devotos ainda lá estavam, porém tinham substituído as imagens quebradas: haviam-se transformado em estátuas de terracota, como os soldados que guardam desde há séculos o túmulo de um imperador chinês. Em minha frente, o velho da túnica, o que me trouxera, mantinha-se imóvel, de braços abertos. Fui vê-lo de perto. Os traços do seu rosto de terracota conservavam o mesmo sorriso reconfortante e triste.
Só, terrivelmente só, subi a escada interminável.
Interminável é o termo exacto: não cheguei a atingir o topo. Encontrei-me de repente à entrada do Beco da Carpideira, envolvido pelo ar morno da tarde e pela luz dourada do crepúsculo.
Cinco minutos depois, no Largo do Senado, ao cumprimentar um amigo com quem me cruzei, ainda tremia. Ele percebeu e perguntou-me:
— Não te sentes bem?
— Um toque de gripe — respondi.
João Aguiar

quinta-feira, 17 de março de 2011

segunda-feira, 7 de março de 2011

SINAL NOVE

Esta história, embora simples e breve, compreende três capítulos. 
O tempo do primeiro remonta há vários anos, mais de dez, e o local da acção é o Porto Interior de Macau. As personagens: um jovem fotógrafo, um velho marinheiro, patrão de um junco, e uma rapariga de profissão inconfessável.
O jovem fotógrafo era eu; tinha recebido uma encomenda, captar imagens de toda a costa de Macau, incluindo as ilhas. O patrão de junco era o meu amigo Cheong-Pac, que me viu crescer e muitas vezes me levou consigo em navegações à procura dos piratas – como ele dizia, para falar à minha imaginação. Diante da tripulação eu chamava-lhe A-Pac, mas quando estávamos sós era vulgar chamar-lhe Tio Pac. Só o fazia quando estávamos sós porque era um hábito da infância que não queríamos partilhar com ninguém. 
O Tio Pac ia oferecer-me nesse dia a pequena circum-navegação exigida pela minha reportagem fotográfica. O seu junco era o Dragão Contente – não que este fosse o verdadeiro nome, mas sim o que eu lhe pusera em miúdo, e nunca lhe chamei outra coisa.
Quanto à rapariga, andava com outras colegas de profissão à cata de turistas na zona do Porto Interior. Pelo menos, foi o que me pareceu e havia razões para chegar a essa conclusão: estava integrada num grupo de graciosas profissionais que se metiam descaradamente com todos os homens que passavam. Nesse tempo, se bem me lembro, aquela não seria uma das principais zonas de caça, porém a polícia havia feito, na véspera, uma rusga nas áreas operacionais e os agentes ainda andavam por lá.
Eu e o Tio Pac seguíamos a pé, a caminho do junco, e a nossa rota cruzava o enxame. Ao ver aquela barragem sexual, ele desviou-se, o que o obrigou a abandonar o passeio, e eu segui-lhe o exemplo. Foi então que a rapariga veio ter connosco. Por acaso – não; porque era muito bonita, o que me chamou a atenção –, eu estivera, segundos antes, a olhá-la e reparara que não se comportava como as outras peripatéticas.
(Peripatéticas, isto é: as que funcionam em movimento, as que fazem o trottoir. É um eufemismo francês de origem grega. Encontro-lhe grandes méritos poéticos e filosóficos.)
Dizia eu que a rapariga não se comportava como as outras: no meio daquele pequeno bando barulhento e desavergonhado, mantinha-se muito calada e quase quieta.
Isto até ao momento em que nos viu, ao A-Pac e a mim, passando na rua, manobrando para ficarmos equidistantes do passeio e da fila de carros que desfilavam com o costumado ímpeto. Nessa altura, avançou num passo decidido, veio ter connosco e abordou sem cerimónias o meu companheiro, em cantonense:
– A-Pac, vais embarcar com este teu jovem amigo?
Como é evidente, não consegui dominar uma gargalhada que me subiu, alegre, pela garganta: o velho Pac, o Tio Pac, andava tu cá tu lá com as peripatéticas. Mentalmente, logo compus um discurso sobre vigor sexual e maroteira, que lhe reservava para quando nos encontrássemos a bordo.
Mas o Tio Pac olhou-a com profunda surpresa e perguntou-lhe quem ela era e como o conhecia. A moça respondeu: – Toda a gente te conhece no Porto Interior. E já me viste muitas vezes, mas nunca reparaste na minha cara. Aqui, no sítio onde nos encontramos, o meu nome é Jasmim.
Claro, havia de ser um nome de guerra. A sua revelação não pareceu iluminar o A-Pac, que lhe perguntou, desconfiado, o que queria dele.
– Quero embarcar contigo e com o teu amigo – respondeu, olhando--me. Já não era sem tempo que o fizesse, murmurou a minha vaidade.
– Embarcar? – o A-Pac soltou um risinho. Nada disso, o seu junco não era um barco de flores. Não sei se ele era suficientemente velho para ter visto um desses bordéis flutuantes, mas talvez lhe tivessem contado sobre eles.
Depois da negativa, olhou-me de soslaio e cedeu, de modo comovente, a uma fraqueza, que era a sua amizade por mim: – A não ser que tu queiras... – murmurou.
Abanei a cabeça, repliquei: – Tenho trabalho, muito trabalho à minha frente... – e depois completei em português, tão depressa que nem a Jasmim nem o Tio Pac poderiam entender-me: – Desculpa lá, filha, mas hoje não.
Era um aparte ligeiramente ordinário. O Tio Pac não o entendeu, certamente; ela, não sei. Disse-me, com um sorriso rápido:
– Fica para outra ocasião. Mas há-de acontecer.
E afastou-se. E assim termina o primeiro capítulo.

O segundo capítulo passa-se alguns anos mais tarde. O início da acção é quase igual, porém as diferenças são muitíssimo importantes.
Uma vez mais, estávamos no Porto Interior, A-Pac e eu, a caminho do seu junco. Agora, vamos às diferenças: eu não ia fazer reportagem alguma, eu estava – por vias de coisas diversas que me tinham acontecido nos últimos tempos – a ir muito seriamente pela retrete a baixo, pronto a puxar o autoclismo atrás de mim (forma rendilhada e literária de dizer que sofria de aguda depressão).
Cheong-Pac fora procurar-me nessa manhã, fazendo o seu ar zangado, com que me metia medo quando eu era criança, e dissera-me: vens comigo, nem que seja à força. Vamos navegar. Hoje não saímos para a pesca, saímos só para navegar.
Mas vem aí um tufão, objectei. E era verdade; uma outra diferença, em relação ao primeiro capítulo da história, está na época do ano – o mês, agora, era Agosto, o ar carregava em suspensão quase tanta água como o Rio das Pérolas, o termómetro não parava de subir. E no mastro da Guia estava içado, desde as seis horas, o Sinal Um de tufão.
A minha objecção, evidentemente, não comoveu um velho nauta como ele. – O Sinal um, o que é o Sinal Um? – repontou. – Toca a andar!
E assim nos encontrávamos, uma vez mais, cruzando o Porto Interior em demanda do Dragão Contente. Havia menos gente na rua, não por causa do Sinal Um mas por causa da chuva, que caía miudinha porém com entusiasmo, tanto assim que estávamos já encharcados de água morna.
Então, tal como sucedera anos antes, uma rapariga veio ter connosco, abordou o Tio Pac, disse-lhe que queria embarcar no seu junco.
Não veio de um bando de peripatéticas, pois no passeio pouca gente havia. Naturalmente, estava tão encharcada  como nós, o cabelo colava-se-lhe à cara. Mas não me custou reconhecê-la, porque não esquecera o seu rosto. E o Tio Pac provou que a idade não lhe roubara as faculdades: 
– Por onde tens andado, Jasmim? – perguntou com um risinho malandro.
Isso não interessa, respondeu ela; o que interessa é que eu quero ir com vocês.
Preparei-me para ouvir uma recusa enfática, porque o Tio Pac é muito selectivo quanto às pessoas que admite a bordo do seu junco. Portanto, fiquei altamente surpreso ao ouvi-lo dizer que sim, podia vir. Uma olhadela lançada na minha direcção revelou-me o fundo do seu pensamento: era, no entender do velhote, uma sábia terapia para o negrume que me ia na alma.
– Mas, A-Pac, olha que não é preciso... – comecei eu a murmurar, porém ele interrompeu-me: – Ta-ta-ta! Já disse! Quem manda são os velhos.
Dez minutos mais tarde, o Dragão Contente abandonava o Porto Interior. Levava pouca gente a bordo: o Tio Pac, Chen-Lo – um dos homens da tripulação e seu grande amigalhaço –, Jasmim e eu. O junco, interessará dizer, estava equipado com um motor e saímos do porto com ele a funcionar, as velas ficaram recolhidas.

E ainda bem que assim ficaram. Quando Cheong-Pac tomou a direcção da Taipa, subia, na Doca D. Carlos I, na Guia e na Fortaleza do Monte, o Sinal Três de tufão. Isto eu só o soube pouco depois, porque na altura estava distraído a ver a água revolta e a agarrar-me para não perder o equilíbrio. Chen-Lo ocupava-se do leme, com o Tio Pac a seu lado, e Jasmim, a bela Jasmim, que ainda não abrira a boca desde que embarcara, postara-se à proa, sem dificuldade aparente, apesar do balanço, que se tornava cada vez mais forte. Parecia uma carranca de navio antigo – uma carranca particularmente graciosa, acrescentarei.
De súbito ouvi, trazida pelo vento, a voz do velho rádio de pilhas que estava... onde estava ele, a propósito? Não sei bem. De qualquer modo: estava ligado e sintonizado, claro, para a emissão em cantonense. A recepção era deficiente, mas chegou para eu perceber que a locutora anunciava a passagem de Sinal Um a Sinal Três e fazia as recomendações habituais. Virei-me para os meus anfitriões e gritei:
– A-Pac! Sinal Três! É melhor voltarmos!
Sucedeu então o primeiro prodígio daquele dia: o Tio Pac largou uma larga gargalhada e respondeu:
– Do que tu precisas é deste vento, para te limpar dos espíritos malfazejos!
E manteve a rota. O trânsito na ponte da Taipa (à época só havia uma) fazia-se com especial lentidão – lentidão maior, ao que me pareceu, do que era habitual com o Sinal Três. Mas talvez fosse impressão minha. Tentei dar atenção ao que dizia a rádio, porém agora só conseguia ouvir um cacarejar indistinto. 
O Dragão Contente cavalgava as ondas. Parecia-me cada vez menos contente, é certo, porque rangia como nunca, num lamento ruidoso. Agarrado como lapa à sua madeira e a uma corda, reflecti então que o Tio Pac, na sua aparente loucura, me aplicara a terapia certa: naquele momento, os meus fantasmas interiores iam longe, varridos pelo vento cuja força crescente cavava precipícios na superfície das águas. Naquele momento, a vida, a vida e a sua conservação, pareciam-me os bens supremos, ao lado dos quais todos os meus conflitos e preocupações e problemas faziam figura insignificante.
A questão, agora, pensei, é ver se consigo voltar a terra com estes bens cuja noção vim buscar ao mar encapelado. Mas não, reagi, estou a fazer drama em excesso: nem a situação é assim tão grave nem estamos, sequer, no mar, isto é ainda a foz do Rio das Pérolas.
Olhei à minha volta, tanto quanto a chuva me permitia abrir os olhos. Jasmim mantinha-se à proa, bem agarrada ao cordame. O Tio Pac substituíra Chen-Lo ao leme. E o seu rosto estava agora claramente apreensivo e não tardei a perceber que ele tentava, em vão, modificar a rota do junco, tentava, em vão, o regresso. 

Passáramos muito além de Coloane. Ainda julguei ver, ao longe, o mastro do posto da Polícia Marítima, onde dançava loucamente o Sinal Nove de tufão, mas isso é impossível, não posso tê-lo avistado àquela distância e na posição em que nos encontrávamos.
Não sei por quanto tempo navegámos, se é que se pode chamar navegação àquela luta inglória. O tempo pode ser uma noção subjectiva.
Mas não podiam ser minutos somente, nem sequer meia hora, porque as minhas mãos, os meus braços, as minhas pernas acusavam já um cansaço crescente. E não podia dar-lhes repouso, pois se o fizesse voaria borda fora...
Como voou borda fora o rádio de pilhas, vindo não sei de onde, apenas sei que o vi passar e perder-se nas ondas. Aquele vento não era, definitivamente não era já um vento de Sinal Três.
E, de repente, pareceu redobrar a sua força. Agora, o junco todo empinava-se a cada vaga, depois apontava a proa às profundezas.
– A-Pac! – gritei. Ele não me respondeu, muito provavelmente não me ouviu. Olhei-o, estava de cabeça erguida ao céu e gritava o que me pareceu ser uma oração, mas não entendi o que dizia, o vento levou-lhe as palavras. Então, ao virar a cabeça na direcção da proa, veio-me um aperto ao estômago, porque Jasmim desaparecera.
Não havia a mínima possibilidade de ter abandonado a sua posição para se abrigar; ninguém seria capaz de dar um só passo, fazer um só movimento sem ser arrastado pelo vento e pelas vagas. Jasmim fora arrastada.
Mais uma vez, gritei por A-Pac. Ele continuava a orar, de cabeça virada ao alto, enquanto Chen-Lo lançara também as mãos ao leme para tentar estabilizar o junco. Um ruído seco: o mastro grande quebrou-se como um palito.
A-Pac gritou mais alto. E então, deu-se o segundo prodígio do dia.
Não serei capaz de o descrever em pormenor, as minhas recordações são confusas. Direi que à nossa volta uma vaga imensa ergueu-se. Foi uma cortina de água que se levantou, que rodeou completamente o junco. E no espaço assim delimitado o vento deixou de soprar; a embarcação tombou pesadamente sobre um leito liso e ficou imóvel, por instantes. Depois, ouvi o motor ronronar com pachorra e o Dragão Contente começou a navegar a direito, sem balanços...
Quem o conduzia, não sei. Porque Cheong-Pac e Chen-Lo haviam largado o leme, estavam ambos prostrados sobre as tábuas, como em adoração.
Eu também dei finalmente descanso a mãos e braços, mas não me lembro do que fiz. Não terei feito nada, nem um gesto, estava em choque, cansado de mais, espantado de mais para ser capaz de qualquer reacção. Sobre nós caía uma chuva grossa, ininterrupta, porém tombava a direito como se não houvesse já vento – e no entanto eu ouvia-lhe o mugido, além da cortina de água que nos protegia.
Quando ela se desfez, quando a água se abateu e pudemos observar a nossa posição, estávamos em Macau.
Ou melhor, à entrada do Porto Interior. À nossa frente, podíamos ver as destruições causadas pelo tufão – não muitas, porém espectaculares. Sentimos de novo o vento, mas era já fraco. E o junco avançava, com o motor sempre a ronronar – alegremente, quase poderia jurá-lo. Chen-Lo deitou as mãos ao leme, para a manobra.
E, a partir de então, eis a única coisa de que me recordo: quando finalmente a âncora foi lançada, surgiu do porão a figurinha frágil de Jasmim. Ao vê-la, soltei um grito (gritei muito, nesse dia). Ela olhou-me, sorriu.
– Que tens tu? Já não há razão para te assustares – disse-me numa troça amável. – De vez em quando, convém renovar os prodígios, se não as pessoas confundem-nos com as lendas.
Foi nessa altura que a febre tomou o meu corpo e não me lembro de mais nada.
O terceiro e último capítulo desta história passa-se no dia seguinte. Eu acordei muito cedo e tive a enorme surpresa de ver que estava em minha casa, na minha cama. Poderia facilmente julgar que tudo aquilo fora um pesadelo; no entanto, o tufão deixara o seu rasto em Macau. Reuni as forças ganhas durante o sono. Saí de casa e fui à procura do Tio Pac, porque tinha algumas perguntas muito importantes a fazer-lhe.
Não o encontrei nos lugares habituais. Finalmente, um garoto que era seu vizinho disse-me que ele devia encontrar-se no templo da Barra e foi para lá que me dirigi.
Vi-o logo, a colocar um gordo molho de pivetes diante da imagem da deusa A-Mah. Aproximei-me, abri a boca para falar-lhe, ele calou-me com um «Chut! Estou a rezar!».
Esperei durante uns bons cinco minutos. Por fim, já não podia conter-me: 
– A-Pac – murmurei – meu querido Tio Pac. O que é que nos aconteceu ontem? E quem será aquela rapariga, chamada Jasmim?
Ele atirou-me um olhar impaciente.
– Ainda perguntas quem é? Ainda perguntas?
Recolheu-se de novo em oração. De facto, pensei, esta pergunta é estúpida.
Fui então comprar um molho de pivetes tão grande como o dele, acendi-os e coloquei-os diante da estátua de A-Mah...

João Aguiar