UMA ESTRANHA HERANÇA
A viagem deste
mês leva-nos, para começar, aos séculos XII e XIII. E para tornar as coisas
mais claras, temos de passar brevemente pela Itália.
Foi aí que,
nesses séculos, decorreu a luta entre Guelfos e Gibelinos. Não podemos deter-nos
nesta questão; digamos que, «grosso modo», se tratou de um confronto entre o
Papado e o Sacro Império Romano-Germânico. Os Guelfos defendiam a supremacia do
Papa, os Gibelinos a supremacia do Imperador. Mas o termo «gibelino» ganhou,
pelo menos modernamente, um sentido histórico mais lato: designa, ainda que de
forma vaga e genérica, uma certa concepção que, mesmo sem deixar de respeitar o
pontífice de Roma, defende maior independência espiritual e política do
indivíduo e do Estado. Assim, têm sido associados a este “gibelinismo”
correntes e movimentos como o dos “espirituais” franciscanos e o dos
joaquimitas, ou seja, seguidores dos ensinamentos do abade Joaquim de Flora.
Entremos agora
em Portugal. O nosso país foi sempre, desde o início, um filho dilecto de Roma.
A nossa independência tornou-se indiscutível com a bula “Manifestis Probatum”;
o nosso primeiro rei declarou-se vassalo de São Pedro. Mas, simultaneamente, ao
longo da primeira dinastia portuguesa, houve sempre manifestações de
“gibelinismo”: é essa a estranha herança de que falo — estranha porque poucas
vezes tem sido reconhecida como tal pelos próprios portugueses.
O primeiro
sinal que dela temos é lendário: a história do “bispo negro”, que Alexandre
Herculano aproveitou e que mostra um D. Afonso Henriques recusando-se a
obedecer ao Papa. Trata-se de uma lenda, claro, mas as lendas dizem-nos muito
sobre a mentalidade e as ideias que prevalecem, a dado momento, em determinado
contexto social.
Já não são
lendários os constantes conflitos entre a coroa e a alta hierarquia
eclesiástica durante os reinados de D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II e
D. Afonso III. Houve uma trégua com D. Dinis, porque este foi um mestre em
diplomacia; mas foi também ele quem torneou a decisão pontifícia de dissolver a
Ordem do Templo para obter a criação da Ordem de Cristo, em que se integraram
todos os templários portugueses. E, mais tarde, será com o neto deste mesmo
rei, D. Pedro I, que entrará em vigor o chamado Beneplácito Régio,
estabelecendo que nenhum documento vindo da Cúria romana será válido sem o
acordo expresso do soberano, que mandará verificar a sua autenticidade e também
se não contraria as leis do país. É, verdadeiramente, uma expressão da
concepção gibelina do poder.
Mas há que
referir ainda as vozes da heterodoxia religiosa, que foram depois abafadas mas
cujo murmúrio chega até nós: a influência dos espirituais franciscanos; as
ideias de um certo Afonso Geraldes de Montemor e as de um certo Tomás Escoto,
que pregou na igreja de Santos, em Lisboa — ambos foram fulminados pela furiosa
e ortodoxa pena de Frei Álvaro Pelágio, bispo de Silves. Que, por sua vez, foi
mandado calar por D. Afonso IV e D. Pedro I e teve de abandonar a sua diocese.
Falta-nos o
espaço para continuar. No entanto, o que aqui fica já basta para entender que —
sem, de modo algum, negar o papel importante na nossa história dos grandes
nomes ortodoxos da Igreja — deveremos considerar, no nosso legado, essa
“corrente gibelina” e, com ela, as linhas não-canónicas de pensamento filosófico
e religioso que surgiram em Portugal. Talvez mereçam mais atenção e um estudo
mais atento.
João
Aguiar
Charola do Convento de Cristo — em TOMAR |
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