O BECO DA CARPIDEIRA
Macau. Ano da graça do Senhor de
1999
Do que eu sentia saudades
era do tempo de Verão, do tempo quente: a roupa empapada de transpiração,
colada ao corpo, o ar escaldante como vapor de uma chaleira posta ao lume, o
contraste delicioso do outro ar, condicionado, ao entrar num qualquer edifício
e depois, à saída, o regresso ao calor, os óculos instantaneamente embaciados e
novamente, quase sem transição, o suor a brotar da pele, a espalhar-se pela
camisa e pelas calças. A chuva súbita e morna que se mistura com a água
libertada pelo corpo. Memórias vagamente nostálgicas e quase sensuais de chuvas
passadas, chuvas tropicais, recebidas noutro lugar com o mesmo prazer secreto e
morno.
Contudo, em boa verdade, não
podia queixar-me do tempo. Era um tempo magnífico de estação seca, um Dezembro
luminoso e doce. Que lhe encontrasse uma ténue tristeza escondida nessa luz e
no próprio ar, só a mim podia ser atribuída tal responsabilidade e só de mim
podia queixar-me. O defeito estava em mim, não no dia nem na cidade.
O defeito estava ainda,
talvez, em que nesse dia eu havia percorrido longa e lentamente a cidade, toda
a cidade — e uma parte do Território — a pé. Não segundo um itinerário
sistemático, antes ao sabor de um capricho inconsciente. E agora a tarde
resvalava muito devagar para a noite e um cansaço mortal ganhava-me o corpo
enquanto, num vaivém automático e absurdo, passava e voltava a passar diante do
beco.
Levei algum tempo a
aperceber-me do que fazia. Era um vaguear obsessivo que começara na igreja de
São Domingos e se alargara depois em percursos mais ou menos circulares, cada
vez mais amplos. Agora fixara-se naquela rua, primeiro num sentido e depois no
inverso, mas sempre com uma paragem em frente do beco.
Este não tinha nenhum traço
particular. Era um dos muitos que existem na parte velha da cidade, sombrios e
desarrumados. Todos esses becos me atraem porque é a cidade velha que me atrai
especialmente, mas há outros que me parecem bem mais interessantes — por causa
de uma árvore, ou de um revestimento vegetal a cobrir paredes enegrecidas pela
humidade, ou de um pequeno altar consagrado a uma qualquer divindade doméstica.
Ali não havia nada disso e
no entanto eu não conseguia afastar-me.
Fixei o olhar na placa da
toponímia e li:
Beco da Carpideira.
O nome não me era estranho.
Distraidamente, coleccionara-o na memória ao lado de outros nomes, a Calçada
das Verdades, a Travessa da Guelra, o Pátio do Comprador, a Travessa de Sancho
Pança, e até esse dia não fora mais que uma simples peça de colecção e não
havia qualquer motivo para que não fosse apenas isso e assim continuasse.
Nenhum motivo, a não ser que, desta vez, eu queria entrar.
Também não deveria haver
razão especial que me impedisse, excepto que sentia uma relutância tão forte quanto
a vontade de o fazer. Relutância, insisto, e não medo. Esta era uma distinção
muito nítida. Foi ela que me decidiu, já que não encontrava uma explicação
aceitável para o meu comportamento — a não ser a disposição particular com que
me levantara nessa manhã.
Portanto, entrei no Beco da
Carpideira e dominei o estremecimento que me sacudiu o corpo ao dar o primeiro
passo. O Sol desapareceu, ficou na rua que deixara atrás de mim.
Velhas casas, dois
contentores de lixo, um gato a deslizar entre dois bancos de madeira
abandonados ali. Dois velhos chineses que me olharam com uma indiferença
tranquila, um garoto do seus oito anos a fazer trabalhos escolares sentado numa
cadeira de metal desconjuntada. E um forte perfume de incenso, que me levou até
ao fundo do beco, onde vi a porta, aberta, de uma loja de artigos religiosos
budistas.
Lojas dessas encantam-me —
não pela qualidade nem pela beleza de cada objecto, regra geral de plástico ou
de lata, a mais pura fancaria no mais puro kitsch, mas pelo conjunto, a galeria de divindades, o
mistério das inscrições em caracteres chineses, as figuras de papel que servem
para queimar nos funerais. Mas nunca entro sem ir acompanhado de alguém que
fale cantonense, porque não sei regatear, nem sequer em português.
No entanto, entrei. Pela
mesma razão e com as mesmas sensações mescladas que havia experimentado ao
penetrar no beco.
Lá dentro vi — quando os
meus olhos se habituaram à penumbra — o dono da loja: um chinês de longa barba,
muito mais velho do que os que eu vira lá fora.
Um chinês fora de moda.
Digo isto por várias razões:
porque aquela barba, muito branca e sedosa, era a mais longa que eu já
observara, excepto em filmes (e, ainda assim, filmes americanos com péssimas
imitações de personagens chinesas); pela túnica que vestia, que era
verde-esmeralda, de seda brilhante, e nem sequer se parecia com as vestes
tradicionais; e, talvez mais que tudo, pelo sorriso.
Um sorriso indefinível, ao
mesmo tempo cordial, aberto — e enigmático. Triste, também. E ainda, por
estranho que seja o paradoxo, reconfortante.
Com este sorriso o homem
olhou-me e disse, em voz baixa:
— Não quer comprar nada...
A entoação não era
exactamente interrogativa, mas claro que a tomei como tal, pelo que respondi:
— Não sei. Entrei só para
ver... — e enquanto dizia isto, resignei-me a comprar, pelo menos, um
porta-pivetes de lata, igual a outros que vira em lojas do mesmo género e que
sabia serem baratos, mesmo sem regatear. Ele, porém, não me deixou sequer
encetar a aquisição.
— O senhor não me
compreendeu. Eu disse: «não quer comprar nada». Não era uma pergunta, era uma
afirmação. De facto, não quer comprar nada. Não entrou aqui para comprar.
Fitei-o, sem resposta.
Então, o homem sorriu novamente.
Eu estava embaraçado,
aborrecido e, admito, alarmado. Não que me sentisse ameaçado por um perigo
físico, mas havia qualquer coisa estranha no ar. Para sacudir a perturbação,
ensaiei uma banalidade muito a propósito:
— Fala muitíssimo bem
português, não tem sequer um vestígio de sotaque. Onde aprendeu?
Foi a sua resposta que veio
mostrar-me, enfim, como era certo haver qualquer coisa no ar, além do perfume
de incenso:
— Mas, meu caro senhor... eu
estou a falar-lhe em cantonense.
Abri a boca para dizer «que
disparate» e também para rir, porque não entendo uma só palavra de cantonense —
nem de mandarim, aliás.
Voltei a fechar a boca sem
ter falado e sem vontade de rir. Porque compreendi, de repente, que ele tinha
razão. Falava em cantonense; com um pequeno esforço de concentração, eu
conseguia, até, ouvir os sons que para mim eram ininteligíveis. Ao mesmo tempo,
o seu discurso soava dentro do meu cérebro, em português. Ou talvez, em vez de
palavras, fossem imagens que traduziam o que ele me dizia.
Agora, o que quer que
estivesse a acontecer era claramente assustador, mas ele não me deu tempo para
sentir medo.
— Venha! — disse. — Já
estamos atrasados.
Disse-o como se aquilo fosse
a coisa mais natural, como se houvéssemos combinado aquele encontro. Afastou um
cortinado que tapava a parede do fundo e fez-me um sinal para que o seguisse.
A escada, estreita e com
degraus incómodos, de tão altos, parecia descer até ao centro do planeta. É um
exagero, evidentemente, porém foi esse o meu pensamento. Descemos sem parar
durante uns bons dois minutos, alumiados somente por poucas velas esparsas,
fixas em pequenas reentrâncias da parede. Em baixo havia uma porta, que o meu
guia abriu — e logo o perfume de incenso se tornou mais forte.
Antes de entrar, o chinês
virou-se para mim:
— Não pense que a sua
presença aqui é uma coisa vulgar...
— Seria a última coisa que
eu pensaria — ripostei. — Não sei sequer o que estou aqui a fazer nem que lugar
é este.
Ele encolheu os ombros, como
se isso não tivesse importância. Transpôs a porta. Fui-lhe no encalço e
encontrei-me numa sala que devia ser grande mas cujas dimensões não podia
calcular. As velas, às centenas, não chegavam para rasgar a penumbra. A
princípio, julguei que não havia mais ninguém, porque as pessoas se confundiam
com as imagens — o Buda sentado na posição do lótus, Kun Iam, a deusa da
misericórdia, A-Mah, a concubina celeste, protectora dos pescadores, Hông-kòng
Sân, o protector dos patos, Na Cha, o pequenino deus traquinas. E também,
surpreendentemente, Nossa Senhora, Santo António, São João e São Francisco
Xavier.
Diante de cada imagem ardiam
velas e pivetes de incenso, diante de cada imagem oravam pessoas que, afinal,
não se mantinham completamente imóveis, pois algumas faziam a tripla vénia
tradicional — tanto perante as divindades budistas como diante dos santos
cristãos.
A voz do meu guia e
anfitrião soou muito perto de mim:
— Infelizmente, há poucos
portugueses, além do senhor. Quase todos aqueles que podiam estar aqui já
partiram. E a sua presença é um caso excepcional, meu caro amigo. Só se deve a
um facto que talvez seja obra de puro acaso: durante o dia de hoje, o senhor
visitou Nossa Senhora na igreja de São Domingos, A-Mah no templo da Barra, a
capela de São Francisco Xavier em Coloane e foi ainda ao Kun Iam Tong. Tinha
algum propósito ou andava a fazer turismo?
Respondi-lhe, num resmungo,
que já visitara Macau várias vezes e já fizera todo o turismo que havia para
fazer.
— Foi o que eu pensei —
replicou o velho — e aí tem a razão por que está aqui, apesar de nunca ter
vivido nesta terra. Agora venha: a hora chegou.
— Que hora?
Ele envolveu-me num olhar
longo e triste.
— A hora da transferência. A
verdadeira, não aquela que preparam lá em cima, à superfície.
Pela segunda vez, não tive
palavras com que dar uma resposta — o que, em mim, é raro.
— Venha! — insistiu ele.
Conduziu-me até ao centro da
sala. Surpreendentemente, os outros não pareceram dar pela sua presença,
continuaram a orar e a acender molhos de pivetes de incenso e a curvar-se
perante as imagens.
O velho abriu os braços. Eu
esperava ouvir uma longa invocação e assistir a um complicado ritual, mas
enganei-me. O que ouvi da sua boca foi isto:
Nós
somos aqueles que se deram a esta terra. Que nunca a roubaram nem a
violentaram.
Que
não deram o seu corpo ao jogo nem a sua alma ao lucro.
Que
deixaram em paz a árvore das patacas sem a regar de mentiras e embustes e
traições.
Nós
somos o calor, o perfume e o coração da terra.
Somos
Macau e Ou-Mun.
Nós
somos o fumo do incenso e o cantar das aves. O tufão e a brisa. A chuva e o
Sol.
Somos
isso e nada mais.
Calou-se. O eco da sua voz
flutuou por instantes, em torno das cabeças dos santos e das divindades, e
depois extinguiu-se.
Mal ele se extinguiu, toda a
sala ressoou, tremeu ao som cavo de um gong. E eu ressoei e tremi com a sala,
ao mesmo tempo que as imagens, todas as imagens se fendiam de alto a baixo num
estertor de ruídos secos e mortais.
Entontecido, atordoado,
olhei em volta e vi-me só.
Ah, sim, os devotos ainda lá
estavam, porém tinham substituído as imagens quebradas: haviam-se transformado
em estátuas de terracota, como os soldados que guardam desde há séculos o
túmulo de um imperador chinês. Em minha frente, o velho da túnica, o que me
trouxera, mantinha-se imóvel, de braços abertos. Fui vê-lo de perto. Os traços
do seu rosto de terracota conservavam o mesmo sorriso reconfortante e triste.
Só, terrivelmente só, subi a
escada interminável.
Interminável é o termo
exacto: não cheguei a atingir o topo. Encontrei-me de repente à entrada do Beco
da Carpideira, envolvido pelo ar morno da tarde e pela luz dourada do crepúsculo.
Cinco minutos depois, no
Largo do Senado, ao cumprimentar um amigo com quem me cruzei, ainda tremia. Ele
percebeu e perguntou-me:
— Não te sentes bem?
— Um toque de gripe —
respondi.
João Aguiar