segunda-feira, 28 de março de 2011

CRÓNICAS

CONVERSA COM A SECRETÁRIA  
(A SEIS TEMPOS)
1º — Tenho pena de não ser como os outros — quero dizer: como os meus colegas estagiários, em particular, e quase todos os tipos da minha geração, em geral.
Repito, tenho pena de não ser assim: futebol em primeiro lugar (incluindo a religiosa leitura da imprensa especializada), miúdas logo a seguir e, depois, sempre por ordem decrescente, emprego, dinheiro, telemóvel, DVD’s, jogos de computador, copos, e, por último, família e casa (já que há sempre a casa dos pais, cama, mesa e roupa lavada). Acessoriamente, de vez em quando, havendo tempo, algum livro fácil e estúpido, assim no estilo Código Da Vinci.
Com essa fórmula, eu estaria bastante mais confortável na vida.
Com essa escala de valores, eu nunca teria de rilhar os dentes, como faço, logo que entro na Redacção, sentindo colado à pele o olhar veladamente irónico dos meus colegas e lendo nos vários rostos a alcunha pronunciada nas minhas costas:
O intelectualóide.
A culpa é minha. Nunca deveria ter levado para a Redacção As Lições dos Mestres de George Steiner, nem La Gnose de Princeton, de Raymond Ruyer; mas eram os livros que eu andava a ler na altura e era com eles que neutralizava o tédio dos percursos de metropolitano.
Se andasse com A Bola ou o Record debaixo do braço, outro galo me cantaria, mais afinado.
Assim, sou o intelectualóide.

2º — O gradeamento que delimita o jardim está guarnecido de maracujá em flor — e essa flor é a mais bela do mundo. Foi ao observar uma pela primeira vez que disse a mim próprio: Deus existe, tem de existir.
Diante do portão, olho, através das grades, para a grande e sóbria moradia, lá ao fundo, protegida pela sombra de pinheiros mansos que já viram, pelo menos, os meados do século XX. Num repente, antes de premir o botão da campainha, penso no ocupante daquela casa.
Edvard Kovácz, professor de… pensando bem, não sei de quê. Na imprensa internacional, chamam-lhe geralmente «Kovácz, o pacificador». Como representante especial da ONU, tomou parte em inúmeras negociações e conversações de paz nos Balcãs, em África, no Médio Oriente, na Ásia. A título pessoal e particular, foi requisitado por presidentes, primeiros-ministros e comissões diversas para facilitar contactos e negociações, sempre visando a pacificação de conflitos. Mostrou ter uma insólita capacidade, quase um condão mágico, para sentar à mesma mesa inimigos até então irredutíveis. Em várias ocasiões e em diversas circunstâncias, todas elas difíceis, obteve consensos, apaziguamentos, tréguas, acordos de paz. Desgraçadamente, na maior parte dos casos, a paz ou as tréguas conseguidas não duraram muito tempo, mas esses retrocessos não foram da sua responsabilidade. Quer como enviado da ONU quer como intermediário particular, o professor Kovácz não detém, ou não detinha, poderes políticos, poderes de decisão; não mandava nos governos nem nos estados-maiores. Criava, simplesmente, as condições políticas e diplomáticas para a paz; os outros estragavam-nas. Este ano, fala-se com insistência no seu nome para o próximo Prémio Nobel da Paz.
É este o homem que, espero eu, se encontra além, dentro daquela moradia, que ele baptizou de «Montsalvat». Abandonou as suas actividades, escolheu Portugal como retiro. Está aqui, no Estoril, há cinco meses. A preparar umas memórias que, segundo parece, serão explosivas — afinal de contas, o professor conhece todos os líderes políticos do mundo e mais alguns e participou em conferências e encontros que nós nem sabemos que existiram. Tudo isso e o provável Prémio Nobel fazem dele bom material para entrevista.
Mas não é assim tão simples. Desde que se retirou, Edvard Kovácz tem-se portado como um ultra-misantropo. Ninguém o viu fora de «Montsalvat», embora os fotógrafos de Imprensa lhe tenham feito, durante as primeiras semanas, um autêntico cerco. É verdade que saiu de casa pelo menos uma vez, porque foi a Genebra dar uma conferência, mas teve artes de não ser visto, nem mesmo no aeroporto, quer à partida, quer à chegada. Como o conseguiu, não sei. Diz-se que chega a disfarçar-se, que é mestre nessa arte e que até já tomou o lugar do seu motorista para sair de carro sem ser incomodado nem perseguido. E, como seria de esperar de alguém com este comportamento, recusou até agora, com grande obstinação, todos os pedidos de entrevistas.
É aqui que eu entro; ninguém mo explicou, mas compreendi perfeitamente.
O professor Kovácz tem um braço direito chamado Ms Brown, uma daquelas auxiliares de absoluta confiança que são, ao mesmo tempo, secretárias, cães de guarda, governantas. Há alguns casos em que são também amantes, mas não neste, com certeza, porque já vi uma fotografia de Anna Brown, uma inglesa pesadona, de meia idade, feições duras, olhos sarcásticos. Essa foto — publicada no meu jornal — mostra como é improvável, para não dizer impossível, que exista uma relação mais íntima entre ela e o patrão.
Qualquer tentativa de contacto com o professor tem de passar pelo buldogue Anna Brown: é ela quem atende o telefone, quem responde ao fax e às mensagens electrónicas. É mesmo ela, revezando-se neste caso com uma espécie de mordomo, quem vem até ao portão do jardim, já que, segundo sei, ninguém conseguiu até agora chegar, sequer, à porta da casa.
Ora bem: o que se segue não é vaidade nem manias, juro. Mas sucede que, segundo todas as aparências, eu, o intelectualóide, exerço um certo efeito, uma certa atracção sobre o sexo feminino… oh, estou pronto a aceitar que há pouco de erótico, ainda menos passional, neste fenómeno; que, como diz o meu nada-querido editor (Assuntos Internacionais, segundo a nomenclatura da nossa Redacção), «o teu ar escanzelado e frágil desperta-lhes os instintos maternais». Eu poderia responder, citando alguns casos concretos, que não é bem assim (para já, não sou escanzelado), ou que não é sempre assim, não é sempre o ar frágil que me faz ganhar o favor das mulheres; mas para quê o esforço? De qualquer modo: foi este motivo que levou o chefe a destacar-me, simples estagiário (estagiário, desgraçadamente, rima com precário), para mais esta tentativa de conseguir uma entrevista com Edvard Kovácz.
É o mesmo mecanismo que leva o chefe, o nada-querido editor, a destacar a boazona da Teresa para tentar arrancar confidências a graves magistrados ou a secretários de Estado mais rebarbativos. Chama-se a isto gestão do pessoal.
Enfim: desta vez, se exerci alguma atracção especial sobre a terrível Ms Brown foi exclusivamente devido à minha voz, porque só contactei com ela pelo telefone. Começou por dizer-me secamente, num português correcto (o que me espantou) mas com forte sotaque (o que não me espantou nada), que o Professor Kovácz não estava, sequer, em Portugal. Já nem me recordo da minha argumentação contrária; sei que, a dada altura, enfrentando a densa floresta das suas negativas, murmurei, embora só para mim, em desabafo:
— Ai… Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada…
Chegou-me aos ouvidos uma gargalhada cuja razão não entendi. Logo a seguir, Ms Brown disparou:
— Olhe, não posso prometer-lhe nada. Experimente vir até cá depois de amanhã, mas venha sem grandes esperanças. Toque à campainha do portão e diga à pessoa que for atendê-lo que já falou comigo.
E aqui estou, na companhia do Joca fotógrafo. Não queria que ele viesse; argumentei que podia espantar a caça. O editor insistiu. E aqui estamos.
Resisto à vontade de colher uma flor de maracujá porque, na minha mão, ela duraria muito menos do que na planta. Limito-me a acariciá-la, muito ao de leve. Encho os olhos com a sua estranha, magnífica beleza. Por que não posso eu preencher o dia de hoje com esta flor?
Relutantemente, carrego no botão da campainha.

3º — O Joca fotógrafo (estagiário, como eu) põe os olhos no homem que se aproxima, caminhando sobre a relva, com um sacho na mão. E, subitamente, leva a máquina fotográfica à cara e dispara furiosamente. Pára aí, digo-lhe eu, por que é que estás a fotografar o jardineiro?
— Tu não sabes se é o jardineiro! — replica-me, com ar de esperto entendido. — Um tipo que já se disfarçou de motorista também pode disfarçar-se de outra coisa qualquer! Conheces-lhe a cara? Tens a certeza de que este tipo é o jardineiro?
Admito que não, não posso ter a certeza. No entanto, o homem do sacho não tarda a tirar-me as dúvidas. O Joca, enquanto metralha sobre ele a máquina fotográfica, arrisca estupidamente:
— É o professor Kovácz, não é?
O homem deixa cair o queixo, de espanto. Depois, vira-se para trás, não fosse o Joca estar a falar com alguém nas suas costas. Enfim, encolhe os ombros e decide ignorá-lo. Dirige-se-me num português de sotaque bem popular e que por isso mesmo não pode ser falsificado por um estrangeiro:
— O senhor é que é o jornalista de que a Ms Brown está à espera?
Respondo que sim, sou, e ele pede-me um comprovativo de identificação. Mostro-lhe o cartão do jornal. Ele observa-o e declara:
— Pois é. Mas eu só estou autorizado a deixá-lo entrar a si. O seu colega não pode. Nada de fotógrafos. Foi o que a Ms Brown disse.
Mentalmente, fulmino com uma maldição essa inglesa feia e digo ao Joca: olha, paciência. Faz um boneco da casa e vai-te embora com o carro. Eu volto para Lisboa de comboio.

4º — A sala está mobilada com muita simplicidade e está mergulhada em penumbra: por causa da rama dos pinheiros, lá fora, e porque os estores das duas janelas estão descidos. Suponho que é uma forma de manter o aposento fresco sem recorrer ao ar condicionado. Kovácz também é ambientalista.
Ms Brown encara-me pensativamente, protegida, escondida pelas grossas lentes dos seus óculos de antiquada e pesada armação de tartaruga. Não saiu do seu lugar, atrás da grande mesa de mogno; fez, simplesmente, um gesto convidando-me a sentar-me diante dela, do outro lado da mesa.
Não que eu ligue, muito ou pouco, ao que diz o meu editor; porém, dou-me conta de estar, quase instintivamente, a ensaiar um sorriso inocente e frágil (mas não escanzelado) enquanto fito a figura maciça da secretária de Kovácz.
Ela rompe as hostilidades sem preâmbulos:
— Devo começar por dizer-lhe que o facto de o senhor se encontrar aqui não significa necessariamente que vai poder entrevistar o professor. Digamos, apenas, que passou no primeiro crivo, que é o mais largo. Isto é, eu disse ao professor que talvez valesse a pena falar consigo (eu falar consigo) para perceber que género de entrevista o senhor será capaz de fazer; para avaliar a sua preparação e o modo como o senhor encara o seu ofício.
Esta é muito forte, penso eu, mas contenho-me e guardo para mim o pensamento. O homem deve estar convencido de que é, já nem digo o Papa, mas o próprio Filho de Deus. E a vaca inglesa é o seu profeta. Um exame prévio, imagine-se!
Apesar de não ter falado, algo deste discurso íntimo terá transparecido nos meus olhos, porque Anna Brown acrescenta, com a sombra de um sorriso:
— Isto pode parecer presunção, eu sei. Mas sucede que o meu patrão já teve algumas experiências desagradáveis, e mesmo trágicas, com a Imprensa. E o seu tempo está muito preenchido, não pode perdê-lo com frioleiras. Resumindo, a situação é esta: o senhor quer entrevistá-lo. Portanto, o interesse está do seu lado. Mas, claro, se não quiser sujeitar-se a uma conversa preliminar, pode sempre levantar-se e ir-se embora.
A minha atenção, enquanto ela falava, fixou-se no termo «frioleiras». Raios. O português desta inglesa é bom de mais.
Paciência, tenho de encher-me de paciência. Respiro fundo para arranjar oxigénio e paciência.

5º — Decido que também eu devo dispensar os preâmbulos:
— Bem. Uma parte das perguntas que tenciono fazer ao professor Kovácz, se a senhora me conceder o raro privilégio de uma entrevista… (dispensar os preâmbulos não é o mesmo que dispensar a alfinetada), uma parte das perguntas, dizia, estará relacionada com a vida pessoal do professor. Tanto quanto li, sabe-se muito pouco; não se sabe, sequer, o que o levou a interessar-se pelos problemas da paz, da pacificação de conflitos. Ou seja, como descobriu ele a sua vocação. Eu iria…
A Brown interrompe-me:
— Sobre a sua vida desde pequenino, o professor lhe falará, se der a entrevista, mas digo-lhe já que é singularmente desinteressante. Quanto à vocação, vou dizer-lhe algo que ele, provavelmente, não dirá por iniciativa própria. Não se pode falar em vocação pacifista. Aliás, eu não creio que o meu patrão seja um pacifista, na verdadeira acepção da palavra. O que aconteceu (esta é, pelo menos, a minha opinião) foi que, em dado momento da sua vida, Edvard Kovácz descobriu uma coisa: a sua capacidade inata para convencer o próximo. Se ele fosse um vendedor, venderia areia à gente do Saara. Isto, descobriu-o ele quando era já funcionário das Nações Unidas. Julgo que, então, terá pensado: a primeira função da ONU é manter a paz no mundo; portanto, se eu quero brilhar, e quero, é nisso que tenho de empregar o meu talento.
Durante este discurso, eu vou reflectindo: tenho de dar graxa à gaja, é a única maneira. Portanto, reajo à sua fala dizendo:
— Essa perspectiva é muito interessante. Acha que posso mencioná-la ao professor?
Mencione o que quiser, responde-me, não parecendo sensível ao elogio. Não tenho segredos para o meu patrão, isto mesmo já lho disse cara a cara.
— E ele?
— Deu uma gargalhada. É um homem bem-disposto. Que mais tenciona você perguntar-lhe?
Continuo a achar muito irritante esta pré-entrevista. Mas não me posso esquecer de que, afinal, não passo de um estagiário-precário.
— Evidentemente, eu gostaria que ele me desse alguns pormenores sobre os contactos que teve, ou ainda tem, com chefes políticos, diplomatas, enfim, toda essa gente. O professor conviveu com Yasser Arafat, ainda conheceu a Golda Meir… tem-se encontrado com vários presidentes dos Estados Unidos: Bush pai, Bush filho, Clinton, desses sei eu… enfim: a senhora sabe o que eu quero dizer.
Ela faz um riso breve e por momentos parece quase simpática.
— Matéria delicada, meu jovem amigo! Matéria delicada. Mesmo porque, afinal de contas, essa é a matéria central, não é verdade? A paz depende inteiramente das pessoas. O que quer dizer que se a paz é um estado, um bem tão difícil de obter, isso deve-se a que as pessoas não prestam. Posso parecer-lhe simplista, mas é assim mesmo. É mais do que assim mesmo, diria até. Não prestam os líderes que pregam a paz fazendo a guerra (caso dos líderes americanos, mas esse é só um exemplo); não prestam os indivíduos não-qualificados que organizam ou executam ataques terroristas; mas…
Inesperadamente, a Brown dá um valente murro no tampo da mesa e eu sobressalto-me, claro; não estava à espera.
— … Mas também não prestam para nada os pacatos cidadãos da Europa e da América que se embrutecem diante dos seus aparelhos de TV e entram na obesidade comendo fast-food e bebendo refrigerantes ou cerveja, soberbamente indiferentes à fome, ao sofrimento, à doença, à miséria que recobrem uma boa parte do nosso planeta. O que espera você que faça essa gente que sofre, que é explorada até ao tutano dos ossos e vexada, ainda por cima? Um dia, pegará em armas e virá contra nós, escudada e alimentada pelo seu desespero! Não se pode falar beatamente de paz a quem tem fome, a quem sofre e a quem é sistematicamente humilhado!
Chiça. A mulher é militante. Começo a sentir-me subtilmente culpado de qualquer coisa, ainda não sei bem de quê — mas culpado. Entretanto: devo ter tocado numa corda muito sensível de Ms Brown, porque ela, sem esperar que eu retome as perguntas (ou pré-perguntas da pré-entrevista), acrescenta, numa espécie de murmúrio:
— Se quer saber, foi por isso que Edvard Kovácz se retirou, apesar dos seus triunfos indiscutíveis. Foi porque viu que, no fundo, nada havia a fazer com esta humanidade repugnante. Por cada passo em frente que ele conseguia dar, fosse na Palestina, no Afeganistão, no Iraque, em qualquer parte do mundo; por cada passo em frente, conseguido à custa de muito esforço, logo acorriam vários anormais, líderes, ou militantes, israelitas ou americanos, britânicos ou afegãos; ou fossem quem fossem. Logo acorriam vários, que davam muitos passos para trás. Kovácz percebeu que… enfim; talvez ele venha a dizer-lhe o que percebeu.
Vejo aqui uma pequena abertura… um passo em frente (já que ela falou de passos) no caminho da entrevista. Trata-se, agora, de dar o próximo, conquistar esta terrificante Anna Brown. Arrisco-me; há que tornar a conversa mais íntima:
— É curioso, mas concordo inteiramente consigo… isto é: concordo com as ideias; não tenho a sua experiência, claro (sorriso tímido, frágil, não-escanzelado). Desculpe se lhe faço, agora, uma pergunta que é para si, e não para o professor: na sua posição profissional, deve ter visto de perto, ou falado, até, com todos esses líderes que ele conhece. Algum deles vale alguma coisa? Qual é, por exemplo, a sua opinião sobre o presidente Bush?
Em cheio. Anna Brown sorri, agora, abertamente.
— Na minha opinião, nenhum vale nada, sem excepção. A época actual é de crise porque, entre outros factores, não há um único dirigente político de jeito. São todos bastante idiotas, é o que vemos quando lhes tiramos as plumas, os estados-maiores, a segurança e as limusinas. Quanto ao presidente Bush…
Pausa. O sorriso alarga-se.
— Vou repetir-lhe um dito do professor, mas você não pode publicá-lo sem que ele o autorize. Um dia, em Washington, Kovácz teve uma reunião na Casa Branca e, quando voltou para o hotel, reparei que vinha muito tenso e muito cansado. Pediu-me uma bebida. Eu perguntei-lhe se o encontro com o presidente correra mal. Então, ele disse-me isto, com um grande suspiro: «Anna, como sabe, eu também conferenciei com Bush pai, na Casa Branca. E digo-lhe: a hereditariedade não é uma palavra vã. E há casos em que de geração para geração se produz um refinamento. Infelizmente!»
Preciso de alguns segundos para digerir. Depois, dou uma gargalhada e ela acompanha-me. Isso é óptimo para os meus objectivos, já estamos a ficar compinchas. Mas… o que é que se está a passar comigo? Começo a ter prazer nesta conversa! Começo a admitir que preferiria entrevistar Ms Anna Brown (que é o que estou a fazer, afinal) a ter de entrevistar Edvard Kovácz. Caramba, esta mulher pesadona, de meia idade e feia, tem carácter, tem sentido de humor, afinal… sacudo a cabeça para me devolver à sobriedade.
Ms Brown — ataco —, não sei se já está convencida, ou não, a recomendar-me ao professor. Confesso-lhe que bem gostaria de poder publicar esta conversa consigo. Mas o meu editor é parecido com o presidente Bush. Filho. Enfim: só tenho mais um tema que gostaria de tratar, e de aprofundar, durante a… eventual (carrego na palavra para que ela não me julgue pretensioso)… a eventual entrevista. Tendo em conta tudo aquilo que me disse, e recordo-me que me declarou que o seu patrão não é um pacifista, eu iria perguntar ao professor Kovácz: o que é ele, então? E o que é, para ele, a paz? Qual o seu conceito? Acha esta pergunta aceitável?
Com um encolher de ombros que não expressa desprezo, ela responde:
— Perfeitamente. Indiscreta, claro, mas já diz aquele provérbio, ou ditado, que só as respostas são verdadeiramente indiscretas, e não as perguntas. Não sei o que ele vai responder-lhe, claro…
Interrompe-se, inclina-se para a frente:
— Mas sei o que ele pensa. Que a paz é uma noção relativa e que é, acima de tudo, uma conquista. Que, na realidade, só funciona de dentro para fora: de dentro dos homens para o mundo exterior. E é por isso que ela não funciona de todo.
Eu queria era continuar esta conversa. Mas forço-me a perguntar-lhe:
Ms Brown, vou ou não ter a entrevista com o professor Kovácz?
O que acontece, agora, provoca em mim um arrepio de puro horror.
Num gesto lento, Anna Brown leva a mão direita à testa. A mão agarra-lhe a cara e começa a descer. Ao fazê-lo, arranca o rosto de Anna Brown. Os óculos. As sobrancelhas. As pestanas. O nariz. A boca. Simultaneamente, a mão esquerda ergue-se para arrancar o farto cabelo grisalho.
O horror passa, à medida que compreendo o que está a acontecer. A pessoa que está na minha frente limpa agora, com um lenço, a pintura dos lábios. E tenho diante de mim as feições de Edvard Kovácz, contorcidas num esgar sarcástico.

6º — Ele solta um longo suspiro e murmura:
— Se não se importa, vou também tirar estas mamas horríveis, que me fazem comichão.
O seu domínio da língua portuguesa é, de facto, excelente.
— Na realidade — acrescenta, enquanto executa a operação — Ms Anna Brown existe mesmo. Está no meu escritório, em Londres. Entretanto, dou-lhe os parabéns: pode gabar-se de me ter desarmado, de me ter levado a arrancar a máscara.
Eu ainda não recuperei a presença de espírito, portanto não lhe dou réplica. Kovácz continua:
— No fundo, é preciso tão pouco para me convencer, mas são raros os que acertam nesse pouco. Sabe você o que lhe conquistou a entrevista?
Abano a cabeça em negativa, não consigo fazer mais do que isso.
— Foi Camões. Quando falámos ao telefone e você percebeu que eu ia recusar e murmurou: Só me falece ser a vós aceito,/ De quem virtude deve ser prezada. Final do Canto X de Os Lusíadas. Conheço os seus autores, como vê, mas não esperava que, na sua idade, você os conhecesse. Foi isso. É tão simples.
Faz uma breve pausa e diz-me então:
— Bem, tem a entrevista. É quase tão explosiva como se diz por aí que as minhas memórias vão ser. Evidentemente, a publicação vai trazer-me sérios embaraços. Muito sérios. Não sei o que me deu. Talvez a solidão: tenho estado isolado há demasiado tempo e precisava de falar com alguém. Enfim, paciência; você não seria jornalista se não fosse já a correr para a Redacção, para escrever tudo isto.
É nessa altura que reencontro a minha voz:
— Sou ainda um jornalista estagiário. Ainda posso mudar de vida. Por favor, deixe-me ficar mais tempo para falar consigo. Juro que não vou publicar uma só palavra.
Ele sorri, faz um aceno afirmativo, levanta-se.
— Então, deixe-me só mudar de roupa. Eu volto já. Naquele armário, há uísque e copos.
Fico sozinho na sala, mas não me levanto para ir buscar uma bebida; mantenho-me imóvel.
Pela primeira vez desde há muitos meses, ou anos, sinto dentro de mim uma grande paz.

João Aguiar

J. Sousa - Natureza morta 2003 - óleo sobre tela 50x40cm

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