sábado, 1 de janeiro de 2011

«O MEU RETRATO»


Eu sei que não correspondo à imagem tradicional de uma fada boa. A Sininho, do Peter Pan, cortou relações comigo por achar-me desbragada no vestir, nos cenários onde passo a minha vida e também, necessariamente, nos meus usos e costumes. As mães e os pais das famílias mais sérias proíbem as crianças de olharem para mim.
De um modo geral, acham-me pouco decente. Impudica. Erótica, dizem os liberais. Os conservadores bradam outras coisas.
Não discuto com uns nem com outros. Não me discuto. Limito-me a viver neste cenário encantado — e já não é pouco.
Mas aqueles que me censuram hão-de aceitar, pelo menos, algumas verdades a meu respeito.
A primeira verdade é que, erótica embora, eu e os meus companheiros, animais ou vegetais, vivemos em poesia e em beleza; nada que se compare, por exemplo, aos filmes, suaves ou duros, produzidos em série por Hollywood. Isto na actualidade. Mas, mesmo falando de Hollywood no passado, haveria muito a dizer sobre a Sininho e o seu mundo, tal como retratados no filme clássico de Disney — se bem me recordo, as relações da Sininho com o Peter (Pan) são, no mínimo, equívocas, já que ela está claramente apaixonada por ele e as dimensões corporais de cada um (ela, do meu tamanho; ele, um rapaz normal) transformam em sombrio pesadelo a simples hipótese de uma consumação. Mas sobre isto, ninguém diz nada.
A segunda verdade é que, em termos de moral, pudor e decência, a minha aparência e a minha vida sustentam vitoriosamente a comparação com o comportamento das grandes potências mundiais e dos grandes grupos económicos.
Porque eu não prejudico ninguém: limito-me a ser bonita, a viver na minha floresta mágica, a brincar com os meus amigos. E se há por aqui algum monstro, é, também ele, um monstro de brincar. No fim dos nossos jogos, procuramos uma clareira e olhamos para as estrelas.
Mais nada.
João Aguiar

J. Sousa - Sem nome - Óleo sobre tela 2004

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