segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

OS DEZ MIL IMORTAIS

É um título estranho, este que arranjei. Admito-o sem hesitações, tendo em conta, sobretudo, o contexto e a temática. Deverei explicá-lo mais adiante, embora saiba, à partida, que a explicação poderá não ser muito satisfatória.
Para já, interessa esclarecer que o que pretendo, neste texto, é defender a seguinte afirmação: em matéria de ensino — que é também matéria de educação, de formação e, basicamente, de sobrevivência cultural de um povo —, a pedra-base, a coluna-mestra, não é o sistema, nem o enquadramento, nem as condições físicas, nem o material didáctico, nem sequer, atrevo-me ao sacrilégio, nem sequer os programas. Tudo isso é importante, evidentemente; porém, repito, não é a coluna-mestra da construção. Essa é, muito simplesmente, a qualidade do docente. Ou, digamos melhor, digamos no plural: as qualidades, porque são várias e nem todas elas fáceis de encontrar nas sucessivas fornadas de jovens que vão completando o ensino superior.
Isto, porém, tenho de afirmá-lo com a humildade de quem pouco ou nada percebe do assunto. Na verdade, não sei muito bem por que me foi dirigido o convite, honroso mas imerecido, para discorrer sobre estes temas. Nunca estive ligado ao ensino, excepto como aluno — e talvez seja por isso, afinal. Pois que os alunos (ou, como é o meu caso, os ex-alunos de longa data) devem ter uma palavra a dizer.
Com excepção desta, a única e pobre qualificação que posso apresentar é o número já elevado de sessões que tenho realizado em escolas e faculdades, regra geral por iniciativa das próprias escolas, interessadas em proporcionar aos estudantes o contacto com escritores. É pouco, bem sei; em todo o caso, essa experiência permitiu-me já enunciar uma conclusão perfeitamente sólida e inatacável:
Eu nunca seria um bom professor.
Ora, talvez a melhor via para iniciar a abordagem do meu tema seja precisamente esta: considerar, ainda que de modo sucinto, as razões pelas quais não seria um bom professor.
Em primeiro lugar, não possuo a necessária resistência física. Quando vou a uma escola, seja ela de que grau for, falo, em regra, durante duas horas; ou faço aquilo a que se poderia chamar sessões contínuas, de cinquenta minutos cada. Enquanto duram as sessões, produzo uma apreciável quantidade de adrenalina e, normalmente, tudo corre bem. O pior é depois: já sei que, uma ou duas horas após a última sessão, entro em quebra e fico completamente inoperacional não apenas durante o resto do dia mas, não raro, durante todo o dia seguinte. E este «refluxo» é tanto mais forte quanto melhor correram as sessões. É como se me tivessem drenado toda a energia. O que, no meu caso, não é grave, pois arranjo tempo para a recuperar. Mas seria bem diferente se tivesse, por ofício, de dar várias aulas todos os dias.
Dir-se-á que é uma questão de treino e de hábito. Talvez, mas há mais: em segundo lugar, para continuar a enumeração, sou incapaz de funcionar bem quando me falta aquilo a que chamo a «pressão interior»: ou seja, aquele misto de energia e de serenidade a que chamamos vulgarmente «boa disposição» e que eu não sou capaz nem de produzir por encomenda nem de imitar quando brilha pela ausência.
Paredes meias com essa pressão interior está, em terceiro lugar, o empenhamento, o entusiasmo capaz de resistir à rotina e à repetição. Repare-se, agora, que estamos a considerar problemas comuns ao professor e ao actor. O que, aliás, é muito significativo e não serei eu o primeiro a dizer que um bom professor tem vantagem em ser também um razoável actor.
Porém, mais importante que tudo isto, vem, em quarto lugar, a gestão emocional, que o mesmo é dizer, a — para mim difícil — questão das relações com os estudantes: como coadunar bom ambiente e disciplina, como lidar com a instabilidade psicológica própria da adolescência, como manter sob domínio as antipatias, as simpatias e até as indiferenças que inevitavelmente se criam em relação aos alunos e, enfim, como gerir — se isso é possível — os nossos sentimentos, sobretudo os de amizade, com jovens que, sabemo-lo de antemão, perderemos definitivamente a partir do momento em que saem da escola.
Nada disto seria eu capaz de cumprir satisfatoriamente. Mas isso é pouco ou nada importante, já que não trabalho no ensino; o que interessa é que acabo de enunciar algumas das qualidades e aptidões que, na minha opinião, um bom professor deve ter.
Em contrapartida, há, pelo menos, uma qualidade que julgo possuir em certo grau e faz igualmente parte da panóplia que deve equipar um docente: refiro-me à imaginação e também à capacidade para falar e para, ao falar, despertar a imaginação de quem me ouve. E assim chegamos ao título deste texto: Os dez mil imortais.
Devo ao leitor e a mim próprio a obrigação de ser sincero; portanto, direi que a sua razão essencial é simplesmente esta: eu precisava de um título que chamasse as atenções e desafiasse a imaginação.
No fundo, trata-se de uma técnica — ou de um truque — algo semelhante ao que Daniel Pennac descreve na sua obra Como um romance: numa turma cujos alunos afirmam em esmagadora maioria que não gostam de ler, o professor pega inesperadamente num volume — é O Perfume, de Patrick Süskind — anuncia-lhes que não precisam de tirar apontamentos, basta que ouçam; abre o livro e começa a ler. E a turma inteira fica presa à história e os jovens irão pegar no livro por iniciativa própria, para saberem como ela acaba.
Voltando ao meu título: era preciso, apesar de tudo, encontrar-lhe alguma coerência, alguma razão, sem o que o desafio à capacidade imaginativa seria gratuito; do mesmo modo, não é exigível ao professor que faça o pino ou à professora que se dispa em plena aula só para chamar as atenções e falar à imaginação.
Direi, portanto, que o título estabelece um certo paralelismo, ainda que distante, entre o corpo docente de um país — se assim me posso expressar — e a guarda pessoal dos antigos reis persas. A essa guarda chamava-se, justamente, os «dez mil imortais».
Os dez mil imortais eram guerreiros que deviam, a todo o momento, guardar e proteger a pessoa do rei. Eram chamados imortais porque este corpo tinha sempre o mesmo efectivo: quando alguém morria era imediatamente substituído. Porém não é aqui, obviamente, que reside o paralelismo. Num império como o persa, formado de povos muito diversos e cujas províncias, na sua maior parte, haviam sido, no passado, reinos independentes, a figura do rei era, sob o ponto de vista civil, militar, político e religioso, a única garantia de continuidade. Portanto, os dez mil imortais guardavam o que de mais precioso havia no império.
Façamos a transposição para a sociedade ocidental contemporânea. Nela, a figura do monarca constitucional, quando ele existe, merece-me o maior respeito; no entanto, mesmo um monárquico, e é o meu caso, não considerará certamente a figura do rei como sendo o único ou o mais precioso legado a preservar por um povo. Poderemos dizer, conforme a perspectiva que possamos adoptar, que esse bem precioso é a juventude que se forma nas escolas ou que ele é a nossa cultura enquanto património vivo, isto é, composto de conhecimentos vindos do passado, que para sobreviverem e para se renovarem têm de ser transmitidos; e de passos em direcção ao futuro.
Os conhecimentos, aliás, não bastam, como se sabe. Não perfilho o já velho slogan do já velho Maio de 68: «a imaginação ao poder!»; mas é indiscutivelmente certo que ela faz lá muita falta. E não só lá, bem entendido, mas em todos os níveis de existência e ramos de actividade.
Em qualquer dos casos, iremos sempre desembocar no espaço da escola. Por outras palavras: a qualidade — humana, cultural, social — das novas gerações depende muito da qualidade daqueles que lhes transmitem os conhecimentos e orientam a sua formação. E é esse corpo magno que eu comparo, metaforicamente, com os dez mil imortais. Sei que a lógica da comparação não é das mais sólidas, mas pelo menos consegui arranjar um bom título e uma passável justificação.
Pretendo, ainda, comentar um facto que me parece indiscutível. É frequente ouvirmos criticar o ensino, ou melhor, a formação dos jovens em Portugal — e, por regra, sempre de modo a deixar claro que a culpa é sempre, em exclusivo, do Governo, das escolas ou dos professores, mas nunca, evidentemente, de quem critica, nunca dos pais, nunca do público em geral. Deixemos, porém, correr esse velho hábito — porque o direito à lamentação é inalienável — e retenhamos isto: o problema, diria melhor, a crise da formação não é, de modo algum, restrita ao nosso país. Está, pelo contrário, bastante generalizada, é um dos traços característicos da nossa época, que, de resto, se arrisca a ser o vestíbulo de uma nova idade das trevas, rica em tecnologias e nua de humanidades, cheia de equipamentos e vazia de conteúdos e valores, em que se multiplicarão engenheiros, advogados, médicos e ministros meramente alfabetizados, já que — para dar apenas um exemplo bem nosso — não são capazes de falar ou de escrever sem exercer as mais duras sevícias sobre a língua portuguesa. Mas, para não mantermos a sombria nota de pessimismo, consideremos ainda que esta comunhão de crise em que vivemos pode revelar-se também uma comunhão de soluções e que nada nos impede de as encontrarmos nós próprios e darmos assim um contributo capaz de beneficiar os povos que nos estão próximos — o que, tendo em conta a evolução das comunicações, significa o mundo inteiro.
Nada nos impede, repito. Excepto, claro está, a falta de imaginação.
E, enfim, permito-me uma reflexão final — ou quase final — que se destina a reforçar a afirmação que fiz no início. No gozo e no exercício do já citado direito à lamentação, é costume (legítimo) apontar as diversas falhas do sistema, tanto as materiais como as psicológicas: a classe docente não está suficientemente prestigiada e dignificada; as condições materiais em que trabalha, sobretudo no que se refere a remunerações, estão abaixo do nível mínimo justo, tendo em conta a importância da tarefa, o que leva gente com vocação (e se há ofício vocacional por excelência é este) a fugir ao ensino e gente sem vocação a entrar nele; o equipamento escolar ainda é deficiente; a regulamentação das questões disciplinares deixa a desejar; os programas nem sempre são um modelo de inteligência.
Todas estas críticas possuem, evidentemente, fundamento. Contudo, isso não obsta a que, na realidade crua e básica das coisas, a chave esteja mais nas mãos dos indivíduos do que nas do sistema. Ou seja, a chave está mais nas mãos dos professores do que nas do Ministério. Porque é espantoso, literalmente espantoso o que um bom professor ou uma equipa de bons professores pode fazer numa escola.
Este é o único ponto do presente texto em que posso invocar um conhecimento directo e sólido. No decurso das deslocações que tenho efectuado a várias escolas e faculdades do país, tenho observado, e não poucas vezes, um trabalho magnífico de empenhamento, de criatividade, de entusiasmo e inteligência. Um trabalho realizado precisamente na situação presente, no aqui e agora, com todas as falhas do sistema que é costume apontar.
Como não vivemos propriamente no paraíso terreal, também tenho, por vezes, observado o inverso. E não posso deixar de apontar um facto que merece atenção e reflexão... criativas. Em todas as visitas durante as quais se tornou claro o trabalho de preparação, claros o esforço e o empenho inteligente dos professores, em todas essas visitas, repito, tratava-se de uma iniciativa tomada pela escola e em que as despesas, se as havia, eram cobertas pela própria escola — suspeito até que, algumas vezes, pelo bolso dos professores. Em contrapartida, as três sessões de que conservo uma memória menos risonha ou claramente lúgubre, realizaram-se no âmbito de projectos de apoio às escolas, lançados e financiados a partir do exterior, ou por editoras ou pelo município local. Porque esses projectos tiveram tudo, menos o empenho dos docentes.
Como é óbvio, não pretendo afirmar que se tratasse de uma má ideia e ainda menos que as coisas só correm bem quando a iniciativa é, por assim dizer, privada, quando parte exclusivamente dos professores. Mas parece-me claro que nada resulta quando não estão presentes a massa cinzenta dos indivíduos e o valor acrescentado do trabalho de equipa que estejam dispostos a realizar.
De resto, e porque, felizmente, a existência de professores com capacidades criativas e de comunicação não é apenas um fenómeno contemporâneo, sinto-me obrigado a recordar que, em estudante, tive, a par de vários docentes que deveriam ter escolhido outra profissão, o privilégio — e, sobretudo, a sorte — de ser aluno de homens como os professores Mário Dionísio e Manuel Antunes, o primeiro ainda no liceu, o segundo na Faculdade de Letras. Era a época do Estado Novo, já então bastante velho, e as condições gerais, bem como os orçamentos, eram, atrevo-me a dizê-lo, bastante piores que hoje. O que de modo algum impediu o trabalho desses e de outros grandes professores. Porque quando, por uma qualquer aberração, o sistema fecha a porta à inteligência, à competência e à criatividade, elas têm o subversivo e saudável hábito de tentar entrar pela janela.

João Aguiar
J. Sousa - Memória - Óleo sobre tela 1999

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