segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O TREVO E A ESMERALDA

Não me dou bem com o frio e a chuva é, para mim, uma necessidade, mas não um prazer; apesar disso, tenho uma simpatia muito especial pela Irlanda, uma simpatia que abraça a terra e a gente.
A terra, montanhas, planícies, lagos, enseadas, porque é lindíssima, simultaneamente acolhedora e selvagem, aberta e misteriosa. A gente, porque — ah, que inveja! — ama o seu país e o seu rico património, que sabe proteger e de que sabe desfrutar. Mas também porque, exceptuando as qualidades que referi, encontro nela traços que nos são familiares: por exemplo, um alegre desrespeito pelo «socialmente correcto». Enquanto ali ao lado, na Grã-Bretanha, as famílias da pequena burguesia botam os filhos na cama ao fim da tarde, nesta terra do trevo, nesta ilha a que chamam Esmeralda por ser de um verde tão brilhante (um presente da copiosa chuva), nós vemos os pimpolhos à noitinha, nos restaurantes e nos bares, aos lado dos pais (e das mães), que cervejam pacata e abundantemente ou bebem o seu uísque como nós, antes, bebíamos o bagaço.
E há uma outra qualidade nos Irlandeses (ou, pelo menos, em muitos Irlandeses) que eu prezo particularmente. Ela revelou-se-me na minha primeira visita, em serviço — foi então que me deixei encantar pelo país e me prometi um regresso em férias.
Tinha de percorrer longas distâncias e recusei-me a conduzir naquilo que, para mim, é o lado errado da estrada. Mas um colega, com quem viajava, declarou, com tranquila e superior segurança, que não haveria problemas, estava habituado a essas coisas, conduziria ele... só mais tarde, e tarde de mais, me explicou que a sua experiência se limitava a uma única viagem em estradas inglesas — durante a qual tivera um acidente.
Embalado na ignorância deste sombrio pormenor, aceitei a solução. E o que tinha de acontecer aconteceu: para os lados de Killarney, passámos junto de um castelo medieval. O perito condutor de volante à direita olhou-o e comentou: «Olha que castelo tão giro!»; eu respondi: «Olha o carro que aí vem!»; ele desviou-se — mas para o lado que os seus reflexos lhe ditaram, ou seja, para a direita; e a direita era o meio da estrada.
Choque frontal, felizmente a baixa velocidade. O colega a decretar «explique você, que o seu inglês é melhor». Uma senhora irlandesa em crise, tanto mais que o carro era novo e o que iria o marido dizer. Uma GNR (que lá se chama «Garda») simpática e eficiente. Regresso ao hotel de boleia, oferecida por um cordialíssimo espectador. Dois valentes uísques para recompor as emoções. E, no dia seguinte, saída em seguro táxi, para evitar males maiores.
Solução abençoada: pude, enfim, apreciar a paisagem sem ter o estômago contraído. E a paisagem era magnífica. Em certo ponto, à beira de um lago, passámos por uma casinha encantadora, que, se houvesse justiça neste mundo, seria minha; e o motorista, tanto ou mais conversador que os portugueses, informou: «Essa casa está sempre vazia. Ninguém lá fica muito tempo...». Sorrindo, perguntei se estava assombrada. E, com a maior naturalidade, ele respondeu-me:
— Não. Por acaso, esta não está.
E aqui têm a tal qualidade que tanto me impressionou e agradou.
É bom ver gente que continua a conviver com as suas tradições e com os seus fantasmas, sem se apressar a ligar para a SIC ou para a TVI na esperança de trinta segundos de protagonismo televisivo.
                                    João Aguiar


J. Sousa - O Canto dos Fantasmas - Óleo sobre tela . 2007



3 comentários:

  1. Não conhecia este seu quadro;gosto.

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  2. Olá, boa noite,
    Eu também não conhecia, mas é agradável termos de vez em quando algumas surpresas.
    Bjs.

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  3. Num dia tão chuvoso, recordar os fantasmas e o verde esmeralda da Irlanda é... qualquer coisa muito perto de uma agradável e reconfortante consolação!

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