UM SIMPLES SOLDADO
Este mês, a
nossa viagem na História leva-nos a França e ao ano de 1918. Foi, como se sabe,
o último da I Guerra Mundial, mas não foi menos sangrento do que os anteriores.
Portugal
entrara oficialmente no conflito, contra os impérios centrais, em 1916; porém,
na Europa — pois que em África houvera já escaramuças com tropas alemãs —, o
envio do Corpo Expedicionário Português (CEP) só se concretizaria em finais de
Janeiro de 1917. Não vou aqui analisar a fundo os motivos que levaram o Governo
português de então a fazer alinhar o país com um dos blocos beligerantes; regra
geral, aponta-se como principal razão a necessidade de poder defender o império
colonial, sobretudo Angola e Moçambique; pela minha parte, e embora não
recusando a validade dessa perspectiva, suspeito que, a complementá-la, estaria
o desejo da República, então ainda muito recente mas já precocemente
debilitada, abalada por dissensões internas, por uma grave instabilidade e
sérias provações económicas e financeiras, de encontrar uma forma de minimizar
esses problemas contrapondo-lhes um projecto nacional, mobilizador, que
concentrasse interesses e atenções.
Para o caso em
apreço, isso não interessa, de resto. O «caso» em apreço é um só homem, um
jovem camponês transmontano de vinte e dois anos, nascido em Valongo, concelho
de Murça, a quem tinham vestido um uniforme e incorporado no Regimento de
Infantaria 19, de Chaves. Chamava-se Aníbal Augusto Milhais; ficaria, porém, na
História sob o nome de Soldado Milhões.
O rapaz embarcou
para França a 23 de Maio de 1917. Não sabia, evidentemente, que embarcava para
um destino histórico — e lendário, já que os relatos das suas proezas divergem
em vários pontos. Do que não há dúvida é que Aníbal Milhais entrou na galeria
dos heróis portugueses durante a batalha de La Lys, a 9 de Abril de 1918.
Com este nome
designa-se o combate do primeiro dia da grande ofensiva alemã contra a 2ª
Divisão do CEP, como parte da «Operação Georgette», lançada pelo 6º Exército
alemão do general Ludendorff. Foi nesse combate que Milhais ganhou o seu nome
de honra: a bravura que mostrou foi tal que o seu comandante, o major João
Ferreira do Amaral, o abraçou e lhe disse: «Chamas-te Milhais, mas vales
milhões!». E o «Milhões» ficou.
Três meses
depois, em Julho, o Soldado Milhões tornava-se definitivamente célebre: no
campo de Isberg, sozinho, empunhando a sua metralhadora Lewis, cobriu e
protegeu a retirada dos seus camaradas portugueses e de soldados escoceses.
Consta que se houve de tal forma que os alemães pensaram estarem a enfrentar
toda uma unidade inimiga. Em consequência — coisa muito rara — recebeu a Torre
e Espada no próprio campo de batalha, das mãos do general Gomes da Costa. A
esta distinção seguir-se-ia a Cruz de Guerra, a Cruz de Leopoldo da Bélgica e
muitas outras.
Nada disto
impediu que mais tarde, em 1928, o herói emigrasse para o Brasil, para ver se
conseguia sustentar os filhos: uma pátria agradecida NÃO velava por ele… porém,
os portugueses residentes no Brasil abriram uma subscrição a seu favor, para
que pudesse viver dignamente no seu país. E Milhões regressou a Portugal.
Dedicou-se uma vez mais à lavoura, o seu ofício de sempre; e veio a falecer em
1970.
Teve honras
militares; fizeram-lhe um monumento. Mas eu penso, humildemente, que é preciso
algo mais: manter viva a sua memória. Não temos assim tantos como ele para nos
darmos ao luxo de esquecer.
João Aguiar
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