CIDADES SOBREPOSTAS
É uma verdade que, de tão evidente, acaba por ficar
oculta, porque ninguém pensa nela: a vida de uma cidade não é apenas aquilo que
nós vemos, as casas, as pessoas, os carros a passarem, aqui e agora; é também o
que nela aconteceu no passado — sobretudo, em certos lugares especiais, que por
esses acontecimentos ficaram ligados à sua história. Uma cidade é, no fundo, a
sobreposição de várias cidades.
O que vos
proponho é um breve passeio por Lisboa, parando em certos lugares que ficaram
marcados por sucessos históricos — embora, hoje, pouco reste dessas marcas.
Evitemos os
sítios óbvios, como o Terreiro do Paço (início da Restauração de 1640,
aclamação de D. João IV, etc.) e o castelo de S. Jorge, que, esse, é toda uma
enciclopédia. Mas, não longe do castelo, fica o Limoeiro, onde hoje funciona o
Centro de Estudos Judiciários e onde, durante longos anos, funcionou o mais
conhecido estabelecimento prisional de Lisboa. Aí se encontram ainda os
vestígios de um paço real e era nele que se encontravam D. Leonor Teles e o
conde Andeiro quando, a 6 de Dezembro de 1383, o Mestre de Avis lá entrou para
matar o favorito da rainha regente. Foi, pois, nesse lugar que se juntou depois
o povo de Lisboa, levantado por Álvaro Pais, para aclamar o Mestre e insultar a
rainha — ou seja, foi nesse lugar que se deu o primeiro episódio decisivo da
revolução que colocou no poder uma nova dinastia.
Mas, descendo
um pouco, chega-se à Sé; e, nesse mesmo dia 6 de Dezembro, pouco após a morte
do Andeiro, aí se juntou também a multidão enraivecida, porque o bispo de
Lisboa, D. Martinho, não mandara repicar os sinos, como exigiam os populares,
que forçaram as portas. O bispo, que, azar o seu, era castelhano, refugiou-se
numa das torres e de lá o atiraram para a rua, com grande soma de gritos e de
insultos — os insultos ainda hoje se podem ouvir, mas trocam-se entre
automobilistas.
Vamos agora às
proximidades do mosteiro dos Jerónimos, que, esse, é um dos tais lugares
óbvios, de modo que, de momento, não entremos; em vez disso, vamos aos pastéis
de Belém. Ora, a casa mais conhecida que os vende está construída em terreno
maldito — ou, pelo menos, era isso o que o marquês de Pombal havia decidido.
Mesmo ao lado da pastelaria, encontra-se o Beco do Chão Salgado; entrando nele,
depara-se com um marco de pedra no qual está escrita a maldição pombalina. Isto
porque em todo aquele terreno, hoje coberto de construções — com excepção do
beco — se erguia, no século XVIII, o palácio dos duques de Aveiro. Ora, como se
sabe, o duque de Aveiro, D. José de Mascarenhas, foi considerado culpado no
caso do atentado contra D. José I e executado publicamente em Belém. O seu
palácio foi arrasado e o chão coberto de sal — daí o nome do beco — e
colocou-se ali o tal marco, anunciando que naquele terreno jamais se poderia
construir. O que não se cumpriu, como pode ver quem lá vá; porém, o marco e o
beco ainda evocam a tragédia.
Enfim, o
último lugar cuja visita hoje proponho é a zona do Arco do Cego ou, mais
precisamente, as proximidades do antigo liceu (hoje escola) D. Filipa de
Lencastre. Aí havia uma lápida, que mais recentemente foi deslocada — sem
cerimónia — para o pequeno jardim que fica junto do gigantesco edifício da
Caixa Geral de Depósitos.
Essa lápida
comemora a intervenção da rainha Santa Isabel, quando as tropas do rei D. Dinis
e as do seu herdeiro, o futuro Afonso IV, se defrontavam no início de uma
batalha de Alvalade que não chegou a realizar-se, porque a rainha, que fora
avisada, veio de Odivelas, onde se encontrava, e meteu-se, sozinha, entre os
dois exércitos, forçando-os a baixar as armas.
Termino assim
esta peregrinação por outros tempos da cidade de Lisboa, porque é bonito
rematar com um acto de paz.
João
Aguiar
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