O
ITINERÁRIO DO SORRISO
Depois
de tudo o que se tem dito e escrito sobre Os
Lusíadas, cabe perguntar humildemente: restará alguma coisa para dizer ou
escrever?
A
resposta a esta pergunta será, evidentemente — Sim.
Não
há aqui quebra de humildade. O mérito da resposta pertence bem mais a Camões do
que a nós, que o estudamos. Penso que esta é, aliás, uma das características
mais notáveis do poema, a par da sua incomparável beleza formal: conter uma
riqueza e uma densidade tais que após quatro séculos de leitura ainda nos é
possível explorar esse universo
encantado de palavras, imagens, ideias, ritmos — e quase diria também cores, odores e sons — e, ao explorá-lo, encontrar nele novas aventuras, novas terras, novos rios. Ainda que outros por lá hajam passado e deixado o seu padrão e desenhado cartas de marear. Porque é-nos sempre possível implantar novos padrões e traçar novas cartas, segundo a nossa maneira de ver e de «respirar» Os Lusíadas.
A
carta de navegação que aqui proponho não é mais do que um esboço e, seria
escusado dizê-lo, não relata um verdadeiro descobrimento, pois muitos outros
hão-de ter seguido o mesmo itinerário, porém não me recordo de o ver exposto de
forma sistematizada e nítida. Ainda que tal sistematização exista, não é
certamente das mais conhecidas.
Uma
coisa posso garantir: não encontrei este itinerário nos bancos da escola,
quando me ministraram Os Lusíadas
como se de um remédio amargo e particularmente indigesto se tratasse, uma
leitura atravancada com a divisão de orações e os complicados nomes das figuras
de linguagem -
zeugmas, anástrofes, apóstrofes, hipérboles, sinédoques, prosopopeias... enfim,
o bastante para levar qualquer adolescente a erguer à sua volta as barreiras
defensivas da rejeição: Camões nunca mais, não gosto e não quero.
Pela
parte que me toca, após haver completado o antigo liceu, precisei de sete anos
para reencontrar Os Lusíadas e para me reencontrar, finalmente seduzido, em Os Lusíadas.
A
abordagem que pretendo esboçar não teria esse inconveniente. Ela teria, estou
certo, efeitos bem diferentes, pois ofereceria uma iniciação mais fácil, mais
segura e capaz de criar entre os jovens iniciados e o poema um laço duradouro,
porque afectivo.
É
a abordagem pelo humor (que, espero torná-lo claro, depressa se transforma em
abordagem pelo amor).
Chamo-lhe
«itinerário do sorriso». Porque o humor, na sua forma mais inteligente e nobre
— aquela que, justamente, encontramos em Os
Lusíadas —, não tem de fazer rir a bandeiras despregadas. Essa é a função
da farsa, igualmente nobre, porém diferente. O humor é sobretudo sorriso,
alusão velada, insinuação.
Uma
primeira observação: em Os Lusíadas,
poema épico, o humor encontra-se, não poucas vezes, associado ao erotismo, mais
do que ao heroísmo. O que, aliás, é compreensível, dado a sua natureza ser de
certo modo idêntica à natureza do erotismo: se o humor tem pouco a ver não só
com a farsa mas também com o riso desbragado e truculento, o erotismo, ao contrário
do que parece julgar uma brutal concepção contemporânea, pouco ou nada tem a
ver com pornografia. O humor sorri apenas; e o erotismo apenas sugere. Deixa
entender mais do que afirma, entreabre portas sem as escancarar.
E,
para o caso que nos interessa, ele é um poderoso atractivo suplementar que o Itinerário
do Sorriso oferece como iniciação destinada à juventude. Não cabem aqui, penso
eu, escrúpulos moralistas, pois a juventude, nos nossos dias, é bombardeada
desde a mais tenra e inocente idade não apenas com mensagens eróticas mas até
com outras que transportam a mais clara pornografia. Nas circunstâncias
actuais, o humor erótico de Camões será, sem a menor dúvida, uma saudável
sublimação e mesmo uma pedagogia.
Consideremos,
antes de mais, esta célebre passagem (Canto II, 36):
Os
crespos fios de ouro se esparziam
Pelo
colo, que a neve escurecia;
Andando,
as lácteas tetas lhe tremiam,
Com
quem Amor brincava e não se via
Célebre,
referi acima. Pelo menos, na memória juvenil de toda uma época. Duvido que
entre os estudantes da minha geração — e das seguintes — houvesse um só que
desconhecesse estes versos, a cena em que Vénus vai suplicar a Júpiter, rei dos
deuses, protecção para a armada de Vasco da Gama. E no entanto, esse trecho
nunca era lido nas aulas, nem sobre ele se praticava a divisão de orações.
É
certo que não se encontra aqui uma alusão propriamente humorística, porém o exemplo
serve para mostrar como é possível, começando pela «leitura acanalhada» que,
fatalmente, será a primeira que os adolescentes de hoje — tal como os de ontem
— hão-de fazer, passar a outras leituras. Porque a irresistível beleza dos
versos não deixará de, com a ajuda inteligente do professor, exercer a sua
magia.
Quanto
ao humor, ele está bem presente nesta mesma cena protagonizada por Vénus e
Júpiter:
C'um
delgado cendal as partes cobre
De
quem vergonha é natural reparo,
Porém
nem tudo cobre nem descobre
O
véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas,
para que o desejo acenda e dobre,
Lhe
põe diante aquele objecto raro.
(Canto
II, 37)
Há
certas divergências quanto ao significado da expressão «roxos lírios», de que o
véu de Vénus é pouco avaro. Porém, seja ele a pele avermelhada das partes
pudendas, como pensa Afrânio Peixoto, seja antes o roxo das pontas dos seios,
este jogo do «nem tudo cobre nem descobre» apela, inegavelmente, ao sorriso.
E
o sorriso regressa mais adiante, quando Júpiter, comovido mas sobretudo
seduzido, consola a deusa do amor:
As
lágrimas lhe alimpa, e acendido
Na
face a beija, e abraça o colo puro;
De
modo que dali, se só se achara,
Outro
novo Cupido se gerara.
(Canto
II, 42)
Depois,
no Canto VI, quando Neptuno convoca as divindades marinhas, eis como surge
retratada a sua belíssima esposa:
Vestida
ua camisa preciosa
Trazia,
de delgada beatilha,
Que
o corpo cristalino deixa ver-se,
Que
tanto bem não é para esconder-se.
(Canto
VI, 21)
Também
será difícil não sorrir na cena em que Vasco da Gama, ao entrar no palácio do
Samorim, admira as esculturas do portal e nelas vê
Mui
grande multidão da assíria gente,
Sujeita
a feminino senhorio
Dua
tão bela como incontinente;
Ali
tem, junto ao lado nunca frio,
Esculpido
o feroz ginete ardente
Com
quem teria o filho competência.
Amor
nefando, bruta incontinência!
(Canto
VII, 53)
Esta
passagem merece uma atenção especial. Primeiro porque o professor que a quisesse
descodificar e analisar em plena aula poderia fornecer aos seus alunos alguns
dados históricos e lendários que em tempos fizeram parte da nossa cultura geral
e cujo regresso ao conhecimento dos jovens portugueses seria talvez uma
interessante contribuição para a riqueza do seu espírito, mesmo que não conste
dos programas oficiais do ensino. O professor explicaria, pois, que a «bela
incontinente» é a tão cantada Semiramis, rainha da Assíria, a quem é atribuída
a construção dos célebres jardins suspensos de Babilónia (aqui entraria uma
pequena divagação sobre Assírios, Caldeus, a Mesopotâmia em geral...) e cuja
luxúria era tão intensa e aberrante que teria mantido relações íntimas com o
próprio filho — e com um cavalo, o tal «feroz ginete ardente» que Camões ali
coloca junto ao lado «nunca frio» da rainha. Também não faria mal acrescentar
que Semiramis inspirou pelo menos duas óperas, uma de Rossini e outra de Marcos
Portugal, compositor que no seu tempo foi famoso em toda a Europa (e que nós
hoje relegamos para a apagada e vil tristeza do esquecimento).
Em
segundo lugar, porque nesta mesma passagem se descobre a vontade clara, consciente
e deliberada do poeta: ele quer o
sorriso do leitor, nesta cena. Para isso introduz nela uma descrição que não tem
justificação aparente, seja histórica, dramática, narrativa ou outra. A
justificação está, precisamente, em fazer-nos sorrir com a evocação de
Semiramis e do seu lado nunca frio e do seu amante equino.
Finalmente,
no episódio erótico por excelência, o da Ilha dos Amores, vamos encontrar a
tripulação da armada explorando os bosques à procura de caça e avistando, em
vez de animais, as ninfas e deusas que Vénus ali reuniu para deleite dos
navegantes...
Dá
Veloso, espantado, um grande grito:
—
«Senhores, caça estranha — disse — é esta!
(Canto
IX, 69)
E
logo a seguir, entusiasmado:
Sigamos
estas deusas e vejamos
Se
fantásticas são, se verdadeiras!»
Isto
dito, velozes como gamos,
Se
lançam a correr pelas ribeiras...
(Canto
IX, 70)
O
que depois se passa é conhecido e não faz parte do objecto desta simples
exposição. Mas como não encontrar aqui, novamente, um sorriso feito de malícia
e de alegria?
Permita-se-me
agora uma curta divagação para prestar homenagem, também ela sorridente, a...
um censor do Santo Ofício, imagine-se. Mais concretamente, a Frei Bartolomeu
Ferreira, o autor do parecer que tornou possível a publicação de Os Lusíadas. Pelos seus olhos
inteligentes ou demasiado distraídos — possibilidade esta que não me parece
crível — passaram todos estes versos, todas estas imagens, os roxos lírios de
Vénus, o quase incontido desejo sexual de Júpiter, o corpo magnífico de Tétis,
Semiramis e o seu ginete, os gracejos de Veloso. E depois de ter lido tudo
isto, o que ele escreveu sobre o poema foi: Vi
por mandado da santa & geral inquisição estes dez Cantos dos Lusiadas de
Luis de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizerão em
Asia & Europa, e não achey nelles cousa algua escandalosa nem contrária â
fe & bõs custumes...
Excelente
Frei Bartolomeu. Limitou-se depois a advertir o leitor a propósito da constante
intervenção dos deuses pagãos, mas logo explicou que isto he Poesia & fingimento (...) e por isso me pareceo o liuro de se imprimir.
A
censura do Estado Novo não seria talvez tão tolerante para com um novo Camões —
e não o seria, de certeza, se ele em vez de escrever um poema houvesse
realizado um filme.
Todavia,
não é só no seu componente erótico que o poema segue o itinerário do sorriso.
Vereis
o Mar Roxo, tão famoso,
Tornar-se-lhe
amarelo, de enfiado,
Declara
Júpiter a Vénus no Canto II (49). E depois, no Canto V (35), encontramos a cena
em que todos certamente pensam quando se fala de humor em Os Lusíadas. Ela faz parte do célebre episódio do marinheiro Fernão
Veloso — justamente aquele que, mais tarde, bradará: «caça estranha é esta!».
O
meu propósito não é narrar o episódio, sobejamente conhecido. Recorde-se apenas
que quando a armada do Gama se encontra na baía de Santa Helena, os navegadores
portugueses entram em contacto com os indígenas; e que Veloso, espírito
aventureiro e não pouco gabarola, acaba por pedir autorização para os
acompanhar: ir com eles ver a povoação
que tinham, pera trazer algua mais notícia da terra do que eles davam, como
conta João de Barros na primeira Década da Ásia.
Acaba por regressar a correr, perseguido pelos naturais, e tem de ser recolhido
à pressa pelo batel enquanto se trava uma refrega em que o próprio Vasco da
Gama é ferido. Já ao largo,
Disse
então a Veloso um companheiro
(Começando-se
todos a sorrir):
—
«Olá, Veloso amigo, aquele outeiro
É
melhor de decer que de subir...»
—
«Sim, é, — responde o ousado aventureiro —
Mas,
quando eu para cá vi tantos vir
Daqueles
cães, depressa um pouco vim,
Por
me lembrar que estáveis cá sem mim.»
Eis,
numa penada, todo o quotidiano da vida de bordo, os gracejos, a camaradagem alegre
— e, novamente, o sorriso...
No
canto seguinte, é Baco o alvo de Camões, que o descreve a penetrar nos domínios
de Neptuno para incitar este contra os Portugueses. O deus do mar, avisado
Da vinda
sua, o estava já aguardando.
Às
portas o recebe, acompanhado
Das
Ninfas, que se estão maravilhando
De
ver que, cometendo tal caminho,
Entre
no Reino da água o rei do vinho.
(Canto
VI, 14)
E
atente-se, no decurso deste mesmo episódio, à forma como Camões descreve Tritão:
Os
cabelos da barba e os que decem
Da
cabeça nos ombros, todos eram
Uns
limos prenhes de água, e bem parecem
Que
nunca brando pente conheceram;
Nas
pontas pendurados não falecem
Os
negros mexilhões, que ali se geram.
Na
cabeça, por gorra, tinha posta
Ua
mui grande casca de lagosta.
(Canto
VI, 17)
Finalmente,
gostaria de referir uma outra passagem do Canto VI (65), integrada no Episódio
dos Doze de Inglaterra:
Algum
dali tomou perpétuo sono,
E
fez da vida ao fim breve intervalo;
Correndo
algum cavalo vai sem dono
E
noutra parte o dono sem cavalo.
Uma
vez referenciadas todas estas estações do nosso itinerário, que mais resta para
dizer?
Apenas
importa, julgo, salientar a forma como o sorriso que ele propõe nos aproxima de
Os Lusíadas e do seu autor.
Pelo
seu estro épico, pela característica ímpar de ser o grande poema nacional — e de o ser com qualidade literária também
ímpar —, a obra, como é evidente, está-nos indissoluvelmente ligada, a nós,
Portugueses, pelo menos enquanto quisermos ser um povo, uma nação e um país.
Porém essa ligação é, digamos, colectiva e portanto impessoal. É uma ligação profunda
e importante, mas não podemos, enquanto indivíduos, transportá-la permanentemente
na nossa consciência, porque ninguém consegue viver — e ainda bem — em
permanente estado de exaltação heróica, seja ela nacional (isto é, patriótica)
ou internacionalista. Esse era o sonho, aliás não-inocente, dos regimes
totalitários, de direita e de esquerda, que assolaram o nosso século XX.
Contudo,
enquanto indivíduos, um outro laço pode ligar-nos a Camões e a Os Lusíadas de uma forma permanente,
como sentimento afectivo pessoal, vivo e actuante em cada um de nós. Direi
mesmo que esse laço revelar-se-á natural, quase inevitável, desde que estejamos
dispostos a seguir o Itinerário que proponho. Porque então, Camões, que nos é
distante pelo génio, há-de revelar-se-nos tão próximo como um irmão, pelo
espírito, a vivacidade, o humor portugueses.
Não
há sequer moralismo na sua ironia, não se trata de aplicar a máxima castigat ridendo mores. É antes malícia
alegre e pura, daquela que ainda hoje, em termos apenas diferentes mas ainda
coincidentes, encontramos em nós mesmos, no dia a dia.
Quando
Tétis aparece vestida com uma camisa de delgada beatilha, ele acrescenta: Que o corpo cristalino deixa ver-se, / Que
tanto bem não é para esconder-se. O que corresponde, evidentemente à
moderna chalaça: «O que é bom é p'ra se ver».
O
grito de Veloso, Senhores, caça estranha
é esta! podia, com palavras menos elegantes mas não muito diversas, ser
repetido por um qualquer galã de praia moderno ao deparar com um grupo de
raparigas tomando banho de sol numa duna.
O
Mar Vermelho que fica amarelo, de enfiado
ao ver as vitórias portuguesas, eis uma imagem que nos parece muito próxima da
que hoje seria usada.
Passarei
sem me deter no episódio em que Fernão Veloso foge a bom fugir dos Africanos na
baía de Santa Helena, pois a cena — sobretudo a resposta que ele dá aos companheiros
— encontra tão claro eco em várias anedotas contemporâneas que me parece inútil
dizer mais do que já disse. E o mesmo é válido para a descida de Baco aos
fundos marinhos, esse momento em que as Ninfas se espantam que entre no Reino da água o rei do vinho.
Mas
atente-se na forma como é descrito Tritão: Os
cabelos da barba e os que decem / Da cabeça nos ombros, todos eram / Uns limos
prenhes de água, e bem parecem / Que nunca brando pente conheceram; / Nas
pontas pendurados não falecem / Os negros mexilhões, que ali se geram. / Na
cabeça, por gorra, tinha posta / Ua mui grande casca de lagosta...
Este
Tritão desmazelado e feio, que nunca se penteia e que se passeia pelos mares
com uma casca de lagosta na cabeça: não corresponderá ele ao que poderia gerar
a imaginação jocosa de um adolescente (ou não poderá ser ele também o
auto-retrato humorístico do próprio adolescente?)
É
neste contexto, neste ambiente familiar em que há calor humano e alegria, que
podemos encontrar, como sugeri, uma nova aproximação a Os Lusíadas. E se acaso, seguindo este itinerário, os estudantes de
hoje saírem da escola apaixonados pelo poema, transportando-o na memória e no
coração, ter-se-á dado um grande passo na educação da juventude.
João Aguiar