sábado, 8 de janeiro de 2011

O TELEFONE


Primeiro, uma declaração de culpa: este texto foi entregue para publicação no limite extremo do prazo que me foi dado. E esse limite já tinha sido alargado, por eu não ter cumprido o prazo anterior.
Isto é algo que nunca antes me aconteceu, ou seja: é uma infracção à regra que impus a mim próprio.
Poderia invocar falta de tempo, excesso de trabalho. Mas há sempre tempo quando se quer.
Então, concluirá quem me ler, eu não queria, no meu íntimo, dar o meu contributo; tudo isto foi um frete aborrecido e eu escusava de me incomodar; podia, muito simplesmente, ter recusado o convite…
Mas também não é verdade.
Ora, se não é verdade, impõe-se que eu revele honestamente a verdadeira razão, tanto mais que ela está muito estreitamente ligada à realidade que motiva o projecto SOS Voz Amiga.
Porque a verdadeira razão é — medo.
Explicando melhor. A solidão não é «uma coisa dos outros» — e é-o cada vez menos numa sociedade como a nossa: globalizada, sobretudo, nas crises, nas injustiças, nas intolerâncias, nas exclusões. Se assim não fosse, aliás, não teriam sido necessários projectos que procuram oferecer uma voz amiga a quem não a tem.
A solidão é uma ameaça permanente. E é ameaça mesmo quando a desejamos.
Foi com esta ideia em mente que, um dia, escrevi uma narrativa que integrei num dos meus romances. É essa narrativa que aqui vos ofereço. Escolhi-a, juro, não por preguiça  (deu-me basto trabalho localizar o texto!), mas porque nada poderia escrever de mais adequado àquilo que penso sobre os contactos com o meu próximo. E também sobre os telefones.

Um homem sentiu-se desfasado em relação ao mundo. O mundo, com a sua globalização e o acréscimo de escravatura camuflada trazido por essa nova forma de ditadura, mais a grosseria dos media, a desumanização, enfim: tudo aquilo que é o patamar e a sala de visitas do século XXI — o mundo, dizia eu, desgostou-o de tal forma que ele aplicou todas as suas energias para tornar possível, económica e fisicamente possível, uma retirada estratégica. Quando reuniu os meios necessários, escolheu um pardieiro arruinado, isolado, longe de tudo, aninhado no alto de uma rude colina; comprou-o, restaurou-o, dotou-o de todo o conforto que considerou ser-lhe agradável e depois suspendeu — e, mais tarde, cortou — os seus contactos com esse mundo que o desgostara. Nem rádio, nem televisão, nem computador ligado à Internet, nem, sequer, estrada transitável para automóveis. As provisões acumuladas asseguravam-lhe três anos de isolamento absoluto, depois logo se veria. Uma única via de comunicação lhe restava — o telefone. Apenas na perspectiva do final desse período de três anos, para poder encomendar mais víveres.
Cortadas as pontes, o homem mergulhou na solidão e em si próprio. Com prazer? Com volúpia? Com íntimo desgosto? Ninguém o poderia dizer, talvez nem ele próprio. Sabia, em todo o caso, que aquele passo radical não fora dado em busca do prazer, mas simplesmente para fugir à loucura que o rondava de perto.
E o tempo passou, silencioso, na imobilidade aparente das coisas mais rápidas. O homem não se aborreceu no seu exílio. Levara consigo centenas, talvez um milhar de livros de todos os tipos e sobre todos os assuntos. As suas horas foram consumidas em leitura e nas reflexões que a leitura punha em marcha.
No final do primeiro ano assim vivido, o homem descobriu em si uma pulsão inquietante, a de pegar no seu telefone e ligar para um número qualquer. Ter-se-ia curado da repugnância que sentia pelo mundo? A esta pergunta respondeu, após introspecção cuidadosa: não, ele continuava a sentir náuseas só com a simples ideia de avistar um seu semelhante. O desejo de usar o telefone — isto é, de comunicar com um qualquer ser humano — era um mero reflexo do instinto gregário comum a toda a espécie, porém nada tinha a ver com a sua personalidade, enquanto indivíduo.
No entanto, esse reflexo mostrou-se suficientemente forte para lhe roubar a tranquilidade. Começou a estragar-lhe as noites e a envenenar-lhe os dias. Então, o homem decidiu iludi-lo. Considerou a possibilidade de telefonar para o serviço horário, pois não correria qualquer risco de contacto, ouviria uma simples gravação.
Contudo, uma gravação já seria de mais, reflectiu. A gravação continha uma voz e essa voz seria humana. Além disso, a gravação era o resultado de toda uma tecnologia que ele aprendera a detestar. Foi então que concebeu a solução mais adequada — pensou ele, talvez já afectado pela solidão voluntária. Do que eu sinto vontade, raciocinou, é de executar o simples acto de pegar no telefone e marcar um número; pois bem, é simples, telefonar-me-ei a mim próprio, ligarei para o meu próprio número. Ouvirei o sinal de “ocupado” e poderei desligar em paz.
Assim fez e deu-se bem com o método. Além destas chamadas para um número sempre ocupado, o seu,  e de longos passeios em torno da casa, o resto do seu tempo continuou a ser empregue em leituras. Leu as obras de Proust e de Tolstoi, esgotou Platão e toda a literatura do Budismo Zen publicada até ao início da sua clausura, estudou Plotino, saltou para Descartes e deste para os poetas. A sua vida retomou o rumo que sempre desejara.
Passou mais um ano. E, por alturas deste segundo aniversário, o deu-se conta de algo que lhe causou nova perturbação: começara por fazer uma chamada semanal para si próprio e com ela calava os seus instintos recônditos; a dada altura, passara a duas, e depois a três chamadas por semana; e agora eram diárias e a necessidade aumentava.
Pior ainda que esse verdadeiro vício era ter começado a sentir a frustração do sinal sonoro intermitente, indicando que o número estava ocupado — por ele mesmo. Ainda e sempre, não queria falar com nenhum outro ser vivo, mas queria que o seu número estivesse livre e respondesse. Em suma, queria atender-se. Tentou reagir; chegou até a ligar para um número qualquer, ao acaso, porém logo cortou a comunicação, receando, com toda a lógica,  ouvir uma voz humana a dizer qualquer uma das expressões mais comuns de atendimento. E esta ideia era insuportável, pois já não se sentia, mesmo fisicamente, capaz de contactar com alguém, salvo consigo próprio.
Ao correr dos dias a frustração e o desejo aumentaram. Por essa altura andava ele a fazer estranhas leituras, uma pilha de obras compradas num alfarrabista. Alguns títulos darão uma ideia: La Clef de la Théosophie, de Helena Petrovna Blavatsky, O Pensamento-Forma, do Prof. Max Williamson-Steiner, e, sobretudo, The Reality Of The Doppelgänger, de um misterioso autor que se escondia atrás do pseudónimo de Charles C. Smith.
Foi este último livro, sobretudo, que o influenciou, porque, honrando o título, tratava do “duplo” que se diz ter qualquer indivíduo da espécie humana: o Doppelgänger, que, em raras e assustadoras ocasiões, uma pessoa é capaz de avistar, momentaneamente dissociado de si mesma.
Pois bem, o homem concebeu uma ideia que em breve se tornou obsessiva: levar o seu duplo a responder à chamada. Como, não o sabia, mas isso não lhe impedia o querer. E, desenvolvendo doentiamente esta obsessão, deu-lhe as proporções de uma revelação fundamental. Se lograsse o seu propósito, provaria enfim a existência de uma outra dimensão no espaço-tempo, um mundo paralelo diferente daquele a que pretendia fugir de modo mais definitivo que o exílio voluntário no alto de uma colina.
A partir desta fase, ele abandonou a leitura quase por completo. Os seus dias eram passados telefonando-se. Considerou que a disciplina do corpo e o treino da vontade poderiam ajudá-lo; iniciou então longos jejuns e aplicou-se a desenvolver as suas capacidades de concentração, tanto no estado de vigília como enquanto dormia, neste último caso por intermédio de exaustivos exercícios destinados a suscitar a ocorrência de sonhos lúcidos.
Mais meses se esgotaram neste esforço extenuante. Até que um dia, faltava já pouco para completar o período de três anos, ao fazer o quinto telefonema desde que se levantara da cama, ouviu o sinal de chamada.
A sua primeira reacção foi desligar. Pensou, naturalmente, ter-se enganado ao marcar o número e não quis arriscar-se a ouvir uma voz desconhecida. Tentou recordar exactamente a sequência de algarismos usada; pareceu-lhe a correcta, a do seu número de telefone. Então, trémulo, com fronte coberta de suor, centrou o pensamento no seu duplo e novamente marcou, devagar, o número. E o sinal era de chamada e ao fim de cinco toques o sinal parou e ouviu a sua própria voz dizer: “Está?”
Foi a última coisa que ouviu.
Encontraram-no três dias depois alguns excursionistas que, perdidos, bateram à sua porta para perguntar o caminho. A porta estava só encostada, eles entraram a medo, chamando, e viram-no. Nunca mais esqueceram o que viram: o corpo aberto a meio, de alto a baixo.
JOÃO AGUIAR

Ilustração - J. Sousa "ENCOMENDAÇÃO DAS ALMAS" 1995

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