sábado, 28 de janeiro de 2012

PEQUENOS TEXTOS



UM MISTÉRIO IGNORADO…
       A quem se rir de mim por causa deste título, dizendo: «Se é mistério, claro que ninguém o conhece», respondo desde já: é verdade, mas perante um mistério importa, antes de mais, saber que ele existe. O que, cuido eu, não se passa com este de que vos quero falar.
Gil Vicente: não é tema novo nestas crónicas, já há tempos lhe prestei sentida homenagem. Hoje, porém, pretendo abordar esta figura histórica na perspectiva das ideias que transparecem nos seus autos. Porque, tendo em conta a época em que viveu (ou a imagem que temos dessa época), essas ideias são perturbadoras, sobretudo no domínio da… «filosofia religiosa», chamemos-lhe assim.
No «Auto da Barca do Inferno», a alma do Fidalgo argumenta o seu direito a embarcar para o Paraíso: «… Que deixo na outra vida / quem reze sempre por mi». E o Diabo responde-lhe: «Quem reze sempre por ti? / Hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi!». Depois, é o Sapateiro que se espanta por ir parar ao Inferno «confessado e comungado». E também a Alcoviteira, «a que criava as meninas / para os cónegos da Sé».
No «Auto da Feira», um anjo enviado por Deus proclama: «à feira, à feira, igrejas, mosteiros, / pastores das almas, Papas adormidos! / Comprai aqui panos, mudai os vestidos»… e continua explicando à comunidade eclesiástica que é preciso voltar à simplicidade e à pobreza dos primeiros tempos.
Não sobra espaço para muitos mais exemplos; bastará referir que eles são abundantes. O ideal religioso de Gil Vicente é o de uma Igreja simples e despojada, sem hierarquias complicadas, uma religião de amor e de virtude, ligada à Natureza, como se lê no belíssimo vilancete que Abel canta no «Auto da Feira»: «Adorai, montanhas, / o Deus das alturas, / também as verduras»… ao mesmo tempo, e com inatacável lógica, Mestre Gil critica — com a ironia corrosiva que lhe é conhecida — a venda de indulgências, questão que era então muito discutida; e, de um modo geral, mostra-se extremamente severo para com a Roma pontifical.
Em suma: Gil Vicente, bom católico, bebeu na fonte franciscana e, sobretudo, naquilo que essa fonte tivera de subversivo: afastamento em relação à hierarquia, elogio da pobreza, recusa das devoções puramente formais. Por isso não valem ao Fidalgo as orações pela sua alma nem ao Sapateiro o ter-se confessado e comungado antes de morrer, pois passara a vida a enganar o próximo. Atenção a este último ponto: negar o valor absoluto, «per se», da confissão e da comunhão ainda era subversivo, pelo menos, no século passado.
Além da influência franciscana, nota-se nele uma clara influência de Erasmo, cuja ortodoxia católica era algo duvidosa.
E agora, perguntar-se-á: onde reside, afinal, o mistério?
O mistério, a que podemos ou não colocar aspas, reside no facto de Gil Vicente, como sabemos, ter sido um escritor da corte, honrado e protegido por D. Manuel I e por D. João III. O que, atrevo-me a pensar, deverá levar-nos a reconsiderar as ideias feitas acerca destes dois reis, ainda que eu não veja a forma de engolir a entrada da Inquisição em Portugal.
Mesmo com este gigantesco senão, deveríamos tentar olhar melhor aquela época. Julgo que, pelo menos, se alteraria um pouco a opinião vagamente desagradável que conservamos de D. Manuel I.
Enfim, como diz o povo: isto é só a gente a falar.
João Aguiar

Catedral estilo gótico de Cantão - China

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