segunda-feira, 5 de março de 2012

PEQUENOS TEXTOS - PRANCHAS

TRADIÇÃO E RENOVAÇÃO

JOÃO AGUIAR
J. Sousa -  acrílico sobre tela 
Respeitável Deputado Mestre, queridos Irmãos:
Hesitei longamente antes de traçar esta prancha. Por um lado, ela corresponde a uma preocupação, ou melhor, a um interesse real que sinto há muito; mas, por outro lado ela correrá, talvez, o risco de ser mal interpretada. Permitam-me, por isso, que esclareça, desde já, que a submeto com toda a humildade, sem a mínima intenção de criar polémica e ainda menos de me arrogar — o que seria, aliás, ridículo — qualquer papel de... «reformador». Este texto não é, de modo algum, uma proposta; ele não passa de uma modestíssima sugestão para reflexão. Nada mais é, nem quer ser.
   Estabelecido este ponto prévio, que, espero, se manterá presente no espírito de todos, direi, para começar, que aderi à Ordem Maçónica por considerar que ela é uma via de Iniciação. Uma via com características que, não lhe sendo exclusivas, são, no entanto, muito suas e muito especiais. Em primeiro lugar, esta via de Iniciação não é apenas individual, como sabemos. Uma boa parte do nosso trabalho é executada em comunidade — e mais do que em comunidade: as lojas, se operarem segundo os princípios da Ordem, criam uma egrégora própria, que deverá auxiliar todos e cada um no seu caminho. Em segundo lugar, a verdadeira Iniciação maçónica atinge-se através de um Rito, ou, na prática, do ritual estabelecido por um dos Ritos existentes.
   Era aqui que eu queria chegar. O Rito é preciso e é imutável, dizem-nos; e há uma lógica evidente neste princípio. Essa lógica exige, portanto, um respeito absoluto pela Tradição, porque o próprio Rito se transformou em Tradição. Isto é claro, límpido e conhecido. Mas, quando se fala em Tradição, afigura-se-me ser importante distinguir a essência (sempre imutável, repito) daqueles elementos que não representam mais do que noções e costumes que são fruto de uma determinada época histórica e da mentalidade nela predominante. Porque, quando aplicados a uma época diferente, tais noções e tais costumes podem prejudicar ou mesmo trair a essência imutável da Tradição.
   Esclareço, desde já, que não estou a referir-me à sempre tão falada questão da admissão de mulheres, vedada pela Maçonaria Regular, a que pertencemos; essa questão é mais complexa do que parece à primeira vista e não pode, julgo eu, ser reduzida a simples «machismo», como já fez notar o escritor e cineasta António de Macedo, que é nosso Irmão e cuja obra não revela, bem pelo contrário, o menor vestígio de machismo. Os Ritos da Ordem Maçónica pertencem a uma linha tradicional masculina, foram concebidos para actuar, digamos, magicamente (e não confundamos magia com feitiçaria) sobre comunidades masculinas. Na minha muito humilde opinião pessoal, seria precisa, sim, uma Ordem feminina, com um Rito adequado, para retomar uma Tradição iniciática feminina que se perdeu.
Pondo assim de lado esta questão, permito-me sugerir três aspectos que, sempre na minha opinião individual, mereceriam uma «atenção renovadora» por parte da Ordem Maçónica.
   O primeiro diz respeito, mais propriamente, às noções. E tomo como exemplo um texto[1] do R\E\A\A\, ao qual pertence a minha Loja de São João e no qual fui iniciado. Aí se diz que não devem ser admitidos à Iniciação homens que sofram de um defeito físico, ainda que essa anomalia seja acidental. E, baseando-se em René Guénon, o autor acrescenta, especificamente: zarolhos, coxos e gagos; «aqueles que apresentam uma dissimetria do rosto [ou] desvios vertebrais que prejudicam a circulação normal das correntes subtis no organismo».
   Como todos nós, respeito e admiro Guénon, mas não o considero infalível. Tenho as mais sérias dúvidas sobre a validade deste princípio; julgo que as correntes subtis encontram sempre uma via de circulação no organismo, desde que este organismo pertença a alguém de espírito lúcido que as deseje receber e fazer circular.
 É certo que tal princípio não é aplicado hoje — não o foi, felizmente, na minha Loja, onde, ainda recentemente, na presença do nosso Muito Respeitável Grão-Mestre, procedemos com alegria à iniciação de um candidato que se encontra nestas condições de «imperfeição», palavra que escrevo com aspas. Mas parece-me que seria aconselhável que a nossa Ordem reexaminasse a questão em termos teóricos e, em texto autorizado e regular, a tornasse perfeitamente clara, consagrando a prática actual pelo seu reconhecimento em teoria.
   O segundo caso, colhi-o no Ritual do Grau de Aprendiz do R\E\R\. É, evidentemente, um texto que merece, em qualquer caso, o nosso profundo respeito, pois foi redigido, como se sabe, no Convento Geral de 1782 e revisto, ou completado, por Willermoz em princípios do século XIX. Pergunto-me, no entanto, se não seria conveniente uma actualização — na forma, que não no conteúdo. Assim, por exemplo, especificar que são de ouro (de ouro e não dourados) os candelabros colocados no altar do V\M\ e nas mesas dos dois Vigilantes; ou que a Câmara de Preparação deve ter chaminé ou lareira por causa do frio no Inverno, parece-me inútil, ou porque largamente impraticável — o ouro dos candelabros — ou porque tecnicamente ultrapassado — o sistema de aquecimento. Acrescento, porém, que este segundo exemplo, colhido, como referi, no Ritual do 1º Grau do R\E\R\, vale meramente para demonstrar alguma desadequação existente entre os textos e a nossa época; não vejo que o texto em causa possa conter, em si mesmo, qualquer aspecto negativo para a essência da Tradição.
   O mesmo não poderei dizer em relação ao terceiro exemplo. E peço agora a compreensão do nosso Respeitável Deputado Mestre e de todos os Irmãos, insistindo em que esta prancha não tem a mínima intenção polémica e que é somente o produto de uma reflexão que tenho vindo a fazer e que senti dever confiar-vos — quanto mais não seja, para a ver fraternalmente rejeitada...
O terceiro exemplo é o ágape ritual.
   A importância do ágape maçónico, ritual ou informal, é evidente e não tem de ser explicada aqui. Direi, simplesmente, que, para mim, o ágape informal é a continuação da sessão de Loja e que o ágape ritual é uma sessão especial de Loja. Mas, justamente por reconhecer a sua importância, pergunto-me sobre a sabedoria de conservar integralmente as formas que assume o ágape ritual.
   Uma simples análise dos textos (digo «textos» porque, na minha ignorância, julgo haver variantes conforme o Rito) levar-nos-á, penso, a concluir que, tal como eles se nos apresentam, não provêm certamente da Maçonaria Operativa; que são, antes, originários do século XVIII e dos meios da Maçonaria militar. Mostra-o todo o vocabulário utilizado, que não provém certamente de pedreiros, mas de soldados — e não soldados egípcios, gregos, romanos ou da Europa medieval, mas sim de uma época em que a artilharia tinha já assumido papel de destaque na guerra.
   Há aqui, já, uma primeira incongruência, de fundo, em relação à Tradição maçónica essencial, que, tanto na prática como no símbolo, é a dos Construtores, não a dos Guerreiros. Bem sei que o Escocismo se desenvolveu sobretudo nos meios militares; resta, porém, que esse é um traço de época e não de essência, um acidente histórico e não uma parte integrante do nosso legado.
   Depois, há o aspecto da forma: no R\E\A\A\, o ritual do ágape prevê uma movimentação dos talheres — como se fossem armas brancas — e um uso dos guardanapos que seriam possivelmente adequados na sociedade maçónica-militar do século XVIII, mas que, nos nossos dias, e dado, até, o desenho dos actuais talheres de mesa, me parece — perdoem-me os Irmãos — ridícula, inclusive num meio militar contemporâneo.
   Também o preceito — que hoje, aliás, não é escrupulosamente seguido — de os Aprendizes servirem os Mestres pode prestar-se a situações, no mínimo, delicadas.
E, por fim, as saúdes obrigatórias. Não é, permitam-me a ousadia, questão de somenos. O número e o modo das saúdes não se coaduna nem com a nossa época nem, atrevo-me a dizê-lo, com o próprio espírito do ágape enquanto sessão de Loja: por um lado, convirá tomar em conta a actual legislação sobre bebidas alcoólicas e condução rodoviária (questão que só aparentemente é secundária); por outro, o número de saúdes, que influencia directamente a quantidade de álcool absorvida durante a refeição fraternal, afigura-se-me incompatível com o espírito, o ambiente, a intenção que, segundo os vários autores, devem presidir a sessões deste género. Meus Irmãos, tudo isto evoca uma época em que nem os transportes nem o trânsito — nem as leis! — eram o que hoje são; e em que os costumes eram outros — e, possivelmente, a capacidade normal de absorção de certos líquidos também era outra.
Recordemos, aliás, o que o cavaleiro Ramsay escreveu acerca dos ágapes[2], no seu famoso Discurso: «Os nossos repastos são à semelhança das virtuosas ceias de Horácio, durante as quais se falava de tudo o que pode esclarecer o espírito, aperfeiçoar o coração e inspirar o gosto do verdadeiro, do bom e do belo». São palavras de ouro, que deveríamos ter bem presentes quando nos sentamos à mesa entre Irmãos. Confesso não ser capaz de as ligar ao número de saúdes obrigatórias, nem ao manejo dos talheres e guardanapos, tal como consta nos rituais que se mantêm até hoje.
   Deveria a Ordem Maçónica repensar seriamente alguns dos seus textos, para os renovar, não — nunca — contra a Tradição, mas antes em seu apoio? Esta a questão que se me pôs e esta a preocupação que vos confesso.
E eis tudo aquilo que, — perdoem-me a insistência — sem qualquer intenção polémica, senti querer dizer-vos, em simples jeito de sugestão para reflexões.
Disse, Respeitável Deputado Mestre.
João Aguiar, M\E\S\A\

[1] La Franc-Maçonnerie de Tradition, de Jacques P. Robert
[2] Citado por Jean-Pierre Grassi no artigo O Ágape. V. revista O Aprendiz, GLRP/GLLP, Nº 5, Inverno de 5998


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