terça-feira, 21 de setembro de 2010

Murmúrio I - Acrílico sobre tela - 81x65 - 2006
J.Sousa

O ROMANCE HISTÓRICO
(2001)
 A primeira questão que se põe é: que romance histórico? Porque há vários tipos de romances históricos. Um deles, por exemplo, é o romance essencialmente «comercial», quase (ou mesmo) de produção em série, em que o enquadramento histórico é acima de tudo um condimento, ou um argumento de venda, por corresponder a um certo gosto do público; e em que, no fundo, não há uma real diferença qualitativa entre enquadramento histórico e enquadramento «romântico» ou policial. O chamado «romance de capa e espada» (hoje fora de moda) é disso um bom exemplo, se bem que não o único.

Devo fazer aqui um esclarecimento importante. Esta menção a um «género comercial» é puramente objectiva, isto é: não é crítica e ainda menos pejorativa. Na realidade, a grande distinção, a distinção importante que deve ser feita é a que existe entre bons e maus romances, bem escritos ou mal escritos, bem arquitectados ou mal arquitectados.
E há vários casos de boa qualidade literária em romances deste género. Cito um, aliás pouco conhecido em Portugal: o de Robert van Gulik, que escreveu toda uma série de romances em que, muito habilmente, combina um enquadramento histórico — a China do séc. VII d.C. — com a trama policial. O seu herói é o Juiz Ti Jen-tsé, que, aliás, existiu. [outros exemplos na exposição oral: Ellis Peters (Idade Média, com o irmão Cadfael); em ambos os casos, séries. E um mais ilustre: Umberto Eco, Nome da Rosa].
Note-se que vejo grandes méritos neste tipo de romance, para além do seu valor ficcional: pela evocação que faz de outros tempos, outros valores, outras tradições; pelo facto de abrir os horizontes do leitor. Como vejo iguais méritos nas biografias romanceadas de grandes figuras históricas
Esses tipos de romance histórico: a biografia e a trama historicamente enquadrada, sentimental ou policial ou outra, em que as personagens e, por vezes, os próprios acontecimentos históricos pouco ou nada intervêm afinal, não têm grandes tradições no nosso País.
Mas penso que podemos falar, com propriedade, de um romance histórico português, não isento, claro está, de fortes influências exteriores, porém com traços que lhe são próprios. Evidentemente, o que apresento a seguir é uma interpretação, ou uma leitura, subjectiva e como tal passível de contestação.

1 - Assim, penso ser legítimo dizer que, seja inconscientemente, seja de forma deliberada, há no nosso romance histórico uma intencionalidade. Por outras palavras, ele não é «inocente».
Essa intencionalidade refere-se a uma chamada da atenção dos leitores para a nossa identidade como Portugueses. Não se trata necessariamente de formular uma tese ou de enunciar doutrina, mas antes de, através do poder da evocação, relembrar o que fomos, a nossa consistência e as nossas raízes. Note-se que tal evocação não é forçosamente nacionalista ou de exaltação patriótica; ela pode ser até, eventualmente, crítica. Mas, de qualquer modo, parece-me haver, na maioria dos casos, e mesmo nos casos em que se critica ou «denuncia», essa intenção de evocar um pouco do que fomos, enquanto povo e enquanto país. Para que, simplesmente, o não esqueçamos ou mesmo para compreendermos melhor o que hoje somos [exemplos: Herculano: Monge, Eurico, Bobo, Lendas; Garrett: Arco Sant’Ana e peças; o próprio Eça, Ramires e contos; Saramago, etc.].

2 - Daqui decorre, para mim, uma exigência: a de um maior cuidado na pesquisa, na tentativa da recriação de ambientes e mentalidades e também na apresentação dos factos históricos.

3 - Finalmente, e, de certo modo, como elemento... «comprovativo» — perdoe-se-me a ousadia — desta minha opinião, notemos que a temática do romance histórico português é, na sua quase totalidade, uma temática portuguesa ou ligada a Portugal. Ora, o romance histórico não tem de se circunscrever às origens do seu autor: Flaubert deixou-se fascinar pela antiga Cartago em Salambô, Gore Vidal evocou o Império Romano com Julian e entrou nos domínios do Império Persa e do Império Chinês em Criação... (Mary Renault — Grécia); mas os autores portugueses, quando escolhem o género histórico, tendem a preferir a história portuguesa ou os períodos antecedentes que a ela se referem.

Devo assinalar agora as vozes discordantes que se levantam contra o romance histórico.
Como deveria ter sido a capa do romance
UMA DEUSA NA BRUMA
 Em primeiro lugar, há quem o considere um género «menor», a par do policial ou da espionagem. Devo dizer que não entendo muito bem o que seja um género menor; julgo que a menoridade ou a maioridade residem na qualidade intrínseca de cada obra e não no género em que ela se inclui ou em que, por vezes de modo arbitrário, a incluem. Curiosamente, esses que partilham tal opinião jamais se atrevem a negar a estatura maior de Alexandre Herculano, de Garrett, de Eça, enfim, dos nossos clássicos. É sobre os contemporâneos que o seu erudito desprezo se abate, como se mais ninguém estivesse autorizado a cultivar o género.
E há quem, pura e simplesmente, recuse o direito a «mexer com a História», quem recuse aos escritores o direito a colocar palavras inventadas na boca de personagens históricas, o direito a preencher com a sua imaginação as lacunas ou pontos mortos do nosso conhecimento dos factos passados.
Como se pode calcular, recuso absolutamente esta posição. Importa, sim, é não enganar o leitor, ou seja, não lhe oferecer gato por lebre, não lhe apresentar ficção como se fosse História. Importa é dar-lhe a possibilidade de distinguir entre os factos conhecidos — históricos — e a imaginação criativa do autor. Observados esses escrúpulos, o romance histórico é perfeitamente legítimo, culturalmente legítimo, como género.
Apesar de constituir um género — tanto quanto, neste domínio, é possível estabelecer classificações e caracterizações que nunca são nem podem ser rígidas — o romance histórico é, antes de mais, um romance. Isto parecerá uma redundância. Mas convém ter presente o «gosto pelo esotérico» (no sentido, popular e aliás impróprio, de «inacessível») que reina em certos sectores da intelectualidade, sectores onde ao romance se exige que contenha obrigatoriamente todo um sistema filosófico e que submeta o leitor às mais duras provas de leitura e de interpretação, lançando-se para a vala comum dos «comerciais» e, mais insultuoso ainda, dos «menores», todas as obras que não correspondam a essa rígida exigência.
Contra esta atitude, eu defendo que um romance, histórico ou não, pode evidentemente conter sistemas filosóficos inteiros ou as mais profundas especulações — e, com tudo isso, ser um excelente ou genial romance; porém essa não é a sua essência e não é a sua função primeira.
Um romance é uma narrativa de ficção, geralmente em prosa. E quem narra, narra alguma coisa — regra geral, no caso da ficção, uma história. A história pode perfeitamente ser secundarizada pela análise psicológica, pela força das personagens, pela crítica de costumes, etc. Porém a narrativa tem de ser bem estruturada, as personagens devem ter vida, o leitor deve ser envolvido, seduzido, tornado cúmplice, participar. Essa deve ser, penso eu, a primeira preocupação de quem escreve. Um romance histórico não foge, ou não deve fugir, a esta regra. Antes de ser histórico, há-de ser romance. De outra maneira, bem mais valerá um ensaio ou uma dissertação ou uma palestra. Que, se bem escritos, poderão até conseguir perfeitamente essa sedução do leitor — ou do ouvinte — a que acabo de referir-me.
Mas, enquanto romance histórico, ele tem, ou pode ter, a virtude de despertar o interesse do público pela História, o que considero extremamente importante, se não mesmo vital, no momento presente.
O termo romance histórico contém duas referências essenciais: a Literatura e a História. Elas constituirão, talvez, a única arma possível contra alguns perigos graves que hoje ameaçam a nossa sociedade: a massificação total, uma nova forma de servidão e uma nova forma de embrutecimento.
Não tenhamos ilusões: uma nova Idade das Trevas bate-nos à porta. E merecerá esse nome muito mais do que o período que antecedeu a Idade Média ocidental — para já não falar da própria Idade Média, que foi, afinal, extremamente rica e fértil em termos culturais e espirituais.
Basta observar — o que é fácil, dada a omnipresença e a omnipotência da comunicação social e, sobretudo, dos meios audiovisuais — o progressivo e galopante abastardamento da língua portuguesa e o sentido descendente da cultura geral que se verifica nas mais diversas camadas da população.
Os meios de comunicação são cada vez mais acessíveis e eficazes, mas comunicam cada vez menos. O acesso à educação está hoje generalizado e esse era um passo absolutamente essencial, após a Revolução de 25 de Abril. Mas — que educação estamos nós a generalizar? Quando um ao menos razoável domínio da nossa língua (a língua, esse factor essencial, já não direi até de cultura, mas de identidade, de qualidade humana e, enfim, de vida) escapa, até, a membros de classes profissionais como médicos, advogados, e, em alguns casos, professores e ministros? Quando as nossas referências culturais mais importantes estão esquecidas ou são desconhecidas da maior parte da população? Quando, alegremente, vamos formando engenheiros, advogados, médicos, gestores que, em termos de Humanidades, são virtualmente analfabetos?
A História e a Língua e Literatura, pelas potencialidades que encerram, pelo apetrechamento cultural, mental, espiritual que proporcionam, são talvez o único antídoto ante o avanço desta literacia analfabeta e desta cultura com aspas que nos ameaçam. Ameaçam a nossa identidade e também a nossa própria sociedade.
Não há exagero. O empresário e o gestor que só lêem as publicações anuais do relatório e contas da sua empresa e os livros de formação profissional do seu ofício (além, evidentemente, da indispensável informação futebolística), o empresário e o gestor para quem a literatura não existe e a História ainda menos, são também, por excelência, os tipos de empresário e de gestor para quem o pessoal, o indivíduo, é mera unidade de trabalho, contratável e dispensável segundo as exigências da conjuntura — e também segundo as exigências do preço do carro de luxo que ele pretenda comprar. É esta, cada vez mais, a atitude predominante na sociedade ocidental e atrevo-me a sugerir que uma das razões deste regresso a um hiper-liberalismo económico, à sombra do qual o Estado abdica das suas responsabilidades, se encontra justamente na ignorância histórica. São ainda conhecidas, porque recentes, as consequências negativas do excesso de intervencionismo estatal, mas são já ignoradas as consequências igualmente negativas dos excessos do liberalismo económico. E assim estamos a voltar à selva — não, muito pior; porque na «selva» há a solidariedade tribal.

É sobre estas notas que pretendo acabar a minha intervenção: sobre o papel que a Literatura pode desempenhar na abertura, na modelação, na civilização dos espíritos. E sobre o papel que a História pode desempenhar na compreensão das realidades contemporâneas. Um papel libertador, direi mesmo; porque um eleitorado dotado de consciência histórica e de um razoável mínimo de conhecimentos históricos é um eleitorado muito menos vulnerável à massificação, ao arrebanhamento, aos modismos, às persuasões da propaganda insidiosa, às seduções de eventuais «salvadores da Pátria»; menos vulnerável à manipulação e mais capaz de dar os seus apoios, as suas afeições e as suas recusas de modo consciente, maduro, em acordo com o pensamento individual dos indivíduos que o constituem — e não exclusivamente segundo o pensamento e os objectivos dos directores de campanha, seja de propaganda seja de publicidade. Em suma, será um eleitorado que se afastará saudavelmente dos cães de Pavlov (...). Muito ao contrário do que vai acontecendo no momento presente.

 João Aguiar

Murmúrio II - Acrílico sobre tela - 81x65 - 2006 - J.Sousa

Sem comentários:

Enviar um comentário