terça-feira, 27 de setembro de 2011

MANUSCRITOS


Persona - individualidade/personalidade... e eu, ego

Há tempo (2005), estava no átrio de um hotel no Rio de Janeiro e veio-me uma ideia tão forte que me senti impelido a ir até à recepção, para pedir uma folha de papel onde pudesse escrever e desenvolver essa ideia. Deveria ter, mais tarde, com a memória ainda fresca, passado a limpo esse texto – mas não o fiz. Agora, não me recordo bem do que tinha em mente quando escrevi: “Persona – individualidade/personalidade... e eu, ego: diferença?” Porque a verdade é que o ego me parece ser a parte que devemos dominar e, mais tarde, até, eliminar. Mas passo a transcrever o que escrevi no Rio (com algumas alterações e ajustes):
Aquilo que fica depois da dissolução da “personalidade” (persona”... máscara...): o que se dissolve seria o circunstancial – e, idealmente, seria a parte negativa, os aspectos negativos. O que “fica” irá construindo o verdadeiro ser: as qualidades positivas (vindas, possivelmente, de vidas/manifestações anteriores) e as qualidades que vamos desenvolvendo ao longo desta vida terrena: o “desbaste”, as correcções de trajectórias, comportamentos e sentimentos. E esses elementos irão construindo a verdadeira individualidade que seria a razão da manifestação divina através do Homem.
(Temos de admitir forçosamente que esta trajectória não é simplesmente linear, que pode haver recuos. O livre arbítrio há-de funcionar, pelo menos até certo ponto; e também as condições objectivas em que se desenvolve a vida de cada um. Há vidas tão desgraçadas - deficientes profundos; gente em toda as partes do mundo que sofre intensamente, etc. - que me parece necessário admitir recuos, além dos avanços. De resto, a questão do sofrimento é uma das várias questões essenciais que não estão resolvidas.)
Mas regressando à minha linha inicial de raciocínio: a ideia que delineei (imperfeitamente) implica (pelo menos na Terra; sobre outros planetas e outros mundos, nada sabemos) que atribuímos ao Homem o estatuto de “rei” da Criação, por assim dizer: o ponto máximo da escala. (Parêntesis importante: este termo, “rei da Criação”, não deve induzir em erro. Usar o termo “rei” é correcto se lhe dermos o significado verdadeiro – ou antes, aquele que eu atribuo à ideia de rei. Não vou agora alargar-me sobre isso; basta dizer que não significa “o ditador da Criação”, que pode fazer o que muito bem lhe apetece com a Natureza – minerais, vegetais e animais –; nada disso.)
Retomando: o Homem, ponto máximo da escala (apesar dos horrores que tem cometido e comete...). Esta noção do ponto máximo da escala é evidentemente contestada por muitos – ou pelo menos por alguns: “quanto mais conheço os homens mais gosto dos animais...” e “se o homem não existisse, o mundo continuaria a existir, talvez melhor e mais equilibrado, decerto inocente”. Mas isso é falsear a questão, dizer: “se o homem não existisse”. Sendo toda a vida manifestação divina (estou, aqui, tentando usar a razão, que, em princípio, também é um dom divino), é evidente que continuaria a haver manifestação, epifania, teofania; mas não da mesma forma, não na escala humana, que é superior – superior porque é a única em que um ser vivo tem plena consciência de si próprio, em que esse mesmo ser vivo construiu (ou talvez seja melhor dizer: descobriu) a noção do bem e do mal, de ética, de arrependimento, de compaixão (não se subestima, aqui, a afectividade animal; apenas é diferente). Esse mesmo ser vivo é o único (no planeta) capaz de pensamento abstracto, de se fazer perguntas sobre a vida e a morte, de se angustiar. O medo é comum a muitos animais. Já a angústia é exclusivamente humana. E poderia desenvolver estas ideias quase indefinidamente.
Enfim: isto tem preços, e um deles é o de certas noções ou certas  qualidades atrás referidas (consciência, ética, etc., etc.) poderem ser pervertidas e de os homens, entre o bem e o mal, poderem escolher o segundo, consciente ou inconscientemente. (Não estou a ignorar o estado, já invocado por autores como Nietzsche, de “para além do bem e do mal”; simplesmente, não considero tal estado, como não considero admissível a ausência de solidariedade.)
Mas – é isto o que importa ter presente – não me parece que o facto de o Homem estar no topo da escala implique que ele seja o estádio final do processo de evolução. Não julgo que o Homem, tal como o conhecemos, represente a fase final do plano divino de manifestação. Mesmo porque – como muito bem sabemos! – é demasiado imperfeito; tem demasiadas fraquezas. Simplesmente, é capaz de o reconhecer.
Mas o Homem é uma simples etapa. Temos de nos superar, de dar origem a algo de superior – daí o mito do herói. Claro, sabemos que a superação é um processo longo, não indolor, e que comporta riscos.
Sobre as religiões: as exotéricas, ou na sua expressão exotérica, dão-nos a “manutenção” espiritual das massas. As esotéricas, ou na sua parte esotérica, procuram proporcionar-nos os meios para efectuarmos a superação, a transmutação alquímica do homem.

João Aguiar

O  meu muito obrigado ao Carlos Madeira pela revisão da transcrição do texto, porque ele, mais que ningém, sabia o que o João estava a pensar quando escrevia.

 

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