OS ESQUECIDOS
Em 1732, reinava em
Portugal D. João V, foi publicado em Lisboa o primeiro tomo de uma obra
intitulada «Ennoea, ou aplicação do entendimento sobre a Pedra Filosofal», cujo
segundo tomo sairia no ano seguinte.
O autor era um médico
formado em Coimbra chamado Anselmo
Caetano de Abreu Gusmão Castelo Branco. Para os estudiosos das ciências
herméticas, ele tem a particularidade de ser o único, ou um dos muito poucos
alquimistas portugueses — conhecidos, entenda-se.
Não vamos tratar aqui de Alquimia, portuguesa ou estrangeira. O caso do
Dr. Anselmo Caetano Castelo Branco é mencionado por ser um daqueles estudiosos
portugueses que ousaram debruçar-se sobre matérias heterodoxas. E digo
«ousaram» porque, regra geral, não era seguro fazê-lo. Veja-se outro exemplo: Frei Vicente Nogueira (1586 – 1654), fidalgo,
escritor, cónego da Sé de Lisboa, coleccionador de livros; sabia grego,
latim, caldaico, siríaco, árabe, italiano, francês e castelhano. A Inquisição
apreendeu-lhe a biblioteca, muito rica em obras herméticas. Em 1631, partiu
para Roma, possivelmente para evitar outros inconvenientes maiores. É verdade
que a Restauração de 1640 lhe reconheceu os méritos, pois Vicente Nogueira exerceu o cargo de
encarregado de negócios de Portugal junto da Santa Sé entre 1643 e 1654;
considerando estas datas, vemos que não regressou ao seu país.
Poderia, se tal tivesse
interesse, publicar aqui uma lista bem longa de nomes que, de uma forma ou de
outra, sofreram, ao longo da História, as amarguras das limitações impostas à
pesquisa, ao estudo e à especulação, seja no campo religioso, seja no campo
filosófico ou na pesquisa científica. E note-se que, nesta matéria, estou muito longe de ser
fundamentalista: reconheço (nem todos o fazem) grandes méritos a D. João V, em
cujo reinado se assinalam importantes iniciativas culturais; e nem sequer mando
para o inferno D. João III, uma figura histórica demasiado complexa para ser
atabalhoadamente despachada para o rol dos beatos tapados e maléficos — ao
contrário do que pensa e escreve muita gente bem pensante.
Estou, assim, muito à
vontade para dizer o que penso; e penso que ainda hoje (sim; ainda hoje)
sofremos, não raro, da estreiteza que nos foi imposta por alguns séculos de
Inquisição. Note-se que esta, sob as suas muitas formas (e, atenção, não
somente a católica romana), foi um fenómeno geral e não peninsular. Digamos,
porém, que por cá durou mais tempo, ou/e foi mais abrangente, e isto por
motivos vários.
Não posso, agora, enumerar
nem analisar esses motivos. Posso apenas observar que a Inquisição nos deixou
uma larga ferida que ainda não sarou por completo. É claro que hoje se disfarça
essa influência inconfessável e que, de resto, tem muito, tem quase tudo de
inconsciente. Mas não será por acaso que o nosso solo não parece ser muito
apropriado para a cultura da inovação. Os inventores portugueses ganham
medalhas de ouro — mas as suas invenções, essas, nunca as vemos. E os homens
que no passado abriram a janela do pensamento estão hoje esquecidos, quase
todos.
Por isso aqui lhes presto
homenagem.
João Aguiar
Biblioteca do Convento de Mafra
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