segunda-feira, 30 de abril de 2012

PEQUENOS TEXTOS - Pranchas IV


"As Pombinhas da Catrina"
O traçado desta prancha toma como ponto de partida uma intervenção que o nosso I\ A. B. fez durante uma visita à Loja Europa. Os II\ que a ela assistiram hão-de recordar que se tratava de propor uma descodificação simbólica da canção popular «As Pombinhas da Catrina». Essa comunicação, aliás brilhante, terá deixado em alguns de nós certas dúvidas, como se deduziu do cordial debate que seguiu a sua apresentação; dúvidas relativas, sobretudo, à realidade de uma intenção codificadora por parte do desconhecido autor do poema. Por outras palavras: não será mais simples e mais realista tomá-la pelo seu valor facial, de inocente canção popular e infantil?
Porque eu próprio partilhei dessas dúvidas, não encetaria uma nova abordagem do assunto, não fora o facto (algo estranho, admito) de ele me ter assediado o espírito nos últimos tempos, com uma insistência quase obsessiva. A decisão de compor a presente prancha veio, em parte, desse assédio, porque já aprendi a não desprezar sistematicamente tais «obsessões». Isto porque sucede, não raramente, que elas se me revelam como o impulso inicial de um processo criativo. Que eu haja cedido a tal impulso, dando à cedência a forma de uma prancha, só prova a confiança humilde que tenho na grande paciência e na solidariedade dos II\ da minha Loja e desde já lhes peço perdão, começando, evidentemente, pelo nosso V\M\.
Temos, assim, uma leitura de «As Pombinhas da Catrina» em que retive alguns elementos da comunicação do nosso I\ Araújo de Brito, construindo, porém, uma codificação algo diferente — não contraditória, mas simplesmente alternativa.
Consideremos a 1ª quadra: As pombinhas da Catrina / Andaram de mão em mão / Foram ter à Quinta Nova / Ao pombal de S. João. Conhecemos, evidentemente, a riquíssima simbologia da pomba, que assume vários aspectos. Na leitura que sugiro, a lógica exige que retenhamos, desses aspectos, a pureza e, ao mesmo tempo, a associação à memória e à alma. Quanto à «Catrina», representa a grande referência: não uma roldana, como na interpretação do nosso I\ Araújo de Brito, mas a contracção do nome Catarina, que, aliás, significa «pura» (tal como os Cátaros eram «os puros»); e, nesta minha leitura, tratar-se-ia de Santa Catarina de Siena (1347 — 1380), doutora da Igreja e co-padroeira da Europa. Não me alongarei sobre a sua história, mesmo porque ela é indiscernível da lenda; refiro somente alguns dos aspectos mais importantes: teve uma influência quiçá decisiva no restabelecimento da sede pontifícia em Itália, pois convenceu o Papa Gregório XI a transferir-se de Avignon para Roma, e interveio activamente a favor de Urbano VI quando se declarou o Grande Cisma do Ocidente. Porém, o que mais nos interessa é que Catarina de Siena criticou muito severamente o luxo e a corrupção que grassavam na corte pontifícia e que multiplicou os incitamentos a uma Cruzada destinada a recuperar os Lugares Santos. Por outro lado, os seus grandes inspiradores espirituais eram S. Tomás de Aquino — e S. João Evangelista: teríamos aqui o «pombal de S. João» de que fala a cantiga. Poderemos, então, estabelecer um primeiro esboço de mensagem decifrada: A alma — no sentido de: o pensamento, o sentir, as ideias — de Santa Catarina espalhou-se por muitos, que se tornaram seus discípulos, e acabou por atingir a Quinta Nova (de que falaremos a seguir). Nessa Quinta Nova está o pombal de S. João, isto é, a tradição ligada a S. João Evangelista — o qual não nos é estranho, a nós, maçons. Recordo que aquelas ideias, aquele sentir, se relacionam com a Cruzada, que a santa defendia (e as Cruzadas evocam, naturalmente, os Templários) e também com uma atitude crítica perante a situação da Igreja como instituição, que necessitava, ao tempo de Catarina de Siena, de uma reforma que urgia (e que tardou).
A 2ª quadra: Ao pombal de S. João / À Quinta da Roseirinha / Minha mãe mandou-me à fonte / E eu parti a cantarinha. A Quinta Nova é também chamada Quinta da Roseirinha. Não vou evocar uma associação com a Rosa-Cruz; basta recordar o fortíssimo simbolismo da rosa — o conhecimento espiritual, o receptáculo do sangue de Cristo, a regeneração, etc. A fonte representa, entre outros elementos, a água viva que jorra perto da Árvore da Vida e também o ensinamento. A Mãe será, neste contexto, a Igreja: «Mãe e mestra dos povos», assim começava uma das encíclicas de João XXIII. A associação da Igreja à Mãe está por de mais generalizada para que seja preciso determo-nos sobre este ponto. Quanto à «cantarinha», a minha proposta é que seja considerada como sinónimo de «pote» — e o Pote é reconhecido como o símbolo da estupidez e da surdez. Mas temos, agora, de voltar à Quinta Nova, da Roseirinha: ela é um espaço novo, mas um espaço espiritual, contendo «o pombal» de S. João Evangelista; igualmente, o vocábulo «quinta» está, obviamente, ligado ao número 5 — e este simboliza o centro (harmonia e equilíbrio) e o homem. Temos, agora, a sequência da descodificação proposta. Antes de mais, a «mensagem» de Santa Catarina, que dizia: «Cruzada» (ou, em sentido figurado, «fé militante») e que dizia: «reforma da Igreja», saneamento da alta hierarquia da Igreja. Essa mensagem foi formulada no século XIV, um século de maçonaria operativa e o século em que, em Portugal, durante a revolução de 1383, foi reconhecida a importância dos mesteirais e das suas corporações; difundindo-se «de mão em mão», ela chegou a um novo espaço espiritual, a um novo homem: justamente (talvez...), o espaço da corporação, o espaço do mesteiral que acabava de ver a bandeira do seu ofício admitida a participar no governo da cidade de Lisboa (e de outras cidades, mais tarde), por intermédio da Casa dos 24. E aquele homem «novo», que tomou consciência da sua importância, pelo menos enquanto membro da sua corporação de ofício, ou seja, a «Quinta Nova» (a sua «loja»...), aquele homem «novo», dizia, cumprindo as ordens da Santa Madre Igreja, procurou conhecer a palavra de Deus, isto é, foi até à fonte. Mas, porque tivera em suas mãos as «pombinhas da Catrina», porque entrara no pombal de S. João, foi longe de mais, foi mais longe do que a Mãe Igreja queria: quebrou o pote. Ou seja, foi capaz de estabelecer uma relação pessoal com a Divindade, eliminou a «surdez» que o impedia de ouvir a Palavra.
Note-se, agora, que a associação do pombal (isto é, da Pomba) a S. João traz, talvez, muito a propósito, alguma água no bico. Catarina de Siena tomou como figura inspiradora S. João Evangelista; no entanto, a Pomba pode ser associada a S. João Baptista, no episódio do baptismo de Cristo, feito sob a manifestação do Espírito Santo — em forma de pomba. Temos, assim, a associação Baptista — Evangelista. O que também não nos é estranho.
Prosseguindo com a proposta de descodificação: este quebrar da «surdez», ou da «estupidez», anuncia-se como um acto criativo, um acto de amor; é o que sugere a 3ª quadra: Minha mãe mandou-me à fonte / Pela hora do calor / Eu quebrei a cantarinha / A dar água ao meu amor. A hora do calor: segundo o «Dicionário de Símbolos» de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (que me serviu também para encontrar a explicação dos outros símbolos), «o calor associa-se à luz, tal como o amor ao conhecimento intuitivo e a vida orgânica à actividade do espírito». Este «calor» abraça homens e mulheres e é um passo decisivo, do qual não há retrocesso. É o que afirma a 4ª quadra, propositadamente  equívoca (julgo eu) no que toca ao género de quem a canta: A dar água ao meu amor / A dar água à minha amada / Eu quebrei a cantarinha / Eu quebrei-a, está quebrada.
Finalmente, a 5ª quadra, da qual conheço duas versões. Dessas, só uma, a que foi apresentada pelo I\ Araújo de Brito, pode ser considerada em termos de mensagem a descodificar: Ó minha mãe não me bata / Que ainda sou pequenina! / Não te bato, porque viste / As pombinhas da Catrina. Ou seja: esta ousadia de querer reformar a Igreja e de tentar chegar à fonte, ao conhecimento espiritual, individualmente, pela «quebra do Pote», não é vista pelo autor como rebelião: ele teme, aliás, o castigo e faz declaração de humildade: «Ó minha mãe não me bata, que ainda sou pequenina». E, idealmente, a Igreja-Mãe responde-lhe que está absolvido porque seguiu, afinal, a doutrina de Santa Catarina de Siena...
Se fosse mais ou menos exacta, esta leitura colocaria, possivelmente, o autor em época posterior ao século XIV, já que temos, como referência temporal, o ano de 1380 (morte de Santa Catarina); assim, não deveríamos considerar épocas anteriores a, pelo menos, o início do século XV. No que se refere à qualidade do autor, que é desconhecido, poderíamos considerar duas hipóteses: se aceitássemos a teoria de uma continuidade entre templários e maçonaria (operativa, sim, mas já também com uma vertente especulativa), não seria difícil aceitar igualmente que se tratasse de alguém ligado à Ordem de Cristo. A outra hipótese seria, como atrás sugeri, um homem ligado a uma corporação de ofício. Em qualquer dos casos a cantiga seria, ou poderia ser, uma espécie de profissão de fé e, simultaneamente, um sinal de reconhecimento. No caso de ter sido composta mais tarde, em meados ou finais do século XVI (ou mesmo até ao século XVIII), as duas hipóteses poderiam ser mantidas e seriam, até reforçadas: a Casa dos 24 existia, a Ordem de Cristo também — e ou já lhe tinha sido imposta a clausura ou isso estava prestes a acontecer. Também existiria já, a partir de certo momento, o tribunal da Inquisição; e se é certo que este não se mostrou muito severo durante o reinado de D. João III, não é menos certo que, já então, era da mais elementar prudência guardar segredo sobre especulações demasiado livres e escondê-las sob uma cifra simbólica.
Em jeito de remate a esta prancha, devo colocar agora duas questões, a primeira das quais é a seguinte: acreditarei eu, eu mesmo, autor do presente texto, acreditarei eu na realidade concreta desta ou de outras leituras feitas sobre «As Pombinhas da Catrina»? A resposta é: racionalmente — não. Parece-me provável que se trate de uma simples canção infantil e popular.
Logicamente, a segunda questão será: por que razão, ou razões, me dei então ao trabalho de traçar esta prancha?
Em primeiro lugar, porque, como referi no início, a ideia, pura e simplesmente — não me largava. E era reforçada, contra a minha própria vontade, ao ver como os vários elementos (pombas, Santa Catarina de Siena, reforma da Igreja, S. João,  etc.) se encaixavam uns nos outros, levando-me irresistivelmente à pergunta, algo irritante: «É incrível; mas se fosse verdade?».
Em segundo lugar, porque, ainda que este particular exercício não passe de uma construção feita no ar, ou melhor, na imaginação pura, ele não é, julgo eu, inteiramente gratuito, na medida em que me pode servir de treino para tentar descodificar outros textos mais dignos de tal esforço.
Portanto, o meu único atrevimento, de que, repito, peço perdão, foi o de querer compartilhá-lo convosco.
Disse, V\M\

Mosteiro da Batalha

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