sábado, 23 de abril de 2011

CONTOS



Vermelha de Pimentão
João Aguiar

Era uma vez, há muitos, muitos anos, numa UCP distante, um bondoso presidente da Comissão de Gestão que tinha uma filha, pequenina, ainda de berço, linda e encantadora, que todos os seus camaradas súbditos adoravam.
Como a pequenina, logo ao nascer, se mostrara de tez corada e, chorando muito a pedir mama, mais corada ficava, todos lhe chamavam, enternecidos, Vermelha de Pimentão. E porque a terna alcunha era ideologicamente correcta, o doce nome ficou e assim ela foi baptizada, pelo reverendo camarada padre Vladimiro Ulianovo, na igreja de S. José Estaline, em Baleizovnovgorodo, num doce dia de Maio, quando cantavam as andorinhas recém-chegadas do Egipto no Grande Programa Popular de Turismo Ornitológico de Massas.
Vermelha de Pimentão foi crescendo em graça, em formosura e em espírito revolucionário. Cedo se transformou no Ai-Lenine dos trabalhadores da UCP, que a idolatravam, que colhiam para ela os melhores troféus de latifundiário - um dente, um cabelo, às vezes mesmo um dedo completo, que penduravam, amoravelmente, no seu bercinho, para afastar os  maus olhados capitalistas.
Mas sucedeu um dia que a mãe de Vermelha de Pimentão, aquela terna camarada Ivanova das Mercês, de quem todos gabavam simultaneamente a ortodoxia e a bondade de trato, faleceu precocemente, vítima de uma indigestão de pêssegos da Crimeia. E, um ano após o triste acontecimento, o pai da pequenina casou-se outra vez, com a ideia de dar uma nova mãe à filhinha. Ora, a nova esposa do presidente da UCP era bem diferente da anterior.
Maria Passionária da Purificação era, certamente, mulher de grande beleza e parecia ser também de impoluta doutrina. Porém, tinha um fundo dissimulado e a este dote menos positivo acrescentava outras qualidades nada agradáveis: tinha uma enorme ambição, era invejosa e, além disso, muitíssimo vaidosa da sua aparente pureza revolucionária - e a vaidade é uma fraqueza burguesa muito feia. Passionária da Purificação herdara-a do pai, que fora lacaio[1] de uns latifundiários de Beja, os temíveis e famosos Netto.
Mas pior ainda: Passionária da Purificação era também, ocultamente, uma obscurantista-revanchista-pequeno-burguesa que se entregava secretamente às detestáveis práticas da feitiçaria. Escondido numa arca, no seu quarto, possuía um espelho mágico que ela consultava diariamente...
Sim, pequenos camaradas leitores: todos os dias, quando o companheiro saía a tratar da governação da UCP, ela trancava-se no quarto, ia buscar o espelho mágico e perguntava-lhe:
- Ó espelho, camarada espelho meu: diz-me se há no mundo mulher mais revolucionária do que eu?
Ao que o espelho, soltando temerosas nuvens de enxofre[2], respondia:
- Camarada, podes ficar descansadinha: das mais revolucionárias és tu a rainha!
Isto dava grande alegria e enorme orgulho a Passionária da Purificação, que ficava assim acalmada nos seus baixos instintos. E nada de mal aconteceu enquanto Vermelha de Pimentão foi pequenina. A madrasta ignorava-a, é certo, porém a menina estava bem guardada e cuidada, no Infantário Bandeira Vermelha, e crescia em graça e em esclarecimento doutrinário, graças aos cuidados e às lições das camaradas amas.
Todavia, o que tinha de suceder sucedeu: Vermelha de Pimentão em breve, em poucos anos, tornou-se uma linda jovem de belas e frescas faces coradas. E além de bela era, também, uma inflamada doutrinária. Tomando a peito a missão de seu pai, empenhou-se activamente na doutrinação da UCP. Foi ela que obteve a colectivização total dos galinheiros e foi também ela que, apenas com onze aninhos, dirigiu a ocupação de várias herdades vizinhas da UCP. Aos cinco anos cantava a Internacional, aos sete recitava, nas festas, os três primeiros capítulos de Das Kapital. Por isso a sua popularidade entre os camaradas cresceu a tal ponto que já todos diziam ser ela a sucessora natural do pai.
E, um dia, quando a madrasta, como sempre, tirou o espelho da arca e lhe perguntou: - Espelho, ó camarada espelho meu, haverá no mundo mulher mais revolucionária do que eu? - o espelho, desta vez, deu uma resposta inesperada e terrível para ela:
- Sinto desagradar-te, camarada Purificação; mas a mais revolucionária é Vermelha de Pimentão!
As fortes paredes do monte tremeram com a fúria da invejosa madrasta, quando ela ouviu isto! As cegonhas que nidificavam no alto de um sobreiro socialista fugiram para terras burguesas! E os próprios sobreiros tremeram.
Mas, como já dissemos, Maria Passionária da Purificação sabia ser tão dissimulada quanto era social-imperialista. E por isso ocultou a razão da sua cólera. Porém, em segredo, mandou chamar um ceifeiro da sua confiança e ordenou-lhe que levasse Vermelha de Pimentão para a orla do Chaparral Perdido e lá a matasse e lhe trouxesse o coraçãozinho da pequena, como prova desta acção politicamente tão incorrecta.
O homem assim fez, levou a menina para o Chaparral Perdido. Porém, não teve coragem para matar Vermelha de Pimentão.
- Que fazer? - perguntava ele a si próprio, usando as imortais palavras de Lenine. E, como invocou Lenine, a verdade surgiu-lhe logo[3]. Quando chegou o momento de cometer o feio acto capitalistico-burguês, ele gritou à criança:
- Vai, Vermelhinha, vai brincar! Vai jogar, Vermelhinha![4] - e em vez de matar a menina matou um borrego ainda tenro e levou o seu coração à péssima madrasta, que o mandou cozinhar em ensopado e o comeu com um prazer diabólico mas falhado, pois no fundo estava a comer o coração errado.
...Nesse mesmo dia, a madrasta foi-se ao espelho e recomeçou com a lenga-lenga decadento-burguesa: - Espelho, ó camarada espelho meu: diz se há no mundo mulher mais revolucionária do que eu!
E para seu deleite imenso, o espelho replicou: - Camarada Purificação: tu és, na verdade, a Miss Mundo da Revolução!
Porém o espelho dizia isto porque ainda não tinha recebido os relatórios do espião que tinha infiltrado no SIS. Na realidade, como sabemos, a linda herdeira da UCP estava viva e bem viva, embora perdida e sem saber voltar para casa.
Vermelha de Pimentão andou, andou através do Chaparral Perdido. E acabou por ir parar à cabana onde viviam os Sete Proletários, que exploravam o Cortiçal Feliz, que em tempos pertencera a um latifundiário que agora vivia em Cascais, onde a mulher dava festas e se queixava de que o país era uma sêca.

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*     *

A jovem viveu feliz com os Sete Proletários. Era, de facto, uma existência pacata e agradável, animada aqui e além por um linchamento, amenizada de vez em quando por uma confraternização com elementos da brigada de caça a corrupto-burgueses da região. E Vermelha de Pimentão tornou-se enfim uma jovem mulher perfeita nas formas e pura nas ideias. E, claro, chegou o dia em que, na sua UCP natal (onde a vil madrasta pusera a correr que ela tinha fugido com um desviacionista da linha Gorby) o espelho mágico respondeu à eterna pergunta desta forma:
- Desculpa lá camarada; a informação anterior estava errada; comeste borrego por enteada. Para lá do Chaparral Perdido, junto ao Cortiçal Feliz e à beira do Caminho Comprido, na cabana dos Sete Proletários alegres e revolucionários, vive Vermelha de Pimentão, que é a czarina da Revolução!
Ah, camaradas leitorzinhos, é impossível descrever a fúria da madrasta! As paredes do monte voltaram a tremer e, desta vez, os ovos das cegonhas ficaram estrelados nos ninhos e a casca dos sobreiros caiu sozinha, já feita em rolhas! De tal modo Passionária da Purificação ficou louca de raiva que partiu o espelho mágico em bocadinhos pequeninos. E quando enfim se acalmou, pôs-se a pensar[5] furiosamente na melhor maneira de eliminar Vermelha de Pimentão.
E para arranjar uma ideia eficaz, do que se lembrou ela? Pois lembrou-se de consultar um sinistro livro proibido, o Manual de Bruxaria Pequeno-Burguesa, que ela tinha escondido sob a capa virtuosa do último Plano Quinquenal. Foi aí que Passionária da Purificação encontrou a receita do terrível Ensopado Mágico e logo se propôs fazê-lo para o dar à sua inocente enteada!
Se mal o pensou, pior o fez. Pela calada da noite, foi à arca frigorífica, tirou de lá uma perna de borrego e foi buscar as patas de rã grávida, os miolos de morcego constipado, os testículos de lagarto, enfim, todos os ingredientes do infernal ensopado, que ela cozinhou numa panela eléctrica enquanto murmurava fórmulas mágicas. Depois, verteu o ensopado numa caixa térmica. Correu então ao quarto e escondeu a caixa debaixo da cama. Logo de manhã, foi ao salão de beleza da vila mais próxima, que era dirigido por uma bruxa sua amiga, e pediu-lhe que lhe desse a aparência da Teresa Guilherme [6]. E partiu em busca do Cortiçal Feliz, montada num aspirador comprado a prestações suaves.
Encontrou a incauta Vermelha de Pimentão sozinha na cabana, ocupada a ler os pensamentos do grande camarada Mao.
- Mas é a camarada D. Teresa Guilherme! - exclamou a pobre jovem, encantada com a visita.
- Dizes bem, camarada! - replicou a madrasta disfarçando a voz. - Venho convidar-te para o meu concurso revolucionário, Não se esqueça da foice e do martelo.
- Oh, que felicidade! - exclamou Vermelha de Pimentão. E começaram logo a conversar.
Pois os camaradas amiguinhos já decerto adivinharam o que sucedeu: a certa altura, a falsa Teresa Guilherme convidou a rapariguinha a partilhar da sua merenda. Vermelha de Pimentão engoliu uma garfada do Ensopado Mágico - e tombou logo, na Sesta Interminável, de que só poderia ser despertada por um encantamento muito especial. Então, Passionária da Purificação reassumiu o seu aspecto normal[7], soltou uma gargalhada capitalista, montou no aspirador e desapareceu nos ares!

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E assim Vermelha de Pimentão foi encontrada pelos Sete Proletários, que logo perceberam que ali havia feitiço, pois a cabana cheirava a enxofre. Imediatamente instauraram um rigoroso inquérito que não deu em nada, após o que choraram abundantemente aquela grande desdita.
Construiram então, ao lado da cabana, um belo mausoléu igualzinho ao de Lenine, embora mais pequeno e modesto, claro está. E lá colocaram Vermelha de Pimentão, sobre um belo veludo encarnado, debruado de foicinhas e martelinhos.
Após esta tocantíssima cerimónia, a vida retomou o seu curso. Mas agora o Cortiçal Feliz já não merecia o seu nome, por isso o rebaptizaram de Cortiçal Camarada Carlos Carvalhas.
E os anos passaram, tristes...

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Mas não chorem, camaradas pequenos leitores. Ora reparem: além, na distância, que coisa é aquela que avança? Sim, é isso mesmo: um tractor, um belíssimo tractor, conduzido por um rapaz desempenado, o camarada Igor Ferreirovich, dirigente da UCP «Paraíso Operário e Camponês»! Ele rola, rola, muito lesto, e pára na orla do Cortiçal Camarada Carlos Carvalhas. O jovem dirigente olha em volta e o que vê?
Vê a cabana dos Sete Proletários e, ao lado, o mausoléu. Pergunta o que é aquilo, contam-lhe a tragédia. Ele chora de emoção, e invoca o pensamento de Kim Il Sung. Logo a inspiração sopra tão forte que o despenteia.
- Conduzam-me até junto da camarada Vermelha de Pimentão! - brada ele aos Sete Proletários, que executam a directiva.
E então, solenemente, perante o corpo de Vermelha de Pimentão adormecida na Sesta Interminável, Igor Ferreirovich ergue bem alto o punho direito e grita:
- Proletários de todo o mundo, uni-vos!
E - oh, prodígio! Logo Vermelha de Pimentão desperta, senta-se, ergue o seu punho delicado e responde:
- Vamos a isso!
Calcula-se o júbilo em todo o cortiçal, que voltou a ser feliz!

Pouco mais resta para contar. Vermelha de Pimentão foi restituída ao pai e casou com Igor, as duas UCP uniram-se numa gigantesca e moderna herdade colectiva. Os Sete Proletários foram viver para perto da sua amiga, integrados numa nova Guarda Vermelha, que ela organizou e que ela própria treinava.
E Maria Passionária da Purificação foi condenada a passar o resto dos seus dias a ver a programação da SIC.


Vitória![8] Vitória! Acabou a história!


FIM


[1] Isto é, feitor
[2] Produto usado em rituais de superstições diabólico-clericalo-burguesas
[3] Também todos os camaradas meninos devem invocar Lenine quando têm dúvidas
[4] Assim nasceu o Jogo da Vermelhinha
[5] Atenção amiguinhos: ninguém deve fazer isto sem licença do Chefe de Secção
[6] Bruxa muito popular nessa época
[7] A melhoria foi nula
[8] Vitória popular

Páscoa - É a altura da renovação. Meus velhos sapatos, tão confortáveis, chegaram ao fim.
 (Desenho esferográfica Bic, sobre papel)

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