quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

DIÁLOGOS NUMA NOITE SEM LUA



Não vou revelar-vos como consegui a autorização para passar uma noite inteira na Citânia de Santa Luzia. O que importa é que a consegui.
Quanto aos motivos que ditaram a concepção e a realização desse projecto, eles tornar-se-ão claros, espero, no decorrer desta despretensiosa narrativa — e quem não os entender não merecerá entendê-los. Há realidades inacessíveis aos profanos e assim deve ser.
Para já, basta que diga: a noite era de Verão e cumpria a previsão meteorológica de calmaria e calor. Cheguei por volta das dez horas carregado com a minha escassa bagagem: uma pequena mochila em que metera uma lanterna eléctrica, um pacote de bolachas, uma garrafa térmica com chá quente, um  agasalho para o fresco da madrugada e uma almofada velha. O guarda da Citânia estava à minha espera; não precisámos de falar, tudo fora já combinado. Logo que entrei no recinto, ele fechou o portão à chave e afastou-se.
Entregue a mim próprio, comecei por procurar um local onde pudesse instalar-me com um mínimo de desconforto e que, ao mesmo tempo, oferecesse condições aceitáveis para a minha experiência. Essa busca foi feita à luz da lanterna, porque era tempo de lua nova, um requisito absolutamente indispensável para não aumentar os riscos que iria correr (todos sabem, até os mais ignorantes, que a lua cheia é perigosa). Desgraçadamente, não podia eliminar as luzes eléctricas que desfeavam as proximidades: a proximidade da pousada e os candeeiros de rua eram factores desfavoráveis contra os quais nada podia, a não ser afastar-me o mais possível, esconder-me atrás das velhas pedras afeiçoadas pelos que ali tinham vivido havia tantos séculos. De certo modo, era a voz deles que eu queria ouvir…
Fiz o meu «ninho» dentro do perímetro de uma das casas circulares da citânia. Coloquei a almofada no solo e sobre ela me sentei, com as pernas cruzadas. Um desnível do terreno protegia-me das luzes eléctricas, ocultando-as, de modo que só via, no céu, o vago clarão que a cidade, lá em baixo, atirava para o alto.
E assim fiquei. O que fiz, o que disse, a meia voz, não é da conta de ninguém. Quem sabe, que o cale; quem o ignora, que se resigne.
Muito tempo se passou, não menos de duas horas. Então, uma brisa muito leve e fresca acariciou-me o rosto. Eu tinha os olhos fechados; assim os mantive, até ouvir um riso murmurado e sentir uma presença muito próxima. Enchi-me da necessária coragem, sabendo que podia ser fulminado sem apelo, numa parcela de segundo. E abri os olhos.
Ela estava, como eu sentira, bem próxima de mim, envolvida numa claridade pálida. Malgrado a proximidade, não conseguia distinguir bem os contornos da sua figura, mas isso não me perturbou; a satisfação de ter sobrevivido ao primeiro olhar sobrepôs-se, por momentos, a qualquer outro sentimento ou pensamento.
A sua voz — musical, fazendo pensar num correr manso de água — soou no silêncio, não sei se vibrando no ar, se dentro de mim:
— Bem, isto é uma novidade. Há muito tempo que não me acontecia. Vários séculos, mesmo.
Afoitei-me a responder:
— Tenho uma resposta, mas não sei a quem vou dirigi-la. Quero dizer que não conheço a tua identidade exacta.
O seu rosto tornou-se mais nítido ao falar novamente:
— Ah, vocês são, decididamente, uma fonte de tédio. Não sei por que dão tanta importância às nossas identidades exactas… aliás, eu pronunciei estas duas palavras com aspas, não sei se as ouviste. Isso da «identidade exacta» é muito relativo e muito enganador, quando se trata de nós. E mesmo no vosso caso, pode criar confusões.
Intimamente, eu estava a sentir um imenso espanto com a minha atitude — como podia estar tão tranquilo, perante aquela enormidade, aquele fenómeno impossível de explicar e entender? Compreendi rapidamente que isto era devido à sua própria dimensão e qualidade: perante a impossibilidade de uma reacção verdadeiramente adequada, só me restava a aceitação passiva. Foi, portanto, com aparente naturalidade que repliquei:
— Mas para nós é importante sabermos com quem falamos…
Ela encolheu os ombros num movimento que adivinhei mais do que vi.
— Acautela-te, que podes estar a falar contigo mesmo. Mas faço-te a vontade. Digo-te que tenho como domínio as águas fluviais (enfim, as que não estão demasiado poluídas) e o meu trabalho favorito consiste em…
Interrompeu-se, depois disse: — Deixa-me ver se encontro a expressão exacta…
Eu, porém, já compreendera:
— Tu és psicopompa, não é verdade?
No seu rosto desenhou-se um sorriso um pouco trocista.
— Os vocábulos retorcidos que vocês arranjam. Sim, é isso.
Endireitei as costas e curvei a cabeça numa saudação:
— Nábia. Nábia dos Brácaros, Nábia dos… Vianenses? Como se chamava esta cidade onde estamos?
Ela abanou a cabeça, fez um esgar de rejeição.
— Não importa. Há hoje um tonto que lhe chamou Etóbriga. Mas era só a febril imaginação dele a funcionar. Não foi para saber o nome desta cidade que me chamaste.
Isso era verdade. Contudo, agora, que a tinha ali, à minha frente, estava confuso de mais para formular perguntas… não podia, no entanto, perder aquela oportunidade; fiz um esforço. Impaciente, Nábia insistiu:
— Então? Não posso ficar aqui muito tempo.
— Só um momento, por favor. Tenho uma lista de perguntas. Estou a consultar a memória.
Mal disse isto, a figura imprecisa da divindade tornou-se perfeitamente nítida. Não que se materializasse; eu continuava a ver as pedras da citânia através do seu corpo luminoso.
— Estás num mau sítio para consultar a memória! — disse ela, a rir. — Nas margens do Rio do Esquecimento!
Sim, eu sabia que o Lima, cuja foz se abria lá em baixo, teve essa reputação. Pelo menos, entre os autores antigos. Era um ponto por onde começar: perguntei-lhe se era verdade que lhe tivessem chamado Lethes, além de Límia.
— Talvez, na imaginação literata de alguns romanos, ou gregos — murmurou num tom sarcástico. — Nunca ouvi a gente de cá chamar-lhe assim.
Era tempo de eu passar a uma posição de igualdade.
— Claro que as águas do Lima nunca provocaram o esquecimento — afirmei doutamente.
Nábia concordou com um gesto de cabeça e reforçou:
— Claro que não. A memória do passado é essencial à espécie humana… e não só. O que me leva a colocar a hipótese de o meu superior hierárquico estar disposto a desistir da humanidade.
Como eu a olhasse numa interrogação ansiosa, ela acrescentou:
— Sim, isso mesmo. Afinal de contas, Ele está a permitir que a humanidade actual se esqueça das raízes. E de uma certa sabedoria ancestral.
De início, não entendi todo o significado destas palavras. Estranhamente, ele rebentou-me de súbito dentro da cabeça, com espantosa nitidez. Mas senti-me na obrigação intelectual de objectar:
— Salvo o respeito devido a uma divindade tradicional: foi essencial, para os homens, voltar as costas a um conhecimento antigo que nos impedia qualquer avanço. Sem isso, não haveria investigação científica. Sentimos a imperiosa a necessidade de poder, livremente, formular hipóteses e tirar conclusões, ainda que provisórias, a partir delas e das observações feitas, quer no meio natural quer em laboratório, sem sofrer interditos tribais nem ser alvo de travões eclesiásticos e perseguições inquisitoriais.
Contra o que eu esperava, ela não se indignou, até fez um pequeno gesto de concordância e disse:
— Isso é verdade, meu caro amigo. É verdade, mas. É uma pena: com os homens há sempre um «mas». Esse movimento ultrapassou os limites de um necessário equilíbrio dinâmico que deve existir no vosso mundo, ou para o qual, pelo menos, a humanidade deveria tender. E levou a um divórcio: entre as ciências chamadas exactas e as humanidades; entre cientistas cada vez mais especializados e o mundo real que os cerca. Entre o mundo fechado de onde saem grandes avanços científicos e tecnológicos e o resto do planeta.
Discurso inesperado na boca de uma divindade das águas fluviais. Porém não tive tempo para espantar-me, porque já o meu pensamento formulava um desabafo quase involuntário:
— Pois. É uma chatice. Veja o caso desta antiga Lusitânia: temos, de um lado, os cientistas, académicos, doutores, engenheiros, físicos, arquitectos, que dão pontapés na gramática, que não conseguem articular um discurso claro na sua língua natal; gente alheia aos valores espirituais, mesmo porque não acredita no espírito. Gente para quem as finanças, a economia e a investigação não são meios e sim fins. Mas, do outro lado, temos gente de muitas palavras (nem todas correctas, aliás, porque a qualidade da cultura, em Humanidades, está a perder-se) e que vive, faz política e actua, de um modo geral, sem se preocupar muito em saber se é a Terra que gira em volta do Sol ou vice-versa; que estabelece os seus raciocínios e as suas concepções ignorando altivamente os dados fornecidos pelas ciências, dados que, em muitos casos, são essenciais — não direi, sequer, para as conclusões a tirar, mas para a simples formulação de hipóteses de trabalho.
E não me contive que não acrescentasse:
— No meio, há uma grande massa inerte que só pensa futebol, só vê televisão e reage docilmente aos estímulos da publicidade e da propaganda. É tramado. A propósito: tem algum  clube preferido?
Uma nuvem de denso vapor envolveu a aparição de Nábia e ocultou-a. Eu tinha-a ofendido, pela certa. Quem me mandara falar de futebol a uma deusa psicopompa? Fiquei ofuscado pela minha própria estupidez. Perdera uma oportunidade única para desvendar segredos fundamentais.
Mas a nuvem brilhante não desaparecera, pelo contrário: olhando-a de frente, vi novamente um delicado rosto definir-se em luz e sombra, ganhar forma etérea. Já não era Nábia, ou esta transformara-se… não, não era Nábia.
Estremeci de temor e respeito ao ver aquela figura resplandecente vestida de branco e azul forte. E murmurei:
— Perdão, Senhora, perdão. Sou um pecador, eu sei.
A sua voz era infinitamente suave:
— A que Senhora estás a dirigir-te, posso saber?
Interdito, gaguejei:
— Mas… dirijo-me a vós!
De novo aquela voz leve, doce, que evocava o perfume do jasmim:
— Eu tenho muitos nomes e cada um desses nomes é todo um programa de fé e de vida. Em tempos, imagina tu, chamei-me Nábia. E Atégina. Mas isso é passado remoto. Aqui, nesta cidade, já me chamei Soledade, sabias?
Eu abandonara a minha pose ióguica, de pernas cruzadas, para apoiar os joelhos sobre a almofada. Foi assim, ajoelhado, que repliquei:
— Sabia. Mas… nesta cidade?
Ela olhou em volta enquanto dizia:
— Bem, não exactamente. Esta é a Cidade Velha, ou assim lhe chamavam. Enfim, não haverá grande diferença nas pessoas, bem feitas as contas. De qualquer modo, eu era Soledade… além.
Apontou numa direcção. Nem olhei para lá, seria inútil, de noite, sem lua, e no local onde me encontrava. Mas compreendi, sem ter dúvidas, que apontava para o pequeno morro da Senhora da Agonia. Curvei-me em humildade e respeito profundo.
— Qual a vossa mensagem?
Um riso transparente respondeu-me.
— As mensagens não são comigo. Nesta manifestação, quero dizer; se estivéssemos em Fátima, o caso mudava de figura. Não, não tenho mensagem; mas tenho um pedido.
— Senhora…
— Ouve. Também se relaciona com a memória. Como te disse, já ali me chamei Soledade, antes de ser Agonia. Nomes tristes, não achas? Dizem as pessoas que eles estão ligados às angústias das mulheres e das crianças que do morro viam os pescadores naufragar.
Arrisquei a pergunta: estariam as pessoas erradas, afinal?
A Senhora deu-me um sorriso triste.
— Não, que ideia. Mas é uma explicação muito incompleta. Por esquecimento. Aquele alto já se chamou Cerro dos Enforcados. Entendes?
— Entendo. Era ali que…
— Que executavam os condenados, exactamente. Então, que outro nome poderia eu ter naquele cerro, senão Agonia? Mas foi preciso chegar ao vosso século dezoito para isto ser entendido. Adiante, que se faz tarde: eis o meu pedido. Seria simpático que, ao menos durante as festas de Agosto, houvesse uma oração, um pensamento, uma vela acesa por todos os que ali foram enforcados. Alguns com razão, é certo, mas é uma questão de piedade e solidariedade humana. E depois, há gente pior que eles que continua a escapar à forca. Quando penso em alguns ministros do vosso Governo, por exemplo…
Achei melhor adverti-la: convinha ter cuidado. Já lá ia o tempo em que podíamos criticar o poder sem sermos democraticamente lixados.
— Talvez tenhas razão, meu filho. Mas há que arriscar. E o pedido está feito.
Subitamente, fiquei mergulhado em escuridão. Os meus olhos, ainda deslumbrados pela luz da aparição, precisaram de uns minutos para se adaptar e pude então ver uma vaga claridade no céu.
E um galo cantou.
João Aguiar
J. Sousa - Anta - Óleo sobre tela, 60x60 - 2007

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