domingo, 1 de abril de 2012

PEQUENOS TEXTOS - PRANCHAS III


«INICIAÇÃO»
Esta é a primeira prancha que apresento na qualidade de Mestre Maçon. Tal facto, evidentemente, só para mim próprio assume um significado especial; e se o menciono é por pensar que ele justifica, de certo modo, o tema que escolhi: a Iniciação. Claro que não caberia, na reduzida superfície de uma prancha, tratá-lo em profundidade; lembrei-me, somente, de elaborar sobre ele um simples comentário.
Isto porque a Iniciação foi a razão essencial que me fez aceitar o convite, honroso (e não o digo por mera questão de etiqueta), para ser admitido na Ordem Maçónica. Por outro lado, julgo não ser completamente redundante esta abordagem, porque a palavra «iniciação» é um contentor de vários conteúdos, muito diversos — e não estou sequer a referir-me aos significados profanos de «primeira aprendizagem» ou de «primeira experiência»; mesmo no que toca a Iniciação propriamente dita, os conteúdos divergem, apesar de todos eles possuírem algumas características comuns, ou seja: o facto de através dela se processar a admissão de certos indivíduos a um grupo restrito, solidário e com objectivos partilhados por todos, e o facto de essa admissão se realizar por meio de um ritual secreto, que, em muitos casos senão mesmo em todos, apresenta semelhanças ou paralelismos. Como referi, estes são, sem dúvida, traços comuns a todas a iniciações; mas são os únicos. A existência desses traços comuns é um fenómeno extremamente interessante; em contrapartida, penso que é enganador levar mais longe a generalização, porque esta seria perigosa. De facto, as iniciações não são todas iguais — não são vias diferentes para chegar ao mesmo objectivo; isto pode apenas ser dito daquelas que se mantêm fundamentalmente ligadas à Tradição, e suspeito que sejam, comparativamente, bem poucas.
Em primeiro lugar, consideremos que, como acto em si mesmo, a Iniciação não é necessariamente boa ou positiva. A sua bondade depende dos objectivos, das motivações e, retroactivamente, das actuações para as quais ela foi ponto de partida.
Temos, assim, as iniciações nas sociedades que se dedicam ao crime organizado; ou as iniciações mais abertas, perfeitamente inocentes mas inconsequentes, como são as praxes que introduzem o estudante na vida académica; ou ainda — e fixemos este caso, de que voltarei a falar — algumas (apenas algumas) das iniciações encontradas nas sociedades ditas primitivas e que, sob uma capa religiosa e mística, se destinam a assegurar ao grupo de iniciados o exercício do poder em proveito próprio.
Nada disto se refere, obviamente, à Iniciação como eu a entendo, aquela que me levou a aderir à Maçonaria. Parece-me evidente que o que torna válida e positiva qualquer Iniciação é o seu objectivo. E esse é essencialmente o mesmo em todas as grandes tradições e em qualquer parte do mundo: o princípio de uma jornada de conhecimento e de descobrimentos que conduz à transcendência, que transforma o iniciado, levando-o a superar a sua simples condição humana, mediante um esforço que é simultaneamente pessoal e colectivo, ou seja, que é feito no seu íntimo mas também em fraternidade. O que corresponde, julgo, à concepção maçónica da Iniciação, tanto mais que a Maçonaria se reclama do legado das grandes tradições espirituais.
Sem esse objectivo, sem esse propósito sempre presente — que é, repito, o das iniciações tradicionais — a iniciação perverte-se. O grupo de iniciados transforma-se, quase inevitavelmente, em camarilha, em grupo de pressão que defende meramente os interesses pessoais e bem terrenos dos seus membros. E volto ao caso que atrás referi, de certas sociedades «primitivas» e que tem como exemplo eloquente a sociedade secreta Duk-duk, no Arquipélago Bismark (Melanésia). Não sei, confesso, se, neste momento, ela ainda existe, mas existia em meados do século XX.
Curiosamente, na sua forma exterior, a iniciação dos Duk-duk é tributária da tradição, pois o ritual, que é complicado e doloroso, inclui a encenação da morte e da ressurreição do iniciado. No entanto, a razão que leva os jovens indígenas a ansiar pela sua admissão nesta sociedade iniciática reside nas apreciáveis vantagens materiais de que os membros do grupo gozam ao longo de toda a sua vida: nomeadamente, apropriam-se do melhor e maior quinhão dos recursos da comunidade. De onde poderemos concluir que, afinal, os Duk-duk, por muito primitivos que sejam, não estão, na sua essência, muito longe de certas formas de associação existentes na nossa tão avançada sociedade. Será interessante acrescentar que um investigador, Herbert Tischner, pôs como hipótese que esta característica é o resultado de um processo degenerativo, isto é: que, no passado, a Sociedade Duk-duk tinha um objectivo fundamentalmente espiritual e exercia uma função religiosa e jurídica. Posteriormente, os interesses materiais dos iniciados ter-se-ão sobreposto aos espirituais; o ritual manteve-se, porém transformado numa simples representação — em certos aspectos cómica e noutros trágica.
Uma vez mais, estamos em terreno que nos é familiar, porque casos semelhantes existem no Ocidente: basta evocar a decadência que algumas ordens religiosas sofreram, ou recordar a frase atribuída a Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga, que a teria pronunciado no concílio de Trento (de 1545 a 1562): «Os ilustríssimos cardeais precisam de uma ilustríssima reforma.»
De resto, e abordando agora matéria que nos está ainda mais próxima, recordo que alguns autores maçons — como Foster Bailey e Wilmshurst — alertam para os riscos de perversão (ou degenerescência, como se preferir) que ameaçam as próprias lojas da Maçonaria regular. Bem vistas as coisas, esses riscos são, no fundo, os mesmos que terão levado à decadência da Sociedade Duk-duk. E são, também, de outra ordem, menos dramática mas igualmente perturbadora: refiro-me à eventual transformação da vida da loja numa tertúlia de rotina, um simples convívio. Convívio certamente agradável e não inteiramente estéril, na medida em que promove e aprofunda a amizade entre irmãos, o que é já um mérito considerável. Porém, se tudo se reduzisse a ele, nós seríamos irmãos — em quê? Na amizade, sim; mas em nada que necessitasse de segredo e de rituais.

Poder-se-á objectar dizendo que a Maçonaria se propõe outros objectivos e tem outros interesses válidos, a par daqueles que são inerentes à Iniciação.
Por mim, discordo. Fraternalmente, mas discordo. Porque esses objectivos e interesses não são outros, antes estão contidos nela e dela decorrem. O processo de aperfeiçoamento individual, a busca da transcendência, o esforço de superação levam-nos, naturalmente, a querer intervir de forma positiva na sociedade, não pelo domínio, mas pelo exemplo e por iniciativas diversas; levam-nos, naturalmente, à solidariedade social, pois não é concebível um aperfeiçoamento individual ou colectivo baseado no egoísmo. E, também naturalmente, criam em nós a necessidade e o gosto de uma estreita convivência, que, aliás, dará maior eficácia e maior alcance ao nosso trabalho iniciático.
Portanto, esses objectivos e esses interesses não são paralelos à Iniciação maçónica, mas antes uma sua consequência. Porque o mundo em que o iniciado renasce, após a sua morte simbólica, é um mundo fraterno e nesta noção estão implícitas a solidariedade, a justiça, tudo aquilo, enfim, que, como maçons, devemos defender.
Não pretendo, de modo algum, arrogar-me um conhecimento que deverá estar contido em alguns dos altos graus; assim, limito-me a formular, com a devida humildade, uma hipótese meramente intuitiva: a de que na Maçonaria se fala muito em fraternidade, e não apenas no âmbito restrito da Ordem mas também num contexto universal, porque a gnose maçónica terá intuído ou descoberto a qualidade holística do universo.
De resto, julgo que a própria Física moderna, e nomeadamente a física quântica, nos fala de uma unidade fundamental. O que pressupõe — não em termos científicos, mas numa perspectiva humanista — uma fraternidade fundamental, aliás pregada há muitos séculos por S. Francisco de Assis, que nada sabia de física e chegou a essa noção por via mística. A este propósito, não deixa de ser interessante recordar que já estão publicadas obras de autores da área científica explorando o paralelismo existente entre a física quântica e as doutrinas místicas.
Falei atrás da «gnose maçónica». Com efeito, julgo não ser errado afirmar que a Maçonaria é, acima e antes de tudo, uma gnose — e se o não fosse, mal se compreenderia, ou mal se aceitaria, a insistência no segredo. Podemos dizer, grosso modo, que a gnose é «a salvação pelo conhecimento de Deus», com tudo quanto esse conhecimento implica. Se o termo «salvação» nos parecer inadequado, não haverá mal em substitui-lo; o sentido profundo não será substancialmente alterado.
Uma última reflexão, tão pessoal e subjectiva como as anteriores: creio que a Iniciação à gnose maçónica representa, da parte do iniciado, vários compromissos, entre os quais se conta o de não adormecer — ou de não o fazer muitas vezes, nem muito profundamente. Isto é, não fazer do ritual uma rotina. E conta-se igualmente o compromisso, senão perante os outros pelo menos perante si próprio, de procurar o conhecimento, mantendo o esforço começado no momento da Iniciação. Foi ao reflectir nestes compromissos que me pareceu entender não ser um mero chavão a frase que já li e ouvi a alguns Mestres: que, seja qual for o grau a que os nossos irmãos queiram elevar-nos, seremos sempre, essencialmente, Aprendizes.
João Aguiar M\M\
Composição em photoshop a partir de um desenho original 

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