sábado, 17 de março de 2012

PEQUENOS TEXTOS - PRANCHAS

«...um povo ignorante 
será sempre escravo».
Em 1836, se não me engano, Joseph-Marie Ragon publicou um Ritual do Aprendiz Maçon que ele propunha às lojas, quer do Rito Francês quer do Rito Escocês Antigo e Aceite, como complemento e aperfeiçoamento do ritual de iniciação então adoptado para aquele grau.
Julgo que esse texto, na íntegra, já não se adequa aos tempos modernos, por ser demasiado extenso e, passe o termo, verboso. Ao mesmo tempo, não me parece que se tenha desactualizado no seu conteúdo essencial. Na realidade, encontrei nele alguns elementos extremamente interessantes que não constam no texto actual do R\E\A\A\.
Estranhamente, uma das passagens que retive foi esta:
«Mesmo com a mais liberal das constituições, um povo ignorante será sempre escravo».
A frase, nesta proposta de Ragon, é dita pelo V\M\ ao Aprendiz, durante a sessão de instrução (o equivalente, julgo, ao actual catecismo, termo que aquele autor não emprega). Hoje, podemos tomá-la por lugar comum, mero efeito de retórica. Daí ser estranho que a retivesse. Mas há duas explicações para o facto, uma simples e objectiva, a outra complexa, subjectiva e, quase diria, subterrânea.
A explicação simples e objectiva salta aos olhos: aquela frase, publicada em 1836, não se limita a enunciar um princípio intemporalmente válido; descreve também a situação contemporânea, a nossa; com tanta acuidade como o fez em relação aos povos do século XIX. Porque se é certo que o povo do século XXI sabe ler, escrever e contar, tem televisão, computador e internet, escolaridade prolongada e largamente obrigatória e até mesmo diplomas de bacharelato e licenciatura, isso não o torna menos ignorante, como se prova, no caso português (que não é único), pelo uso que faz da sua própria língua e pelo desuso que faz da sua própria história, que é, em boa parte, a sua identidade.
E, também, isso não o torna menos sujeito à servidão. Desta, apenas se modificaram as formas e os instrumentos, que agora se chamam globalização, na economia, cretinização, na cultura (para usar um termo, extremamente adequado, de Gilbert Durand), e apatização, na política e na vivência social. E se podemos dizer que hoje se vive materialmente melhor, essa afirmação só é correcta em termos geograficamente restritos; a nível planetário, não ficaria surpreendido se me dissessem que ela é comprovadamente falsa.
Esta a explicação objectiva para o efeito que teve em mim aquela frase que Ragon põe na boca do V\M\. Resta a explicação subjectiva, que «quase» classifiquei de subterrânea.
Recordo a frase que citei: «mesmo com a mais liberal das constituições, um povo ignorante será sempre escravo». Considerando o termo «povo» no seu significado — que, evidentemente, não é exaustivo — de «massa popular», tal frase veio dar mais força ainda a uma pergunta que me tenho feito ultimamente: como poderei, ou melhor: como poderemos, aqueles que sentem o mesmo perigo e arrefecem com a mesma angústia, como poderemos opor-nos à nova e decorrente ofensiva de magia negra?
Antes de me classificarem definitivamente como louco, permitam-me a explicação.
Eu penso que o século XX se revelou, agora que o olhamos já a uma crescente distância, como sendo um século de magia negra.
Isto só é defensável, evidentemente, se aceitarmos que ao termo «magia» pode ser atribuída esta definição, que, sem ser única, me parece justa: «toda a acção ou prática (conjunto coerente de acções) que recorre a meios não exclusivamente materiais, nem exclusivamente racionais, para obter determinados fins». E se assentarmos igualmente em que a magia será «negra» quando aqueles meios não são eticamente legítimos e quando os fins são também ilegítimos e ditados por ilegítimos interesses. Os pressupostos contrários referem-se, como é óbvio, à magia «branca».
A esta noção poderemos acrescentar uma outra: que a magia negra é um desvio, uma perversão, uma inversão da magia branca — como sabemos, aliás, por certas práticas bem conhecidas: a recitação de orações do fim para o princípio, o uso de símbolos invertidos, etc. E ainda: que a magia negra, pecado em que caem não só os mal intencionados mas também os aprendizes de feiticeiro simplesmente mal preparados, desencadeia, ou pode desencadear, forças insuspeitas e consequências imprevistas que, não raro, acabam por ceifar os próprios magos ou aprendizes.
Voltando ao século XX: um século de «magia negra», nos termos que propus, e em que o principal ingrediente — e também a principal vítima — foi precisamente a massa popular.
E porquê esta afirmação? Porque dificilmente vejo outra explicação global para o nazismo, o estalinismo e o maoísmo — sim; incluo o maoísmo, apesar de um relativo prestígio de que Mao Tsé Tung ainda goza, porque tenho em mente os factos do «tempo das flores» («cem» ou «mil flores», não tenho presente a designação exacta) e do «grande salto para a frente», da campanha da siderurgia e da campanha dos pássaros, além da Revolução Cultural.
Note-se que, respeitando disciplinadamente a nossa muito sensata interdição de discutir política ou religião, isto é, partidos ou igrejas, não me refiro — excepção feita ao nazismo, uma excepção que julgo legítima — a ideologias, mas à prática que essas ideologias assumiram pela mão de indivíduos. Tal atitude (referência a indivíduos e não a ideologias) é também coerente com a referência à magia negra, pois que o processo a esta conducente manifesta-se à escala individual ou, quando muito, de grupos reduzidos. Acrescento que ele pode iniciar-se, por vezes, com excelentes intenções e ser depois desviado e pervertido pela prática.
Dito isto, creio não haver dúvidas de que nos encontramos aqui perante outros tantos casos de manipulação das massas, manipulação recorrendo a meios e suportes não racionais e, no seu essencial, não materiais nem científicos, com resultados finais trágicos. Manipulação que adquire tintas tão fortes de magia negra quanto é certo que se chegou à inversão e perversão de símbolos e conceitos. Símbolos como a cruz suástica, milenar e sagrada (e, o que é menos grave mas igualmente significativo, o mesmo se passou com o feixe de varas romano), e conceitos como o de Revolução Cultural, que serviu, pura e simplesmente, para erradicar pela violência a cultura e a tradição chinesas. E se, por um momento, não nos restringirmos à vertente da manipulação de massas, pensemos na utilização concreta que foi dada à fissão do átomo, sobretudo na guerra mas também na paz; e encontraremos aqui o mesmo desvio, a mesma perversão, a mesma... «sintonia» que caracterizam a magia negra.
Até aqui, falei do século XX. Mas o tempo actual não é menos eloquente no que se refere à manipulação e à tirania que, simultaneamente, usa, explora e impõe as massas, depois de convenientemente condicionadas e castradas das suas tradições, das suas identidades, das suas potencialidades.
Basta olhar à nossa volta; basta, sobretudo, ver cinco fugazes minutos de programação televisiva ou ouvir falar algumas figuras públicas ou considerar o rumo da educação. Basta ver como a imprensa (latu sensu), cuja acção e liberdade sempre considerámos como uma condição sine qua non da democracia, se degradou ao ponto de transformar a informação em espectáculo, o jornal em produto e a ética numa anedota de mau gosto, pois que se vende e é comprada a cada passo, não tanto por interesses políticos, mas por interesses comerciais.
A linha de rumo da sociedade contemporânea — a ocidental em primeiro lugar, as restantes por arrasto — é facilmente definível, perdoe-se-me a insistência, de acordo com as programações televisivas. Já tivemos a música tão adequadamente chamada pimba, que se impôs (falsamente, aliás) como música popular, já conhecemos o Big Brother e o Bar da TV e temos agora, ainda, o concurso em que o herói é aquele que é capaz de assaltar um cofre forte. Prelúdio, suspeito, ao concurso de homicídio voluntário e premeditado — e resta saber se simplesmente simulado.
O argumento supremo em defesa de tudo isto é: porque as pessoas gostam.
E gostam.
Que admiração, pois que se joga aqui com a imoderação dos instintos, com a vulnerabilidade, com a facilidade, que vai desde o pensamento e as emoções ao endividamento e à abertura das latas de refrigerantes?
Julgo não exagerar nem a magnitude nem o perigo de uma situação que, penso, é uma consequência directa de actos de verdadeira magia negra — não já exclusivamente, repito, com o objectivo do poder político, como no tempo dos totalitarismos desencapotados, mas também e sobretudo do poder económico, e que repousa, magicamente, numa perversão, numa simplificação artificial de conceitos como o «gosto popular» e a própria liberdade.
O objectivo essencial desta muito modesta prancha é lançar uma pergunta: como iniciar um processo susceptível de criar defesas? Ou seja: com que actos de «magia branca» poderemos nós, poderão todos aqueles que, mesmo não aceitando a minha interpretação «mágica», partilham desta angústia, opor-se a uma tal vaga selvagem que varre o planeta em geral e em particular a Europa e o nosso país?
Porque a esperança não está na política, não está nos governos, contaminados e cúmplices, nem, por maior razão, nos mecenas, pois estes integram-se geralmente na categoria dos «magos negros»: o seu mecenato é todo ele fiscal e publicitário. A única esperança de resposta está nos cidadãos ou grupos de cidadãos.
O que significa que a seta da responsabilidade moral de resposta se aproxima de nós, maçons. Não somos decerto o seu único alvo. Mas somos decerto um dos seus alvos.
Gostava, neste momento, de poder dizer: «aqui está a resposta».
Porém não a tenho e se a tivesse o teor desta prancha seria diferente. A única coisa que tenho para vos dar é esta preocupação, é esta angústia.
E diz o povo — uma vez mais o povo! — que «quem dá o que tem a mais não é obrigado».
João Aguiar C\M\

Berlengas - Foz do Arelho

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