VIAGEM AO VENDAVAL
Serve esta
viagem na História para prestar homenagem a um homem português, pouco
brilhante, mas muito injustiçado. Quanto ao vendaval de que se fala aqui,
inclui várias rajadas destruidoras: a Revolução Francesa e as suas
consequências em toda a Europa; a invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão;
a Revolução Liberal portuguesa; a independência do Brasil e, pelo meio, várias
guerras. Foi isto o que o tal homem injustiçado teve de enfrentar —e muito mais
ainda, por acréscimo.
O leitor já
terá percebido que estou a evocar a figura do rei D. João VI. Certas
historiografias — a romântica, a marxista, entre outras — têm zurzido
impiedosamente este monarca. Mas os juízos que sobre ele fazem são, no mínimo,
apressados. Poucos governantes, nacionais ou estrangeiros, tiveram de enfrentar
um período de tantas mutações brutais, um «salto» tão fundamental na evolução
social, política, económica e ideológica como D. João VI enfrentou ao longo dos
34 anos em que chefiou o Estado, primeiro em nome da sua mãe, D. Maria I,
depois como regente oficialmente investido e finalmente como rei. Note-se,
também, que D. João não contava, de todo, subir ao trono: o herdeiro era o seu
irmão D. José, príncipe do Brasil, ao que parece com melhor cabeça e que fora cuidadosamente
preparado por Pombal, mas que viria a morrer aos vinte e sete anos.
A questão é
muito simples: durante o vendaval, europeu e português, a que me referi,
Portugal teria necessitado de um génio e de um herói. Que pena: em vez disso,
teve somente um homem sensato, honesto, bem intencionado e pacífico, ansioso
por evitar conflitos e derramamentos de sangue. Ora, a esse homem, o que lhe
saiu na rifa foi uma série de guerras e revoluções, uma família desunida em que
se remexia uma amantíssima esposa militantemente reaccionária, um país
invadido, destroçado, economicamente destruído e saqueado pelos invasores.
Seria difícil fazer melhor do que ele fez, nas circunstâncias em que ocupou o
trono de Portugal.
Não é possível
apresentar aqui o historial do reinado de D. João VI. O que é possível — e,
atrevo-me a dizer, necessário — é fazer a seguinte advertência: não devemos
iludir-nos ingenuamente com o pouco brilho e a barriga do senhor, tal como os
retratos o mostram. Não era um tonto que ali estava. A retirada da família real
para o Brasil foi um golpe de mestre e D. João, então ainda regente, adoptou
uma política extremamente subtil, mesmo maquiavélica: arranjou as coisas de
modo a que, na Europa, Portugal pudesse ser considerado como «aliado» da França
(por isso deixou disposições para que não houvesse resistência); ao mesmo
tempo, mantinha os portos brasileiros abertos aos navios ingleses, para jogar a
cartada britânica logo que o ímpeto napoleónico fosse quebrado. Nada disto era
heróico, mas ele não queria heroísmo, queria, sim, acautelar a futura
independência do seu povo e poupar-lhe, quanto possível, as misérias de uma
guerra.
Nos conflitos
que acompanharam a instauração do constitucionalismo, o rei agiu sempre no
sentido de apaziguar os ânimos, de conseguir uma evolução pacífica, de promover
a concórdia. Quem sabe, se não o tivessem assassinado — como parece ter sido o
caso —, talvez ainda pudesse concretizar uma parte do seu sonho, um país
pacificado, um povo reconciliado consigo mesmo.
Se falhou (e falhou),
a culpa não foi sua. O seu grande defeito foi não ter sido um génio. Bom, mas
criticar é fácil e aqueles que o têm coberto de lama também o não foram, nem
são…
João
Aguiar
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