terça-feira, 23 de abril de 2013

VIAGENS NA HISTÓRIA - 22


OS ESQUECIDOS

Em 1732, reinava em Portugal D. João V, foi publicado em Lisboa o primeiro tomo de uma obra intitulada «Ennoea, ou aplicação do entendimento sobre a Pedra Filosofal», cujo segundo tomo sairia no ano seguinte.
O autor era um médico formado em Coimbra chamado Anselmo Caetano de Abreu Gusmão Castelo Branco. Para os estudiosos das ciências herméticas, ele tem a particularidade de ser o único, ou um dos muito poucos alquimistas portugueses — conhecidos, entenda-se.
Não vamos tratar aqui de Alquimia, portuguesa ou estrangeira. O caso do Dr. Anselmo Caetano Castelo Branco é mencionado por ser um daqueles estudiosos portugueses que ousaram debruçar-se sobre matérias heterodoxas. E digo «ousaram» porque, regra geral, não era seguro fazê-lo. Veja-se outro exemplo: Frei Vicente Nogueira (1586 – 1654), fidalgo, escritor, cónego da Sé de Lisboa, coleccionador de livros; sabia grego, latim, caldaico, siríaco, árabe, italiano, francês e castelhano. A Inquisição apreendeu-lhe a biblioteca, muito rica em obras herméticas. Em 1631, partiu para Roma, possivelmente para evitar outros inconvenientes maiores. É verdade que a Restauração de 1640 lhe reconheceu os méritos, pois Vicente Nogueira exerceu o cargo de encarregado de negócios de Portugal junto da Santa Sé entre 1643 e 1654; considerando estas datas, vemos que não regressou ao seu país.
Poderia, se tal tivesse interesse, publicar aqui uma lista bem longa de nomes que, de uma forma ou de outra, sofreram, ao longo da História, as amarguras das limitações impostas à pesquisa, ao estudo e à especulação, seja no campo religioso, seja no campo filosófico ou na pesquisa científica. E note-se que, nesta matéria,  estou muito longe de ser fundamentalista: reconheço (nem todos o fazem) grandes méritos a D. João V, em cujo reinado se assinalam importantes iniciativas culturais; e nem sequer mando para o inferno D. João III, uma figura histórica demasiado complexa para ser atabalhoadamente despachada para o rol dos beatos tapados e maléficos — ao contrário do que pensa e escreve muita gente bem pensante.
Estou, assim, muito à vontade para dizer o que penso; e penso que ainda hoje (sim; ainda hoje) sofremos, não raro, da estreiteza que nos foi imposta por alguns séculos de Inquisição. Note-se que esta, sob as suas muitas formas (e, atenção, não somente a católica romana), foi um fenómeno geral e não peninsular. Digamos, porém, que por cá durou mais tempo, ou/e foi mais abrangente, e isto por motivos vários.
Não posso, agora, enumerar nem analisar esses motivos. Posso apenas observar que a Inquisição nos deixou uma larga ferida que ainda não sarou por completo. É claro que hoje se disfarça essa influência inconfessável e que, de resto, tem muito, tem quase tudo de inconsciente. Mas não será por acaso que o nosso solo não parece ser muito apropriado para a cultura da inovação. Os inventores portugueses ganham medalhas de ouro — mas as suas invenções, essas, nunca as vemos. E os homens que no passado abriram a janela do pensamento estão hoje esquecidos, quase todos.
Por isso aqui lhes presto homenagem.

João Aguiar

Biblioteca do Convento de Mafra

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