O TREVO E A ESMERALDA
Não me dou bem
com o frio e a chuva é, para mim, uma necessidade, mas não um prazer; apesar
disso, tenho uma simpatia muito especial pela Irlanda, uma simpatia que abraça
a terra e a gente.
A terra,
montanhas, planícies, lagos, enseadas, porque é lindíssima, simultaneamente
acolhedora e selvagem, aberta e misteriosa. A gente, porque — ah, que inveja! —
ama o seu país e o seu rico património, que sabe proteger e de que sabe
desfrutar. Mas também porque, exceptuando as qualidades que referi, encontro
nela traços que nos são familiares: por exemplo, um alegre desrespeito pelo
«socialmente correcto». Enquanto ali ao lado, na Grã-Bretanha, as famílias da
pequena burguesia botam os filhos na cama ao fim da tarde, nesta terra do
trevo, nesta ilha a que chamam Esmeralda por ser de um verde tão brilhante (um
presente da copiosa chuva), nós vemos os pimpolhos à noitinha, nos restaurantes
e nos bares, aos lado dos pais (e das mães), que cervejam pacata e
abundantemente ou bebem o seu uísque como nós, antes, bebíamos o bagaço.
E há uma outra
qualidade nos Irlandeses (ou, pelo menos, em muitos Irlandeses) que eu prezo
particularmente. Ela revelou-se-me na minha primeira visita, em serviço — foi
então que me deixei encantar pelo país e me prometi um regresso em férias.
Tinha de
percorrer longas distâncias e recusei-me a conduzir naquilo que, para mim, é o
lado errado da estrada. Mas um colega, com quem viajava, declarou, com
tranquila e superior segurança, que não haveria problemas, estava habituado a
essas coisas, conduziria ele... só mais tarde, e tarde de mais, me explicou que
a sua experiência se limitava a uma única viagem em estradas inglesas — durante
a qual tivera um acidente.
Embalado na
ignorância deste sombrio pormenor, aceitei a solução. E o que tinha de
acontecer aconteceu: para os lados de Killarney, passámos junto de um castelo
medieval. O perito condutor de volante à direita olhou-o e comentou: «Olha que
castelo tão giro!»; eu respondi: «Olha o carro que aí vem!»; ele desviou-se —
mas para o lado que os seus reflexos lhe ditaram, ou seja, para a direita; e a
direita era o meio da estrada.
Choque
frontal, felizmente a baixa velocidade. O colega a decretar «explique você, que
o seu inglês é melhor». Uma senhora irlandesa em crise, tanto mais que o carro
era novo e o que iria o marido dizer. Uma GNR (que lá se chama «Garda»)
simpática e eficiente. Regresso ao hotel de boleia, oferecida por um
cordialíssimo espectador. Dois valentes uísques para recompor as emoções. E, no
dia seguinte, saída em seguro táxi, para evitar males maiores.
Solução
abençoada: pude, enfim, apreciar a paisagem sem ter o estômago contraído. E a
paisagem era magnífica. Em certo ponto, à beira de um lago, passámos por uma
casinha encantadora, que, se houvesse justiça neste mundo, seria minha; e o
motorista, tanto ou mais conversador que os portugueses, informou: «Essa casa
está sempre vazia. Ninguém lá fica muito tempo...». Sorrindo, perguntei se
estava assombrada. E, com a maior naturalidade, ele respondeu-me:
— Não. Por acaso,
esta não está.
E aqui têm a
tal qualidade que tanto me impressionou e agradou.
É bom ver
gente que continua a conviver com as suas tradições e com os seus fantasmas,
sem se apressar a ligar para a SIC ou para a TVI na esperança de trinta
segundos de protagonismo televisivo.
João
Aguiar