quinta-feira, 5 de maio de 2011

ILUSTRAÇÃO CIENTÍFICA

PARÁBOLA DAS MOSCAS
Primeiro capítulo, cujo cenário é uma sala de estar.
- O que é que há hoje na TV? - perguntou a mosca doméstica (musca domestica) ao seu companheiro, que pertencia, como não podia deixar de ser, à subcategoria musca vulgaris Linnaei.
Ele desviou os olhos da notícia que lia na página desportiva do jornal (a única que favorecia com as suas atenções) e consultou a programação:
- Assim, coisa de jeito... daqui a cinco minutos temos a telenovela, depois há a transmissão do Ajax - Desportivo de Pedrógão a contar para o Campeonato de Subcinco.
Não acrescentou que se a conspícua amantíssima adormecesse, como ele esperava, ainda podia ver o filme pornográfico que a SIC anunciava no programa, com um O e a eufemística designação de «erótico».
A musca domestica suspirou de alívio e comentou: - Vá lá, não é mau. Eles têm estado a melhorar.
Dizia isto porque ainda na véspera assistira embevecida a um châo musical ao vivo e em directo, com artistas nacionais do mais puro quilate, tanto assim que ainda lhe vibravam no cérebro os versos sublimes: «Afinal havia outra / E eu sem saber...».
Convém esclarecer que estas duas moscas, nas suas respectivas subcategorias, pertenciam à grande classe da musca lusitanica.
Segundo capítulo, cujo cenário é um gabinete mobilado com discreto bom gosto.
As moscas em presença, sendo embora da mesma classe lusitanica, pertenciam a subcategorias muito mais exaltadas.
- Não me interessa que haja descontentes! - exclamava a musca guterreana mirabilis aos seus colaboradores íntimos - Temos de manter a nossa participação na campanha contra a miloseviciana terribilis. Está claro que não serve para nada, mas dá-nos uma certa projecção internacional. Olhem que estou farto de ver a nossa bandeira, de cada vez que há uma conferência de imprensa da NATO em Bruxelas.
Ninguém objectou que a bandeira estaria lá mesmo que não houvesse participação, nem que o financiamento da dita, ainda que quantitativamente pouco expressivo, seria bem mais útil e moralmente mais imperativo, se fosse gasto, por exemplo, no auxílio à musca timurensis massacrata. Afinal de contas, abichar umas viagens na Europa ou para a América era certamente preferível a queimar muitos neurónios e muitas energias com causas incómodas.
- E agora, um outro assunto - prosseguiu a guterreana mirabilis. - O que é que nos falta privatizar? Eu, se querem saber, ando a pensar na Assembleia da República. Afinal de contas, é preciso manter a coerência; ou somos socialistas ou não somos!
Terceiro capítulo, que decorre numa sala sumptuosa e elíptica.
- Então, esses nabos enganaram-se outra vez? - resmungou a musca clintoniana oralis (subcategoria da classe presidentialis mundi sublimissima). Quantos civis foram, desta vez? Duzentos? É uma chatice, há que dizer aos rapazes que têm de afinar a pontaria. E o que se passa com a musca kosovaris lixata? Continua a lerpar à grande, não? Bom, de qualquer modo a nossa orientação mantém-se, meus senhores: a partir de agora, os ataques aos insubmissos por esse mundo fora, passam a ser feitos via NATO. E se vierem repontar a dizer que é uma aliança defensiva, olhem: já a minha mãezinha dizia que a melhor defesa é o ataque. Quem são eles para contrariar a minha mãe?
Quarto capítulo, algures em Java.
- Quais referendo nem meio referendo! - exclamou a musca indonesica dictatorialis. - Mandem mas é mais comandos integracionistas para dissolver o sarampo à timurensis massacrata. De resto, a australianica petroliphica e a cliontiana oralis apoiam-nos, mesmo que falem baixinho.
O epílogo, que se segue e que é muito breve, tem como cenário o Planeta Terra:
Por estranho que pareça, o consagrado provérbio nem sempre é exacto e temos, portanto, de o corrigir:
A merda, companheiros, é que tende a mudar de aspecto e substância; as moscas, essas, não variam muito.
João Aguiar

Ensaio a lápis de cor sobre poliester A4

1 comentário:

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