Scraperboard A4 |
sexta-feira, 13 de julho de 2012
domingo, 1 de julho de 2012
PEQUENOS TEXTOS
SONHOS DE UMA NOITE DE AGOSTO
O primeiro dia
de Fevereiro começava, lentamente, repousa-damente, a escurecer quando chegou,
vindo da Rua do Arsenal, o «landau» que transportava o infante D. Manuel e o
visconde de Asseca, oficial-mor da Casa Real.
Chegado ao
Terreiro do Paço, o «landau» foi parar junto da entrada da estação fluvial. Lá
dentro, muita gente da Corte, o presidente do Governo, João Franco Castelo
Branco, vários ministros: aguardava-se a chegada do vapor D. Luís. A bordo, viajavam o Rei, a Rainha e o Príncipe Real, que
regressavam a Lisboa, vindos de Vila Viçosa.
D. Manuel
dirigiu-se imediatamente ao general Vasconcellos Porto, ministro da Guerra;
este era, entre os membros do Governo ditatorial de João Franco, um dos poucos
que o jovem infante apreciava — não que isso tivesse qualquer importância para
os mecanismos da política, D. Manuel não tinha voto nessa matéria.
Porém, mesmo
sem voto, o infante estava preocupado e ninguém poderia dizer sensatamente que
sem razão. Poucos dias antes, a 28 de Janeiro, rebentara em Lisboa uma
intentona republicana — isto para já não falar na crescente hostilidade contra
a ditadura, ainda que obviamente temporária, de João Franco. Este, um pouco no
jeito de quem sossega uma criança nervosa, enviara, a 30 de Janeiro, uma carta
a D. Manuel garantindo-lhe que «tudo estava sossegado e não havia nada a
recear».
Essa mesma
inquietação levou o infante para junto de Vasconcellos Porto e este adoptou a
mesma atitude tranquilizadora tomada pelo Presidente do Ministério: tudo estava
bem, nada havia a recear. Confiança que não era partilhada pelo coronel
Correia, oficial da polícia, que insistia sobre o perigo de não ter sido
montado um dispositivo especial de segurança, mas João Franco varreu secamente
esses receios, meteu o coronel na ordem.
No exterior,
outra voz apreensiva se ouvia: era o tenente-coronel
Alfredo de Albuquerque, conversando com o conde de Sabugosa e com o capitão
Roçadas, recente herói das campanhas de África. Apontando a carruagem aberta
que esperava a família real, desabafava:
— Eu queria que viessem automóveis, mas
El-Rei telegrafou-me de Vila Viçosa… prefere viajar em «landau» aberto…
Entretanto, o D. Luís aproximava-se, vencendo o Tejo.
Quarenta
minutos mais tarde, os viajantes reais desembarcavam, El-Rei envergando o
uniforme de generalíssimo. D. Manuel adiantou-se para abraçar os pais e o
irmão, depois foi a breve cerimónia dos cumprimentos, seguida de alguns minutos
de conversas soltas em que, inevitavelmente, o principal tema era a intentona
do dia 28. Discretamente, o visconde de Asseca — a quem o infante, durante o
trajecto para o Terreiro do Paço, voltara a falar dos seus receios —
aproximou-se de El-Rei, perguntou-lhe se não preferiria, afinal, viajar para o
paço em automóvel. Mas D. Carlos estava decidido. Seria a carruagem aberta,
para que todos vissem a família real, para que se soubesse que ninguém tinha
medo. E acrescentou, num murmúrio que só o visconde pôde ouvir:
— Eu não durmo,
Salvador; trago sempre a minha arma carregada.
*
Este
Primeiro Sonho ganha ritmo, passa a momento presente…
Exterior. Terreiro do Paço. A carruagem
aberta avança. D. Carlos dá a direita a D. Amélia; em frente do par real, os
filhos. O Rei mantém a mão direita no bolso do capote, onde guardou o seu Smith
& Wesson de calibre 32. Tal como o filho mais novo, também respira naquele
ar da tarde uma ameaça indefinida.
A carruagem roda. O infante olha, distraído,
para a estátua de D. José — e vê, sem acreditar, um homem sombrio, de cerrada
barba negra, de gabão negro, que ele abre para mostrar uma carabina… «que má
brincadeira», pensa D. Manuel, antes de compreender.
E agora, tudo se precipita. O infante vai
falar, mas não tem tempo: o homem deixou passar o «landau» real e depois,
rápido, chega-se à frente, põe um joelho em terra e dispara — ao mesmo tempo,
do outro lado, um rapaz adianta-se, de pistola em punho, salta para o estribo
da carruagem e dispara também…
Mas o Rei, embora ferido nas costas, vira-se
para trás, responde ao fogo do homem da carabina enquanto D. Luís Filipe, que
também vem armado, se levanta, empunhando o seu Colt, e dispara sobre o segundo
pistoleiro. Este logrou atingir o Príncipe Real, mas, cedendo ao impacto das
balas recebidas, cai do estribo, tomba por terra e é acabado, a tiros e golpes
de sabre, pelos elementos da polícia que rodeiam o «landau». Entretanto, D.
Luís Filipe, amparado por D. Manuel, desaba sobre o assento, com o peito
ensanguentado. A Rainha, que numa primeira explosão gritara «Infames!
Infames!», tenta agora socorrer o marido. D. Carlos sangra abundantemente, mas
consegue murmurar:
— Manuel… que não o matem!
O infante compreendeu. Debruçando-se por cima
do irmão, que desmaiou, grita ao tenente Figueira, que vibrara já uma
espadeirada no assassino do capote:
— Tenente! Não mate o homem! Ordem de el-Rei!
Ordem difícil de cumprir, porque o criminoso,
embora ferido, ainda empunha a arma; porém, o oficial não só ouviu a ordem: tal
como o infante, entendeu-lhe também a razão. Fere ainda o inimigo, mas cuida
para que o golpe não seja mortal. Com um pontapé faz voar a carabina. E grita
aos seus homens: apanhem-na e guardem-na bem. E arranjem um médico, este
miserável tem de sobreviver.
Já a carruagem real se afastou, levada pelo
galope dos cavalos. D. Amélia grita ao cocheiro, o leal Bento Caparica:
depressa, para o Hospital da Estrela.
Mas, na Rua do Arsenal, ouve-se mais um tiro e agora a vítima é o
infante D. Manuel, ferido no braço direito. O marquês de Alvito, que segue na
segunda carruagem, grita:
— Bento, para o Arsenal! Para o Arsenal!
E, apesar de também ter recebido uma bala,
Bento Caparica, ouvindo aquele grito, chicoteia furiosamente os animais. O
Arsenal está ali mesmo, em menos de um minuto passam o portão.
*
Arsenal.
El-Rei e o Príncipe Real estão estendidos em
macas de ferro, cobertas com lençóis improvisados. Os médicos observam-nos: já
ali se encontram vários, mas destacam-se o Dr. Moreira Júnior e o Dr. António
Lencastre.
Abriu-se um espaço para que possam observar
os feridos com a necessária serenidade profissional. A alguma distância, D.
Amélia, ansiosa, murmurando orações, não tira os olhos do marido e do filho
mais velho. Quanto ao infante D. Manuel, o ferimento sofrido e o choque do
atentado tiveram nele um efeito entorpecente. Levam-no para a Sala do Inspector,
onde a sua ferida será tratada. Enquanto caminha, quase com um autómato, ele vê
passar, apressadamente, João Franco, na companhia de Vasconcellos Porto e de
Aires de Ornelas, ministro da Marinha: dirigem-se para a Sala da Balança, vão
telefonar, a ordenar providências urgentes.
Afrontando o choque e o ferimento, o jovem
endireita-se à vista do chefe do Governo; bem gostaria de o cobrir de
recriminações, porém este não é o momento, há algo bem mais urgente. E chama:
— Senhor Presidente, uma palavra!
A turva expressão de João Franco torna-se
ainda mais carregada: não tem tempo para ouvir aquela criança! Mas enfim, a
criança tem dezoito anos e é infante de Portugal. Aproxima-se, contrariado,
invocando já a sua urgência…
— É justamente uma urgência: quando tombou
ferido, el-Rei meu pai ordenou — ordenou,
digo bem — que fosse poupada a vida do miserável que disparou sobre ele. É
muito importante que lhe tratem os ferimentos. Esse homem terá de confessar
quem foram os mandantes do atentado. Peço-lhe que dê instruções à polícia e que
seja esta a sua primeira providência.
A criança, afinal, tem razão. João Franco
baixa a cabeça, num gesto que é anuência e saudação ao infante. Depois,
afasta-se a toda a pressa. Quando o vê pelas costas, D. Manuel sente-se de novo
invadido pelo entorpecimento e deixa-se levar, para ser examinado e tratado.
Junto das macas onde jazem D. Carlos e D.
Luís Filipe, os médicos ministram aos feridos os primeiros cuidados; ainda é
cedo para avaliar sobre o estado de el-Rei, apenas se sabe que vive; o caso do
Príncipe Real, embora ele tenha sido gravemente atingido, justifica mais
esperanças. É isto o que D. João de Lencastre, um dos médicos presentes, diz à
Rainha. Mas, acrescenta, mesmo no caso de el-Rei, não há que desesperar.
Entretanto, urge transportar sua majestade e sua alteza real para lugar mais
confortável e propício às intervenções cirúrgicas de que necessitam, agora que
as medidas inadiáveis foram tomadas.
O Dr. Moreira Júnior indica o Hospital da
Estrela, aliás já para lá foi enviada mensagem telefónica a dar as primeiras
ordens. O seu colega, D. João de Lencastre, concorda. Mais tarde, acrescenta,
logo que possível, quando não haja perigo, sua majestade e sua alteza real
serão transportados para o paço das Necessidades…
Uma voz firme, autoritária, interrompe-o:
— Não! Para a Ajuda!
É a Rainha mãe, D. Maria Pia. Tinham
telefonado para o paço da Ajuda, a sua residência, a dar a notícia. E a velha
senhora ali está, mais cedo do que todos esperavam, mostrando a sua energia
indómita.
— Quando for possível, o meu filho e o meu
neto irão para a Ajuda! — repete. E, dirigindo-se à nora, acrescenta: — Minha
filha, peço o seu apoio. Se me tivessem ouvido mais cedo…!
Todos sabem ao que se refere a Rainha mãe: o
paço das Necessidades tem fama de ser maldito. Superstição, certamente, mas é
verdade que D. Maria II ali perdeu o seu primeiro marido, Augusto de
Leuchtenberg, dois meses após o casamento; ali perderia, logo no parto, três
dos seus filhos; ali viveria um reinado agitado por constantes convulsões; ali
morreria com 34 anos somente. Depois, no mesmo paço, viveria D. Pedro V o seu
breve romance com D. Estefânia — um ano durara o casamento e o próprio Rei
viria a falecer aos 25 anos de idade. Tão sinistra era a reputação das
Necessidades, ao cabo de tanta desgraça, que o povo de Lisboa fora em romaria
pedir ao novo Rei, D. Luís I, que abandonasse o malfadado paço. E o Rei fizera
a vontade ao povo, transferira-se para a Ajuda. A sua viúva, Maria Pia, não
esqueceu a tradição popular. D. Amélia tenta acalmar a sogra, diz-lhe que
haverá tempo para ponderar a questão.
Mas D. Maria Pia não se acalma porque, nesse
momento, surge João Franco. A velha Rainha cresce para ele e a sua voz
eleva-se, com o cortante de um chicote:
— A sua obra, senhor Presidente! — diz ela,
apontando as macas.
João Franco, abalado por aquele ataque, não
tem palavras para responder. E a Rainha mãe acrescenta:
— Já o acusaram de ser o coveiro da
Monarquia. Agora, acuso-o eu. Se o meu filho e o meu neto morrerem, o senhor
será o assassino!
Uma vez mais, D. Amélia tenta acalmar a sogra
— não que o Presidente do Ministério lhe mereça grande consideração, mas aquela
cena é pouco digna.
Lá fora, a noite cai.
*
Hospital Militar da Estrela.
Cortesãos, oficiais, altos funcionários, membros
do corpo diplomático, todos contidos a uma distância conveniente, excepto
alguns, mais íntimos da família real, entre eles o conde de Tattenbach,
ministro da Alemanha em Lisboa.
A junta médica pronunciou-se e o Dr. D.
António de Lencastre vem dar conta à Rainha: o estado de el-Rei é estacionário
e o nosso prognóstico é ainda reservado, mas, por mim, sinto-me optimista.
Quanto ao Príncipe Real, podemos considerá-lo fora de perigo imediato.
É ainda pouco, mas é um alívio. D. Amélia
vira-se para o filho mais novo, que ouviu as notícias a seu lado, e diz-lhe,
com carinho, porém com firmeza: ele representa agora a família, é uma pesada
responsabilidade.
O moço reage imediatamente. Ele próprio teve
já tempo para fazer aquela mesma reflexão.
— Estou pronto, minha querida mãe. Parece-me
que, antes de mais, tenho duas coisas a fazer. A primeira é visitar o tenente
que dominou aquele homem horrível, o da barba negra. Vi, na altura, que também
foi ferido. Há-de estar neste mesmo hospital, certamente…
A Rainha aprova e diz que ela própria irá
visitar o tenente Figueira, mais tarde.
— … A segunda coisa, minha mãe, será para mim
um sacrifício, quando devia ser um grande prazer: como sabe, estreia-se em São
Carlos uma ópera de Wagner, Tristão e
Isolda, e todos nós iríamos assistir…
— Sim, mas tudo já foi cancelado, por ordem
do Governo! Naturalmente!
A vinte metros de distância encontra-se João
Franco, rodeado de vários ministros. D. Manuel dirige-se a ele, falando num tom
friamente cortês:
— Senhor Presidente, sua majestade a Rainha e
eu próprio lhe solicitamos que anule a ordem de cancelamento dos espectáculos
públicos. Pela minha parte, irei a São Carlos, peço-lhe que mande a polícia
tomar providências.
O ditador olha-o com estranheza.
— Senhor infante, as circunstâncias…
Mas D. Manuel interrompe-o:
— As circunstâncias exigem que se ponha cobro
aos boatos que hão-de circular por Lisboa. Sua majestade el-Rei e sua alteza
real estão vivos, graças a Deus… e apenas a Deus, pois aquele Terreiro do Paço
estava deserto, não havia nenhuma providência. É preciso que todos saibam que
el-Rei vive, que o Príncipe Real também.
— Senhor infante, a notícia já foi publicada.
Peço a vossa alteza que…
— Estou certo de que tal seria a vontade de
el-Rei meu pai, se ele estivesse consciente.
Sem mais, D. Manuel vira-lhe as costas e
volta para junto da Rainha. Esta, que o olha com ternura, diz-lhe:
— Meu filho, que eu não seja obrigada a sair
daqui. É minha intenção passar a noite no hospital, aliás já pedi que me
arranjassem um quarto. Se mais nada houvesse, um canto, uma simples maca, me
bastariam por esta noite. Hoje, não seria capaz de voltar ao paço, nem de sair
daqui…
Uma voz se interpõe:
— Irei eu a São Carlos, com o meu neto!
Mãe e filho não se tinham dado conta da
proximidade de D. Maria Pia, que ouvira a conversa. O infante olha com
admiração a sua avó, que se mantém muito direita, de cabeça levantada.
*
Derradeiros acordes do Hino da Carta. Uma
trovoada de aplausos quase faz tremer as paredes do teatro. Tal como sucedeu à
entrada do edifício, com os populares que, mordidos pela curiosidade,
observavam a chegada do automóvel, também agora os burgueses e os aristocratas
que enchem a sala se comovem estranhamente ao ver no camarote real o jovem
infante, pálido, com um braço ao peito, tendo a seu lado a velha Rainha mãe,
que parece protegê-lo. É um momento único, este, em que são postas de lado
diferenças de opinião, críticas, ódios partidários, até mesmo indiferenças. Um
momento em que aquele rapaz de dezoito anos se torna o filho de todas as
mulheres maduras que estão na sala, o noivo ferido de todas as raparigas.
Longos minutos decorrem. Enfim, ouvem-se os
primeiros acordes do prelúdio do primeiro acto de Tristão e Isolda.
Fiel ao seu sangue Bragança, D. Manuel é um
melómano — ainda ontem, tocou a quatro mãos, com o seu mestre Alexandre Rey
Colaço, o Septuor de Beethoven. A
estreia em Lisboa de Tristão
entusiasmou-o, encheu-o de alegre expectativa. No entanto, agora, é incapaz de
se concentrar na música de Wagner. O trauma violento regressa, em
retrospectiva. Primeiro, tomam conta dele as memórias daquele dia de terror;
revive todos os momentos, todas as emoções. E depois da angústia passada, é
assaltado por uma angústia presente: o pai e o irmão, em que estado os
encontrará quando, finda a récita de gala, voltar ao hospital?
Só então, mas com muita força, a sua mente
formula, com mortal nitidez, o princípio de uma equação cujo resultado ele
teme: «O meu Pai é el-Rei de Portugal; o Luís Filipe é o herdeiro da coroa.
Ambos feridos, com gravidade. Eu…»
Neste ponto e neste momento, invisível e
insensível para todos, começa, sob a música trágica e contida de Tristão e Isolda, começa, no espírito do
infante D. Manuel, um processo de alquimia espiritual que virá a mudar toda a
história de um país e do seu povo.
Ele espera ainda que não lhe seja exigido
desempenhar o papel para o qual já se prepara. Mas sabe que tem de estar
pronto.
E esperança despedaça-se, a confirmação é-lhe
revelada logo que reentra no Hospital Militar, sempre na companhia da avó, que
se recusou a recolher-se à Ajuda.
Durante a sua ausência em São Carlos, várias
coisas ocorreram: descomposto e desorientado, chegara ao hospital o infante D.
Afonso, irmão de el-Rei, que saíra de Lisboa nesse dia. D. Carlos recobrara a
consciência durante alguns momentos, trocara algumas palavras, não muito
coerentes, com o irmão e com João Franco, depois adormecera sem chegar a dizer
ao Presidente do Conselho quem desejava que assumisse a Regência — o que era
frustrante, porque João Franco esperava secretamente que fosse possível, por
uma indicação directa do Rei, tornear os princípios estabelecidos e atribuir a
chefia provisória do Estado ao infante D. Afonso.
Nessa altura, D. Amélia encontrava-se à
cabeceira do Príncipe Real. D. Luís Filipe estava consciente, embora torturado
por violentas dores. Instantes mais tarde, João Franco apresentava-se no
quarto. A conversa que manteve com a Rainha e com o Príncipe foi breve mas
muito concreta e decisiva.
Assim, agora que D. Manuel entra no hospital,
o Presidente do Conselho vem ao seu encontro e curva-se numa vénia que, nota o
infante, é desusadamente profunda e formal.
— Senhor D. Manuel, tenho a alegria de poder
dizer que sua majestade se encontra tão bem quanto é possível esperar, dada a
situação, e que sua alteza real vencerá sem dúvida esta crise, segundo dizem
todos os médicos. Entretanto…
João Franco faz uma pausa, respira fundo e
termina:
— … Entretanto, el-Rei e o Príncipe terão sem
dúvida uma recuperação lenta, pelo que vossa alteza deverá, a partir de hoje,
assumir a Regência.
Paço das Necessidades.
Resistindo delicadamente às objurgatórias de
D. Maria Pia, que quer absolutamente ver toda a família na Ajuda, D. Manuel vem
passar aqui o resto da noite Mas, ao chegar, não se retira para os seus
aposentos. À saída do hospital, pediu a João Franco — não já como simples
infante mas como regente do Reino — que fosse ter com ele ao paço, depois de
convocar os altos responsáveis da polícia. E quando o chefe do Governo lhe fez
notar o adiantado da hora, D. Manuel olhou-o fixamente e baixou a voz para
dizer com uma terrível secura:
— Senhor Presidente, dormiu-se bastante
durante todo o dia, para que sucedesse o que sucedeu. Agora, é tempo de
acordar. Se o regente pode passar a noite em branco, as autoridades também
podem.
Provisoriamente só, na sala que escolheu como
gabinete de trabalho temporário, D. Manuel senta-se num canapé e ajeita o braço
ferido, que lhe dói.
Para já, as medidas urgentes, que tem de
arrancar a João Franco. Afinal de contas, tudo o justifica: a tragédia e o
próprio facto de se estar em período de ditadura, com a ordem constitucional
suspensa.
Mas este período não pode durar. É preciso
resolver tudo rapidamente. E depois, é preciso tempo. Neste momento, o bem mais
precioso.
Os médicos e a sua própria intuição lhe dizem
que a recuperação do Rei seu pai será lenta, na melhor das hipóteses. Mas tem
esperança de poder falar em breve com o irmão.
Tempo, preciso de tempo.
*
— Trouxe estes primeiros relatórios para
vossa alteza real…
Simplesmente «alteza», corrige D. Manuel, com
os olhos postos nas folhas de papel. O Príncipe Real está vivo, graças a Deus.
Lê a primeira folha enquanto o graduado da
polícia engole em seco:
Alfredo
Luís da Costa, 23 anos, natural de Casével. Profissão, caixeiro. Trabalhou nos
Grandes Armazéns do Chiado. Ocupação à data da morte, desconhecida. Solteiro,
com uma irmã mais nova a residir em Casével. Suspeito de filiação na
Carbonária.
— Portanto, este foi o que morreu… — murmura
D. Manuel. — E o outro…
Manuel
José dos Reis da Silva Buíça, 32 anos, natural de Bouçais. Professor, antigo
sargento do Exército, atirador de 1ª classe. Viúvo, com dois filhos a cargo de
familiares. Vive só, com poucas ou nenhumas relações.
O regente levanta a cabeça, encara os homens
que tem na sua frente, entre os quais está João Franco, que ele não convidou a
sentar-se.
— Este homem, o Buíça, tem de falar — declara
D. Manuel. — Não quero mártires, meus senhores; mas ele tem de falar. Agora,
desejo ficar a sós com o senhor Presidente do Conselho.
Continua a não convidar João Franco a
sentar-se, porém ele mesmo se levanta. E quando o chefe do Governo esboça o
início de um discurso, interrompe-o:
— João Franco, nunca duvidei, e não duvido,
das suas boas intenções, do seu patriotismo ou da sua lealdade a el-Rei meu
pai. O que vou pedir-lhe demonstra, justamente, esta minha afirmação. De
momento — e espero que concorde comigo — todos os seus recursos, toda a sua
energia, toda a sua inteligência devem aplicar-se mais como ministro do Reino
do que como Presidente do Conselho, e é providencial que já esteja acumulando
as duas funções. Com efeito, é preciso que, com grande rapidez, se deslinde o
essencial da conspiração e sejam conhecidos os responsáveis. É isto o que eu
lhe peço, de todo o coração. O tempo urge.
*
«Tempo, preciso de tempo.»
Paço das Necessidades, 5 de Fevereiro.
O regente de Portugal ainda não voltou ao
Hospital da Estrela, apenas se manteve informado, pelo telefone, do estado de
saúde do Rei e do Príncipe Real. Entre o pessoal doméstico das Necessidades,
começa a avolumar-se a lenda de que sua alteza não dorme desde o atentado,
porque, exceptuando o seu criado particular, que não fala, vêem o infante
sempre acordado, sempre vestido.
D. Manuel interrompeu os estudos. A Escola
Naval, a que se destinava, terá de esperar. Às seis da manhã e às cinco da
tarde, faz exercícios físicos durante uma hora. Tem recebido, consoante as
necessidades mais prementes, o Presidente do Conselho, oficiais da polícia,
membros do corpo diplomático. Mas o restante tempo, consome-o a ler e a
escrever — apontamentos febris, em folhas soltas, que ele guarda depois num
cofre de segredo. Quanto às leituras, não são romances. São relatórios,
estudos, panfletos, documentação diversa pedida a todos os Ministérios.
Neste dia 5 de Fevereiro, a sua leitura é
interrompida pela chegada do Presidente do Conselho, que ele convocou. Desta
vez, D. Manuel esboça um sorriso cordial, convida o chefe do Governo a
sentar-se e inicia imediatamente a conversa:
— Meu caro João Franco, devo agradecer-lhe a
sua rápida actuação.
É um preito justo. Durante os três dias
anteriores, usando das suas competências como ministro do Reino, João Franco
sacudiu a apatia geral, pôs as autoridades a funcionar. Buíça falou, vários chefes
da Carbonária estão agora presos, bem como altas personalidades do partido
republicano. Nos seus traços essenciais, a conspiração foi posta a descoberto.
O presidente do Ministério aceita como merecido o agradecimento do regente e
tira da sua pasta um documento enquanto explica:
— Trago a vossa alteza um novo decreto, que
vem completar o de 31 de Janeiro, assinado por sua majestade el-Rei. Este
invoca a qualidade de «crime militar» para o vil atentado…
D. Manuel interrompe-o:
— João Franco, eu não posso assinar esse
decreto, e não apenas porque ainda não posso escrever, com este meu braço
ferido. O atentado contra a família real foi um acto hediondo e todos os
responsáveis hão-de, espero eu, ser punidos com a maior severidade. Pelos
tribunais. O crime foi, a meu ver, uma verdadeira tentativa de parricídio, mas
não foi um crime militar, porque nem mesmo o Buíça estava ainda no Exército.
Confesso-lhe que, pessoalmente, bem gostaria de ver esse homem horrível
fuzilado ou enforcado. Mas não posso. Ambos sabemos que a pena de morte foi
abolida em Portugal, pelo Acto Adicional de 1852 e pela reforma de 1867. Isto
leva-me ao assunto essencial desta nossa conversa…
O infante marca uma pausa e prossegue:
— Disse-lhe já não duvidar das suas intenções
nem da sua lealdade. Aceito que o tempo que governou em ditadura talvez
parecesse essencial — pareceu-o, certamente, a el-Rei meu pai — para acalmar o
país e fazer reformas muito necessárias. Mas a verdade é que os resultados
foram desastrosos. E a imprevidência mostrada no passado dia 1 é imperdoável.
Estes e outros motivos levam-me a pedir-lhe, meu caro João Franco, que sirva
uma vez mais o País e el-Rei pedindo a sua demissão e a do seu Governo.
*
Hospital.
— Meu querido pai… demiti o João Franco.
D. Carlos, mantendo os olhos fechados, emite
um som indefinido.
— Quem nomeaste?
— O almirante Ferreira do Amaral.
Aconselhei-me com o José Luciano de Castro e reuni-me com o Conselho de Estado.
O Amaral está a formar um governo de acalmação, concentrando progressistas e
regeneradores. A ditadura terminou.
«Oxalá a febre não lhe suba».
Mas D. Carlos abre os olhos e sorri.
— Tu és o regente.
O médico — é D. António Lencastre — intervém:
— Com perdão de vossa alteza… el-Rei deve
repousar, agora.
TERCEIRO
Paço da Ajuda. Dezembro de 1908.
Os dois príncipes, sem testemunhas.
Amanhã, D. Luís Filipe assumirá oficialmente
a Regência. Retirado em Sintra, D. Carlos convalesce lentamente, ainda sujeito
a longos momentos de fadiga.
Os dois irmãos falam sem atender ao
protocolo.
— É pouco menos que um milagre, Manuel. Não:
é um verdadeiro milagre. E és tu o santo milagreiro. Conta-me, diz-me!
O infante sorri. Apesar da sua juventude,
deixaram-lhe marcas fundas, estes meses de Regência.
— Os pormenores estão neste documento, que
preparei para ti. O que posso dizer? Naquele dia horrível, o primeiro de
Fevereiro, uma coisa, sobretudo, me ajudou: saber que o nosso pai e tu mesmo
estavam vivos. O choque e o desgosto da vossa morte ter-me-iam paralisado,
julgo eu, pelo menos durante os primeiros dias… quem sabe? Enfim, pensei então:
será mais fácil ser regente do que Rei. Nestes primeiros momentos, poderei
fazer coisas que el-Rei não poderia ou deveria fazer. É verdade que usei o João
Franco para as primeiras providências e depois, logo que pude, livrei-me dele.
D. Luís Filipe afasta João Franco com um
gesto.
— Do que eu falo, é desta nova atmosfera que
se respira. Não sei se me entendes…
— Entendo. E é importante que me ouças,
porque muita coisa não deve ficar escrita.
Em termos concisos, sem grandes tiradas, o
infante explica: logo que assumiu a Regência, passou noites a fio a estudar a
situação. Concluiu que, para além de muitas reformas a fazer, faltava algo de
essencial: os partidos monárquicos já não tinham ideais, nem doutrina, nem programa.
Os políticos, com raras excepções, estavam gastos e, enrodilhados na luta pelo
poder, mostravam-se indiferentes às necessidades do País. Como regente, ele não
podia intervir, tinha de respeitar as limitações constitucionais. Mas podia,
sim, tentar lançar novas ideias, procurar dar força a gente mais nova, a gente
diferente.
Dois homens, entre vários outros, tinham
respondido ao seu apelo: um, o velho Ramalho Ortigão, quer recrutando
jornalistas e escritores mais novos, quer desenvolvendo, lançando em papel e
publicando as ideias que ele mesmo, D. Manuel, lhe transmitira: no fundo, uma
concepção renovada de monarquia. Que era, afinal, um retorno às origens,
guardadas as óbvias distâncias: o pacto, o compromisso entre o povo e o
monarca, a responsabilidade deste como garante da liberdade («Nós somos livres,
o nosso Rei é livre!»).
— Deus sabe as noites que passei a escrever
notas que depois entregava ao Ramalho! Devemos-lhe muito, a ele e a outros
cujos nomes te entregarei, numa lista. Hoje, podemos falar num novo pensamento
monárquico. Mas isto, evidentemente, não chegava. Era preciso fazer mais, no
campo dos partidos. Sobretudo porque, de facto, faltava uma voz essencial nas
Cortes…
Essa voz, prossegue o infante, era a dos
operários. Ou seja, a voz dos socialistas. E aqui fora vital o auxílio de
Alfredo Aquiles Monteverde.
— Tens de falar com o Monteverde, Luís.
Conseguiu a colaboração do Azedo Gneco, apesar das tendências republicanas que
ele tem… tinha. Este trabalho não está acabado, evidentemente, há muito que
fazer. Mas há já o apoio dos operários do arsenal da Marinha. Ouve: é preciso
conseguir o apoio do Governo para as propostas feitas pelo Léon Poinsard…
— A quem tu pagaste, do teu bolso, para vir a
Portugal! — exclamou D. Luís Filipe.
— Era uma das grandes urgências. Para lutar
contra a pobreza, precisávamos de estudos rigorosos… mas é preciso que o
Governo se interesse. E há também os projectos de assistência da nossa mãe. É
preciso juntar todos os esforços, todas as boas vontades…
D. Luís Filipe ergue-se e vai abraçar o
irmão.
— Manuel, não sei que títulos e condecorações
te dê para…
Nada disso, responde o infante. Mete bem na
cabeça que tens de assumir tudo o que de bom se tem feito e venha a fazer. É
muito importante. Vê, tenho aqui a lista daqueles que mais me têm apoiado.
Esses sim, devem ser ouvidos e recompensados. Temos o Ramalho, o António
Cândido, o Soveral, o Sabugosa, o Monteverde, claro…
— E tu, Manuel?
— Eu? Perdi um ano de preparação para a
Escola Naval, agora tenho de recuperar…
O novo regente abana a cabeça em negativa.
— Preciso de ti. Ao pé de mim.
QUARTO
Agora
o sono torna-se mais tranquilo, a respiração mais lenta e fácil…
Em 1930, Portugal festejou, simultaneamente,
o primeiro aniversário da nova Constituição, que viera substituir a Carta, e o
vigésimo aniversário da aclamação de el-Rei D. Luís II. Seu pai, D. Carlos I,
falecera em 1915, mas abdicara do trono cinco anos antes, por razões várias,
sendo que a mais importante fora o profundo abalo que o atentado de 1908 causara
à sua saúde.
No dia seguinte ao dos festejos, o Rei e o
seu irmão D. Manuel, agora Príncipe Real, já que D. Luís e D. Isabel Maria
ainda não tinham descendência, passeavam juntos, depois do almoço, no parque da
Pena. Os dois irmãos rememoravam aqueles vinte anos, as horas difíceis e os
momentos de felicidade. Um período de tensão constante fora o da Grande Guerra,
em que tanto o monarca como o seu irmão se tinham visto obrigados a
desdobrar-se em esforços oficiosos, discretos mas (felizmente) eficientes, para
apoiar o Governo de coligação, que, com o total acordo do Rei e do Conselho de
Estado, queria manter o País neutral. Portugal precisava desesperadamente da
paz para consolidar a sua economia. O grande problema residia nos apetites
coloniais do Império Alemão e do Império Britânico; jogar ao mesmo tempo com
relações e simpatias nas cortes de Londres e Berlim não fora fácil.
— Enfim, dobrámos esse cabo! — concluiu D.
Luís. — E também conseguimos atravessar a crise das grande reivindicações.
Graças, no fundo, às tuas ideias. Sem elas, nunca o Partido Trabalhista seria o
que é hoje.
Mesmo a sós com o seu irmão e Rei, D. Manuel
preferiu mudar de assunto. A sua intervenção não devia ficar na História,
pensava.
— Hoje, o que me preocupa — disse então — é o
Sr. Mussolini. Ou melhor, as suas ideias, que já cá chegaram…
— Bem sei: o Oliveira Salazar — replicou D.
Luís. — Mas, a meu ver, falta-lhe… fogo. E os nacional-corporativos não têm
sequer representação nas Cortes.
No seu passeio, tinham chegado a um pequeno pavilhão
octogonal e sentaram-se em bancos de madeira que ali havia.
— Tenho estado a pensar… disse D. Manuel. —
Não achas que é tempo de fazermos uma reconciliação familiar?
— ?
— Refiro-me ao nosso primo Duarte Nuno. E às
irmãs, claro. Não é só uma questão familiar, bem sabes. É uma questão de
Estado. Infelizmente, estamos os dois na casa dos quarenta e ainda não temos
filhos. Às vezes, pergunto-me se a nossa saudosa avó não tinha razão ao falar
da «maldição» do paço das Necessidades.
Fez-se um silêncio pesado, triste. Por fim, o
Rei murmurou:
— Mas ainda não somos velhos!
D. Manuel emitiu um breve riso.
— Estás casado há dezanove anos, eu há
dezassete. Nem a Rainha nem a Vitória Augusta engravidaram uma só vez. Temos de
pensar no futuro; e a melhor maneira de evitar discussões e intrigas sobre a
sucessão é torná-la desde já transparente.
D. Luís reflectia.
— Que idade tem o moço? — perguntou.
— Vinte e três anos.
O Rei fez «hmmm», sem se comprometer ainda.
— É urgente, sabes? — insistiu D. Manuel. —
Eles têm de vir, têm de perder o sotaque austríaco, têm de ser aceites pelo
povo. Isso leva algum tempo.
— Mas…
— Promete-me que pensas no assunto.
QUINTO
No dia 23 de Dezembro de 1945, no paço real
da Ajuda, el-Rei D. Luís II aguardava o Presidente do Conselho, que tardava. A
irritação desse atraso (que sabia propositado) pôs o envelhecido monarca num
estado de espírito melancólico e, quando assim acontecia, tornava-se mais viva
a saudade do irmão, cuja fotografia mantinha na sua secretária, ao lado do retrato
da Rainha, essa, felizmente, bem viva. D. Manuel falecera inesperadamente em
1932. E, para além da mágoa, para além da saudade, o Rei sofria com a falta dos
conselhos sensatos do irmão. Um dos derradeiros, que ele abençoadamente
seguira, fora o de reconciliar os dois ramos da família. Príncipe Real desde a
morte de D. Manuel, D. Duarte Nuno, já completamente adaptado a Portugal,
mostrara-se muito hábil durante toda a guerra. E, ao casar-se com uma princesa
do Brasil, descendente de D. Pedro IV, mostrara também um grande senso
político. A Casa de Bragança reunificara-se. Findas as tricas sucessórias.
— Meu senhor, chegou o senhor Presidente do
Conselho.
— Ah.
*
— … É, pois, com muita alegria e muito gosto
que lhe comunico a decisão que tomei de lhe conferir a grã-cruz da Ordem de
Cristo e de o nomear Duque de Salazar e par do Reino.
O breve discurso não pareceu alegrar o chefe
do Governo, bem pelo contrário.
— Peço perdão a vossa majestade, mas não
será, digamos, prematuro? E o Conselho de Estado…
O Rei e o Presidente do Conselho entendiam-se
bem na sua mútua antipatia.
— O Conselho de Estado, evidentemente, foi
ouvido… uma pena que o meu caro Presidente não tenha podido assistir, devido,
sem dúvida, uma vez mais, aos seus compromissos… enfim, o Conselho de Estado
deu a mais entusiástica aprovação.
Silêncio. Depois:
— É o tempo certo, Sr. Prof. Oliveira
Salazar. A guerra acabou, os Aliados venceram. É tempo de reentrar em vigor, plenamente, a Constituição de 1929. E é
evidente que se torna politicamente inevitável a realização de eleições gerais.
Gostaria de receber o seu pedido de demissão ainda hoje.
(«Para não te dar tempo de manobra!»)
Mal o Presidente caído em desgraça saiu do
gabinete de despacho, uma outra porta se abriu silenciosamente e entrou, envergando
grande uniforme, o brigadeiro Craveiro Lopes. O Rei saudou-o com um sorriso,
ele fez uma vénia.
— Está feito, meu caro Francisco.
— E eu posso comunicar a vossa majestade que
todas as unidades em Lisboa e no Norte se encontram de prevenção, para o que
der e vier.
D. Luís II levantou-se, deu alguns passos
para aliviar as dores que sentia na coluna.
— Bom. Convém mantê-lo sob discreta
vigilância, até às eleições. Depois, será a responsabilidade do Governo que
delas sair. Outra coisa, Francisco: será bom vigiar também esses jovens
pró-fascistas, os Milicianos Católicos. Sobretudo o chefe, esse Álvaro Cunhal…
é perigoso, porque é muito inteligente e porque é um fanático. E tem uma
aliança com os nacional-corporativos do Salazar. Infelizmente, ainda é novo de
mais para ser nobilitado e feito par do Reino…
SEXTO
Paço da Ajuda, Junho de 1957
El-Rei D. Duarte II terminou o despacho, o
Presidente do Conselho retirou-se há pouco. D. Duarte recosta-se na cadeira e
esfrega os olhos, cansado. Subitamente, um dos telefones que estão sobre a
secretária começa a tocar e o soberano pega no auscultador, ouve a voz do seu
secretário particular:
— Senhor D. Duarte, sua alteza a senhora
infanta D. Maria Adelaide deseja falar com vossa majestade.
— Muito bem, pode passar a chamada — responde
o Rei, que ao mesmo tempo sorri e pensa: «Aí está a ala esquerda da família!»
Os meios mais reaccionários já chamaram a D.
Maria Adelaide «a infanta vermelha». Das poucas vezes que vem ao paço, é como
se entrasse uma lufada de ar fresco.
— Mano Duarte?
A infanta vai directamente ao assunto, como
sempre. Terá ele lido um relatório sobre a Conferência de Bandung? D. Duarte
replica: sim, a conferência realizou-se há dois anos e já leu… mas a irmã, sem
muita cerimónia, interrompe-o:
— Eu só agora li. E acho que dá muito que
pensar. Com a quantidade de colónias que nós temos…
Províncias ultramarinas, corrige D. Duarte,
sem demasiada convicção.
— É o mesmo. E é altura de o país começar a
pensar…
Na sua urgência, as ideias acumulam-se,
empurram-se: a Casa de Estudantes do Império; a família real do Congo;
autonomia; federação; comunidade de nações aliadas; um grande exemplo a dar ao
mundo, tal como o da abolição da pena de morte…
D. Duarte ouve-a. Quando pode, introduz uma
frase:
— Mana, o que posso eu fazer? Sou Rei, não
sou Governo, nem deputado…
— Claro! Mas pode conversar, pode aconselhar,
falar com o Presidente do Conselho… é isso o poder moderador, ou não?
Um pouco mais tarde, já terminada a conversa,
o Rei levanta-se e vai até à janela.
«Impetuosa como sempre. Mas é bem capaz de
ter razão. Esta situação imperial não pode durar… os trabalhistas haviam de
apoiar a ideia… tenho de pensar, discutir isto com alguns conselheiros de
Estado, antes de…»
FINAL ABRUPTO
O
rádio-despertador acorda-me.
Envolvido ainda na memória dos sonhos e na
névoa do despertar, ouço farrapos de noticiário:
— … A possibilidade de Carolina Salvado se
candidatar à Presidência da República foi hoje abordada…
— … decisão do Ministério de encerrar todas a
maternidades nacionais e fazer um acordo com a Espanha…
— … lucro dos hospitais ascendeu no primeiro
semestre a… encerrados todos os Serviços de Atendimento Permanente…
Merda, onde é que eu guardei a porra do
Xanax?
João
Aguiar
Hotel do Bussaco- Local de inspiração anual. |
Hotel do Bussaco - Local de descanso e meditação anual
Subscrever:
Mensagens (Atom)