BRUMAS DA MEMÓRIA
Para os poucos
que ainda sabem a letra do Hino Nacional, o título desta crónica há-de dizer
algo: é de entre as brumas da memória que se ouve a voz dos nossos egrégios
avós, etc., etc. O que acontece é que a memória nacional está cada vez mais
brumosa e nesse nevoeiro se perdem, esquecidos, muitos dos egrégios avós cuja
voz deveríamos ouvir ou, pelo menos, cuja lembrança deveríamos reter.
Pois bem, desta
vez proponho à vossa atenção um desses homens esquecidos, chamado Henrique de
Carvalho (1843 – 1909). Esquecido pela nossa amnésia, mas também, quiçá,
arredado por aquilo a que alguns considerarão ser incorrecção política: afinal
de contas, foi um homem do império e das colónias, um militar do séc. XIX que
se tornou conhecido por explorar a Lunda, por ser o seu primeiro governador e
promover a sua plena integração na Angola colonial. Além disso, anteriormente,
prestara serviço em Macau e em São Tomé. Sempre no império. Portanto, pessoa
para pôr de lado, dir-se-á…
E dir-se-á mal. Antes de mais, porque as
figuras históricas devem ser julgadas à luz da sua época e não da nossa; e
depois, no que toca particularmente a Henrique Augusto Dias de Carvalho, pelas
qualidades específicas que provou ter, ao longo da sua vida. Uma vida demasiado
preenchida para ser aqui narrada em pormenor; teremos de contentar-nos com umas
pinceladas.
Era militar de
carreira — chegou a general — e espera-se de um militar que seja corajoso. Pois
bem: Henrique de Carvalho era dotado de grande coragem física, e provou-o; mas,
curiosamente, provou-o quase sempre em acções de paz: no tempo em que esteve em
Macau, o Território andava em sobressalto, com ataques de piratas, um
banditismo crescente e a indisciplina da guarnição militar. Pois bem, o jovem
tenente graduado em capitão logrou pôr cobro a tudo isso, evitando sempre que
possível o recurso à violência. Sozinho e desarmado, internou-se em território
chinês para dar voz de prisão a uma vintena de desertores; e o que é
extraordinário é que os trouxe de volta, tal era o respeito e a confiança que
incutia nos subordinados. Mais tarde, em Angola, de novo só e sem armas, fez
como Santa Isabel de Aragão: meteu-se entre dois exércitos (um de quiocos,
outro de lundas) que iam defrontar-se em batalha. Falou com os chefes, reconciliou-os,
levou-os a apertarem as mãos. Acrescente-se que veio a receber a Torre e
Espada, que não é uma simples distinção honorífica.
Coragem física,
mas também moral; enquanto, em Luanda, várias vozes incitavam a uma acção
militar na Lunda (porque a guerra é lucrativa, sobretudo para os fornecedores),
Henrique de Carvalho opôs-se energicamente: sabia que podia fazer as coisas sem
derramamento de sangue. O que deu azo às costumadas intrigas e lhe causou não
poucos dissabores.
Teve ainda uma
outra coragem: a de não procurar os grandes gestos espectaculares. Em Macau,
São Tomé e Angola, a maior parte do seu trabalho — que não era apenas militar
mas também administrativo e de interesse civil — consistiu em actos pouco
«vistosos» mas essenciais: na tonta gíria política do nosso tempo, era,
verdadeiramente, um homem estruturante…
Mas os povos
sentem a acção de homens como este. Ao partir de Macau, a comunidade chinesa
ofereceu-lhe um faixa de seda bordada com uma mensagem de agradecimento; e em
1975, em Angola, a gente da Lunda pediu às tropas do MPLA e da FNLA que
respeitassem o monumento erguido a Henrique de Carvalho. O seu busto foi levado
para o Museu de Angola, em Luanda, numa cerimónia oficial organizada pelas
autoridades angolanas.
O que, julgo,
diz tudo.
João
Aguiar
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