terça-feira, 19 de março de 2013

VIAGENS NA HISTÓRIA - 17

 BRUMAS DA MEMÓRIA

Para os poucos que ainda sabem a letra do Hino Nacional, o título desta crónica há-de dizer algo: é de entre as brumas da memória que se ouve a voz dos nossos egrégios avós, etc., etc. O que acontece é que a memória nacional está cada vez mais brumosa e nesse nevoeiro se perdem, esquecidos, muitos dos egrégios avós cuja voz deveríamos ouvir ou, pelo menos, cuja lembrança deveríamos reter.
Pois bem, desta vez proponho à vossa atenção um desses homens esquecidos, chamado Henrique de Carvalho (1843 – 1909). Esquecido pela nossa amnésia, mas também, quiçá, arredado por aquilo a que alguns considerarão ser incorrecção política: afinal de contas, foi um homem do império e das colónias, um militar do séc. XIX que se tornou conhecido por explorar a Lunda, por ser o seu primeiro governador e promover a sua plena integração na Angola colonial. Além disso, anteriormente, prestara serviço em Macau e em São Tomé. Sempre no império. Portanto, pessoa para pôr de lado, dir-se-á…
E  dir-se-á mal. Antes de mais, porque as figuras históricas devem ser julgadas à luz da sua época e não da nossa; e depois, no que toca particularmente a Henrique Augusto Dias de Carvalho, pelas qualidades específicas que provou ter, ao longo da sua vida. Uma vida demasiado preenchida para ser aqui narrada em pormenor; teremos de contentar-nos com umas pinceladas.
Era militar de carreira — chegou a general — e espera-se de um militar que seja corajoso. Pois bem: Henrique de Carvalho era dotado de grande coragem física, e provou-o; mas, curiosamente, provou-o quase sempre em acções de paz: no tempo em que esteve em Macau, o Território andava em sobressalto, com ataques de piratas, um banditismo crescente e a indisciplina da guarnição militar. Pois bem, o jovem tenente graduado em capitão logrou pôr cobro a tudo isso, evitando sempre que possível o recurso à violência. Sozinho e desarmado, internou-se em território chinês para dar voz de prisão a uma vintena de desertores; e o que é extraordinário é que os trouxe de volta, tal era o respeito e a confiança que incutia nos subordinados. Mais tarde, em Angola, de novo só e sem armas, fez como Santa Isabel de Aragão: meteu-se entre dois exércitos (um de quiocos, outro de lundas) que iam defrontar-se em batalha. Falou com os chefes, reconciliou-os, levou-os a apertarem as mãos. Acrescente-se que veio a receber a Torre e Espada, que não é uma simples distinção honorífica.
Coragem física, mas também moral; enquanto, em Luanda, várias vozes incitavam a uma acção militar na Lunda (porque a guerra é lucrativa, sobretudo para os fornecedores), Henrique de Carvalho opôs-se energicamente: sabia que podia fazer as coisas sem derramamento de sangue. O que deu azo às costumadas intrigas e lhe causou não poucos dissabores.
Teve ainda uma outra coragem: a de não procurar os grandes gestos espectaculares. Em Macau, São Tomé e Angola, a maior parte do seu trabalho — que não era apenas militar mas também administrativo e de interesse civil — consistiu em actos pouco «vistosos» mas essenciais: na tonta gíria política do nosso tempo, era, verdadeiramente, um homem estruturante
Mas os povos sentem a acção de homens como este. Ao partir de Macau, a comunidade chinesa ofereceu-lhe um faixa de seda bordada com uma mensagem de agradecimento; e em 1975, em Angola, a gente da Lunda pediu às tropas do MPLA e da FNLA que respeitassem o monumento erguido a Henrique de Carvalho. O seu busto foi levado para o Museu de Angola, em Luanda, numa cerimónia oficial organizada pelas autoridades angolanas.
O que, julgo, diz tudo.
João Aguiar


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