O QUE FALTAVA DIZER
Não é a
primeira vez que, nestas crónicas, abordo a revolução de 1383 – 1385. Aliás, a
crónica do mês passado focava um assunto que lhe está muito próximo, isto é, a
batalha dos Atoleiros. Ora, se volto à mesma época e a um tema já referido
anteriormente, é por duas razões; primeira, nunca é demais recordar um facto
tão importante e que tende a cair no esquecimento; 1383 deveria ser recordado, pelo menos, com o destaque dado ao 25 de
Abril de 1974. Segunda razão: faltava ainda dizer-vos qualquer coisa — o
significado europeu, e mesmo mundial, do que ocorreu durante aqueles dois anos
dos finais do século XIV.
Às vezes, temos
uma visão mais nítida do nosso país quando o olhamos com os olhos de um
estrangeiro. É o que se passa neste caso em relação a um autor pouco conhecido,
o francês Dominique Lelièvre, autor de um livro que passou quase desapercebido:
«Mer et Révolution». A maior parte desta obra não nos traz propriamente
novidades, mesmo porque, na sua maioria, as fontes são portuguesas (a começar
pelo incomparável Fernão Lopes). Porém, ao introduzir o assunto do seu livro
perante os leitores, o autor faz algumas considerações que, regra geral, os
meus compatriotas (aqueles, bem poucos, que conhecem o assunto) nunca fazem,
nem lhes entra sequer na cabeça.
É assim que
Dominique Lelièvre faz notar que os portugueses «foram os únicos na Europa a
conseguir com êxito, à escala de uma nação, uma “revolução burguesa” (1383 –
85)». E, mais adiante, acrescenta: «Se o caso de Portugal é único, não é por
isso menos exemplar, tanto pela vitória conseguida pelas armas com uma táctica
tipicamente “burguesa” já experimentada na Flandres perante os orgulhosos
senhores franceses, como pelos avanços sociais, mesmo que estes hajam sido
minimizados ao longo dos decénios seguintes. Desta “revolução burguesa”, cujo
primeiro mérito é o seu êxito, nasce uma nova dinastia que levará Portugal ao
firmamento dos países descobridores. Estes acontecimentos revolucionários
mereciam ser conhecidos e reconhecidos».
Conhecidos e
reconhecidos: é isso o que faz falta. Tanto a nível internacional como (em
primeiro lugar) a nível nacional. Na Europa, o século XIV, tempo de transição,
foi fértil em levantamentos populares, motins e revoltas. De todos esses
tumultos, os mais conhecidos foram as «jacqueries», em França. As classes
populares queriam libertar-se do jugo da nobreza, os burgueses queriam um lugar
ao Sol. Mas, nesse século XIV, tais movimentos acabaram por ser todos
esmagados; serviram de prelúdio à futura transformação e nada mais. Excepto em
Portugal. Aí — ou melhor, aqui — a revolução venceu; e venceu (o que é muito
importante) de um modo «operacional», isto é: foi possível encontrar um novo
equilíbrio. De modo revolucionário, contra toda a tradição, elegeu-se um novo rei
para que iniciasse uma nova dinastia. O povo reclamou ao Mestre de Avis que os
ricos pagassem taxas, fintas e talhas, tal como os pobres pagavam. Os
mesteirais passaram a estar representados no governo municipal de Lisboa e
outras cidades. O conselho régio deixou de ser somente formado por nobres e
membros do alto clero: os letrados falavam agora mais alto.
Não tenho
espaço, evidentemente, para enumerar as mudanças trazidas pela revolução. O que
importa, repito, é que, na ideia de um escritor não português, esta revolução é
um caso único e exemplar.
O que é
inteiramente correcto. Mas nós, os descendentes de toda aquela gente que fez a
revolução de 83 – 85, teremos acaso uma opinião sobre o assunto? Saberemos,
sequer, de que é que se trata?
É uma dúvida, no
mínimo, angustiante.
João Aguiar
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